segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

Duas visões




















Profeta Daniel, de Aleijadinho, em pedra sabão e Liteira "serpentina" de arruar, século XVIII.

Aleijadinho

Era mulato, como a maioria da população de Ouro Preto, filho de arquiteto português, e de uma sua escrava africana. Produziu obras magníficas. As melhores estão fora da igreja, em Congonhas, expostas ao ar livre e à ação dos vândalos: a série dos doze profetas esculpidos em pedra sabão. O conjunto em madeira pintada representando sete cenas da Paixão de Cristo também é impressionante, cheio de sentidos enigmáticos que alguns interpretam como sendo referências à maçonaria e à Inconfidência. De novo, o sentido religioso não é o que atrai aqui e sim a maestria da obra, que contou com a ajuda dos discípulos para ser feita. (A doença que deformou as mãos de Aleijadinho estava já em estado avançado. Ele precisava atar o martelo e o cinzel nas mãos para poder esculpir e talhar.) Nota-se, entretanto, um estilo único em todas as esculturas, algo comovente.
Como tudo no Brasil, mesmo personagens recentes são envoltos em brumas, o que abre espaços para a especulação. A ausência de uma historiografia séria deixa dúvidas sobre a biografia e até mesmo da real existência desse personagem do barroco mineiro. As obras contudo estão lá, apesar de faltar um maior envolvimento das instituições que deveriam apoiar a pesquisa e a preservação desse patrimônio, perceptível para quem visite as cidades históricas mineiras.

Religião e mendicância

Em Ouro Preto, há um Museu do Oratório, com peças de todos os tipos. Entre os oratórios, existia um chamado de "esmoler", utilizado por mendigos, pendurado no pescoço, para pedir esmolas. Há uma linha contínua unindo religião e mendicância.

domingo, 25 de janeiro de 2009

Minas



As igrejas em São João Del Rei e em Tiradentes têm o teto em forma de uma caravela invertida – "a bem dizer, naufragada" – explicou-me um guia, não sei se captando o alcance da imagem. As igrejas barrocas, naufrágios portugueses do século XVIII talhados em madeira coberta de ouro, transplantados para os trópicos em navios e como navios naufragados deixados para secar e apodrecer sobre pilares ornamentados nos pontos altos das cidades.

Em Tiradentes, ressoa música por todos os lados. Sentado na piscina de um casarão do século XVIII, escuto Vivaldi. O mesmo tipo de som, música erudita, toca nos alto falantes na rua, na praça em frente à capela do Rosário, também do século XVIII, enquanto espero pelo trio de sopro (clarineta, fagote e flauta) que irá executar peças de Vivaldi, Corelli e Mozart. À noite, saindo da igreja, após o concerto, me deparo com um coral de jovens acompanhados de violão, que apresentava músicas populares antigas, de porta em porta, em vários pontos da cidade.

Sobre as igrejas

Para a maioria dos visitantes, como eu próprio, elas perderam quase toda a significação religiosa. São um misto de exposição de arte, museu, cenário, palco e obras de arte em si mesmas.

Quando, em São João Del Rei, sem nenhum aviso, o padre inicia a missa das seis, parece um intruso, eu diria que ele parece quase profanar o lugar com sua presença.
Os turistas, com suas câmeras, fogem (fugimos) todos como um bando de pássaros assustados para a frente da igreja.

A ruína do significado religioso pode ser lida numa placa de advertência afixada no local: "Este altar é sagrado, favor não apoiar-se ou colocar objetos em cima".

Falta de um museu da escravidão
Não sei se existe um mesmo no Brasil, voltado apenas para esse tema, mostrando os sofrimentos e as torturas impingidas aos negros trazidos da África. Em São Paulo, onde há museu de tudo quanto é coisa, sei que não há (tem, isto sim, o Museu Afro, que ainda não visitei). Nos museus em Minas, da Inconfidência, em Ouro Preto e Casa do Padre Toledo, em Tiradentes, a questão é tratada en passant, quando não suavizada. Talvez porque o próprio Padre Toledo era um rico senhor de escravos e os inconfidentes não fossem abolicionistas.

Exposta no museu onde ficava a casa do inconfidente Padre Toledo, vi uma liteira que parecia saída de uma pintura do Inferno de Bosch. O modelo de "arruar" (isto é, para ir à rua, em viagens curtas) chamava-se "serpentina", por causa da representação em madeira de uma serpente na ponta do "veículo", produzido em outra colônia portuguesa, Macau. O trabalho de carregá-las era para ser feito por escravos "bem fardados e corpulentos". Era, informa o texto do museu, um trabalho "especializado", pois os carregadores negros aprendiam a marchar sem solavancos, para não "incomodar" as pessoas que transportavam. Por isso, ainda de acordo com o texto exposto, após a abolição tornou-se um dos ofícios mais bem pagos, senão o mais bem pago, para os negros "livres". (No museu da Inconfidência vi outro desses modelos. Lá, um guardinha que fazia às vezes de guia, lembrou que os negros que transportavam as mocinhas da sociedade eram castrados, sem dó nem piedade. Segundo ele, os testículos eram esmagados com pedras).
Ainda na casa transformada em museu do Padre Toledo, em Tiradentes, vi também pela primeira vez, uma corrente usada para "prender e transportar escravos", com várias formas pontiagudas de ferro enegrecido, retirado, em 1970, do fundo do Rio das Mortes – de novo, a sensação de estar diante de um objeto produzido nos fornos do inferno, por demônios. Abaixo da casa, "existe um interessante porão que serviu de prisão para escravos," como descreve laconicamente, quase como não tivesse muita importância, e por último entre as "atrações" do museu, o texto na página da Prefeitura de Tiradentes. Mesmo descaracterizado, com pichações, dá para sentir a atmosfera maligna e angustiante que impregna as paredes e imaginar-se no lugar dos que ali "viveram".
Texto ao lado de objetos de tortura usados em escravos no Museu da Inconfidência, em Ouro Preto exalta a "paciência e a sabedoria" dos negros que "souberam se integrar" à cultura dos seus algozes brancos. Entre as poucas referências escritas, há um livro que ensina como "tratar, curar e evitar as doenças dos negros", como um compêndio destinado à saúde dos animais de criação.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Salvação. De viagem

Em pé e espremido perto da janela do ônibus em movimento hoje à tarde, debaixo de um sol escaldante, numa ruazinha perpendicular, próxima à igreja, pude observar, num flash de tempo - apenas alguns segundos, enquanto o ônibus ia se afastando-, uma fileira de anciões, todos muito brancos, que aguardavam não sei que sinal divino, parados. À frente do grupo, um andor, emplumado, pendia nos ombros de dois abnegados velhinhos. Mais atrás, algumas velhinhas mais sensatas portavam sombrinhas. Sobre a padiola ornamentada, uma estátua do que eles chamam de “A virgem santíssima”, ou algo equivalente (e esse conceito de virgem imaculada, por trás do Grande Corno, não citarei nomes para não ofender ninguém, o caso permanece em aberto já faz mais de 2 mil anos, eu nunca pude aceitar completamente, eu quero dizer compreender). A pergunta que me veio à cabeça, pouco depois, quando desci do ônibus, no calor sufocante do asfalto, foi: Que Deus sadomasoquista os ensinou a sofrer assim? E o que é pior, os ensinou que sofrer é bonito?

Como estou de viagem para Minas Gerais esses dias e devo me enfiar em algumas Igrejas (só espero que não estejam muito mofadas), acho bom ir me acostumando com isso. Levarei meu caderno de notas (caneta e papel) comigo, além de anti-histamínico, tomarei minhas impressões.

domingo, 4 de janeiro de 2009

A vida Breve 2


Há livros que não deveríamos ler. Que querem dissipar suas sombras tristes sobre nós, através de nós, tornando-nos seus personagens. Livros assim escravizam. Talvez Onetti fosse louco, assim como todos os grandes escritores (Joyce, Céline, Becket). E talvez escrever seja uma forma de ir adiante. Levantar-se, preparar o café com ovos mexidos, limpar-se, tomar banho, abotoar o paletó e dirigir-se até o escritório. Enquanto sentem se avolumar ao redor as ondas surdas do caos .

sábado, 3 de janeiro de 2009

Paul Valéry

Frase de Paul Valéry, que me apanhei relendo pouco tempo antes dos fogos explodirem, na virada do ano: "Temos de entrar em nós próprios armados até os dentes." De Monsieur Teste.

A vida breve

A "Vida breve", de Onetti, é também cruel . Me fez lembrar de Céline. Personagens esquisitos, desesperados, a morte rondando ao lado, inquieta. E de vez em quando, frases como essa, entre parêntesis, que iluminam o texto como um clarão de cemitério: "(Alguém pisa, estrangeiro, as folhas caídas no bosque; damos sepultura, sem pompa, à última rosa desse verão chuvoso.)". Enquanto gotas, reais, de chuva lavam a janela do apartamento onde digito isso e uma mulher grita, na casa da rua embaixo, pela terceira vez com o cachorro (que insiste em latir).