sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Lapouge e as cidades brasileiras


Resenha-artigo

Por Lauro Marques

“São Paulo não é feia ou bonita. São Paulo é um monstro”. Gilles Lapouge dá uma das melhores definições do Brasil e das cidades brasileiras em seu impagável “Dicionário dos apaixonados pelo Brasil” (editora Amarilys, 2014).

A tradução “Dicionário Amoroso” do título, como no francês original em que foi lançada a obra, “Dictionaire amoureux du Brésil”, ficaria melhor. Sim, é amoroso e nos deixa nus como índios cabralinos.

São Paulo, de acordo com o verbete sobre as aglomerações urbanas locais, é uma “periferia infinita”, onde procuramos e nunca encontramos as portas da cidade. Estamos sempre “ao redor da cidade”. É o ápice da cidade portuguesa, “construída às cegas, de qualquer jeito, em qualquer lugar”.

Por isso as sinuosidades são mantidas em nossas vilas e cidades, cheias de declives, vales, ladeiras. Por isso são belas, diz, amorosamente, Lapouge. Por isso, acrescento, não pensamos em construir calçadas, ou vias e estradas funcionais ou abastecimento hídrico planejado.

Por isso também as ciclovias de São Paulo, destinadas em grande parte aos fantasmas e zumbis (*), que são seus nem sempre ocultos habitantes.

Rejeitamos a geometria voluntária da urbe espanhola (ademais, já existente na América pré-hispânica, enquanto aqui ainda não conhecíamos a roda). À lógica, preferimos a intuição.

Quem ousou contrariar essa inclinação foi Niemeyer e sua Brasília utópica - uma utopia, apesar da rima ser rica, estranha, no entanto.

Em lugar de ângulos retos, a curva. (A primeira cidade utópica “mulher”, segundo Lapouge). Em lugar de ruas e esquinas, “asas”, “blocos” e “setores”.

Uma cidade-hieróglifo para ser vista do avião, como uma mensagem no deserto aos deuses (deixada por um comunista!) e inabitável ao rés do chão.

Livro inspirador, voltarei a ele outras vezes.

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(*) Véspera do Natal, saída do túnel da Paulista em direção a Dr. Arnaldo. Sou pego em uma cena de filme de Zumbi. Dentro do túnel, ocupando as laterais dos dois lados da pista, numa semiescuridão, um grupo se amontoava (provavelmente viciados em crack). A maioria homens, talvez não muito velhos, barbudos, cabeludos, desgrenhados, famélicos, roupas em frangalhos e cobertos de sujeira. Corpos enegrecidos, encolhidos, sentados um ao lado do outro, as mãos agarrando os joelhos, olhando para frente. As cabeças meio inclinadas, em silêncio absoluto, como se numa espécie de comunhão, sem fogo. Véspera de Ano-Novo, continuavam lá. À passagem rápida dos carros, um deles se levantou, um pé tocando o asfalto, antepondo a silhueta avermelhada contra a luz no final do túnel, que agora me lembrava também uma caverna pré-histórica. Papelões voavam no meio da pista.


Nota do autor: Talvez tenha carregado muito nas tintas na descrição. Mas o quadro, quase um “presépio”, é exato e está disponível a quem queira experimentar. Poderia tê-lo descrito numa linguagem objetiva de jornalista, já que os nossos ainda não tiveram a oportunidade de descrevê-lo. Se saiu nessa linguagem enviesada foi pela força que o evento me impressionou.

"Poste-Escrito": Não sou inimigo das ciclovias, pelo contrário, utilizo e sou um apoiador. As ciclovias são uma boa ideia, mudaram a cara de São Paulo, oferecendo uma opção de lazer - e até em alguns casos, para uso por entregadores, ou de pessoas que moram em áreas mais urbanizadas da cidade, perto do trabalho e são jovens. Seu fracasso está associado ao próprio fracasso da cidade, de uma forma geral, como a falta de calçadas, avenidas mais largas e arborizadas, com recuo maior dos edificíos, o tecido caótico das ruas, etc.