terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Bárbara e eu









(sinopse para um conto ou relato breve)




Nada demais. Apenas o fel e o mel do cotidiano. Nossos lençóis sendo dobrados pela manhã, marcando a alternância entre dia e noite. Suas saídas para lugar nenhum e as minhas andanças pelo bairro vazio, o relógio que não temos, esquecido. Um pouco lavar as louças (eu), varrer a casa (Bárbara), escutar música e adormecer nos seus braços ou não. Ficar só. Ler um conto de Cortázar ou Sciascia. Lembrar nosso mergulho na Ilha do Breu, nome sintomático, onde sintomaticamente desaparecemos do radar por dois dias seguidos. Bárbara sorri quando não chora. Fosse a vida um barco. Um mar calmo e nós dentro dele. “Pena que não é”, Bárbara sorri, quando não chora. E ali, esquecidos, os dias passam. Ali onde não estamos, Bárbara e eu. Apenas suspeitamos.

A bolsa de Bárbara. Signo da ausência de Bárbara. Seu nome ferino, sua natureza indômita. A história que me contou de como atravessou um túnel, a pé, na Sicília, para cortar caminho, no meio do campo, e seguiu junto à linha do trem, quando, durante a travessia, quase que morreu por alguns segundos. Teve que ficar colada contra a parede do túnel, na ponta dos pés, vendo o trem passar com toda a sua carga, lentamente, à sua frente, vagão por vagão, interminável e quente, e o apito se transformar em anos. “Saí do outro lado envelhecida”. E só por essa história já poderia amá-la.

Mas então novas brigas. Outro mergulho em outro breu, mais denso e viscoso e pútrido como sangue podre. Nossos conflitos infindáveis, o fel de que vos falei. Saio a levar para passear o cão de nossas rusgas, o que eu odeio, que mija e defeca pelas ruas e que de vez em quando me morde, furioso. Levo-o pela coleira apertada no pescoço, a saliva escorrendo pelo canto da boca, uiva. Eis que achei a imagem perfeita para as nossas desavenças, a de um cão sarnento, que levo para passear, e essa imagem me faz bem por alguns instantes. Paro para admirar um abacateiro, uma goiabeira que surge insuspeitada em meio à avenida. Puxo uma folha de amora e sopro entre os dentes, um assobio, e o cão vai embora. Bárbara sorri, quando não chora. E quando chora, o mundo inteiro desaba. E então ela fará tudo de novo outra vez, da mesma forma, e nós dois dando voltas em círculos como um relógio tonto. O gesto infantil do guri que relha e chora, quando lhe roubam a água do pocinho em frente ao oceano. Bárbara felimininamente sorri. O assobio da amora. Amarga. Arrasto o cão da angústia. O fel. E o mel. Morde os lábios. Chora. Bárbara.

Depois meiga, o rabinho balançando, as garras ainda compridas, a cabeça baixa a esconder a mandíbula portentosa, rostos femininos em monstros desde a pré-história, difícil resistir, nua crava a boca em meu peito, as unhas, sangrando, no rosto, seu colado no meu, o suor escorrendo de ambas as testas, rolamos agarrados um ao outro, num amplexo infernal, minha língua em sua língua, em suas costas, de lado, pernas, leoa, cabeleira loura, deitada, rugindo, o vôo dos pássaros, alma, nada, vazio, Deus, nada, abismos.