domingo, 19 de dezembro de 2010

Dois poemas de Juan Gelman



Freira no ônibus – Juan Gelman

[Tradução Lauro Marques]



Entre homens e pacotes, diários envelhecidos,

caras secas, suores, bocas rancorosas,

envolta no silêncio de seu capuz pálido

a noiva de deus viaja com Cristo

sobre peitos que deram de comer a ninguém.



O ladrão – Juan Gelman

[Tradução Lauro Marques]



Na noite silenciosa e escura,

fugindo de toda presença humana ou animal,

evitando os ruídos, furtivamente rouba

fogo das palavras e palavras do fogo

para si, para todos, para o amor que não conhecerá

algum dia

e a cinza fria castiga suas mãos.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

A Cidade a Travessa 19/11 na Casa das Rosas

Sexta-feira 19/11, na Casa das Rosas, Avenida Paulista, 37, a partir das 18h, a Cidade a Travessa: megaevento da Confraria do Vento em São Paulo. Leituras, lançamento de livros (Ronaldo Ferrito, Lauro Marques, Victor Paes, Bárbara Lia e Berimba Jesus), performances e entrevistas. Vão servir absinto. Leve sua capa de chuva e prepare-se.

À venda no site da editora, Livraria Cultura e Martins Fontes:
http://www.confrariadovento.com/editora/livro27.htm

http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/resenha/resenha.asp?nitem=22379071&uid

http://www.martinsfontespaulista.com.br/ch/prod/382160/sumario-de-incertezas.aspx


domingo, 14 de novembro de 2010

Lançamento do meu livro no dia 19/11 na Casa das Rosas/SP

Foto original da capa por James Emery
 Capa do meu livro de poesia Sumário de Incertezas".
Editora Confraria do Vento, 2010.

À venda no site da editora, na Livraria Cultura e Martins Fontes:
http://www.confrariadovento.com/editora/livro27.htm

http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/resenha/resenha.asp?nitem=22379071&uid

http://www.martinsfontespaulista.com.br/ch/prod/382160/sumario-de-incertezas.aspx


Lançamento: 19/11 na CASA DAS ROSAS, Avenida Paulista, 37, das 18h às 22h.

Dentro do evento "Cidade a Travessa", promovido pela Editora Confraria do Vento.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Águas-fortes Portenhas

Photo by Robert Ostmann

Enquanto procuravam minha mulher
que estava perdida na Biblioteca Nacional
chamando-a pelo nome de piso em piso

–até que a encontraram duas horas depois
com um formulário não preenchido de “investigadora” nas mãos e nenhum livro
(o que buscava era de 1891 e olhou para ele durante dois segundos antes de sair correndo para o cabeleleiro)–

eu lia “Poesia Vertical- Antologia Mayor” de Roberto Juarroz
na cápsula de tempo que é a biblioteca, misto de poesia vertical e horizontal, incrustada na cidadela que já foi de Borges

–enquanto embaixo corria em câmera lenta a metrópole portenha, com seus milhares de carros pretos e amarelos girando, continuamente girando, em círculos (que são para mim o verdadeiro símbolo dessa cidade), sempre indo e voltando, sem nenhum destino não pré-fixado: metade da frota é de táxis.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Bienal 2010


Ninhos, Helio Oiticica (divulgação/Bienal)

Gostei da Bienal 2010, muito melhor que a última (a do "Vazio"). Apesar do tema "Arte e Política", os que conseguem fugir da interpretação literal se saem bem. Achei algumas participações bastante interessantes e bem-humoradas, como o vídeo que mostra a performance de um grupo do Rio, montado num carro-pipa "lavando" as ruas com jatos de ..."sangue", e a reação das pessoas nas rua. Os curadores obtiveram sucesso no ponto em que obras dialogam o tempo todo com a poesia, a literatura, e as artes visuais, com destaque para a fotografia, e na homenagem a autores do passado, como Lygia Pape (num belo filme da época) e Hélio Oiticica, no ninho reproduzido na foto ao lado. Ainda não deu para ver tudo, preciso voltar logo.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Garrafas de cerveja _letra e música



Macacco ao vivo em Natal-RN (detalhe da geladeira no palco)



GARRAFAS DE CERVEJA
 (aka. "Ameaçando a escuridão")


Muita coisa mudou

Os planos são outros
Ecos sem sentido

Você voltando pra casa,

No domingo

E ninguém mais sorrindo

Faz o mundo girar
No chão da sala
Quando pego na sua mão
Com luvas de plástico
Não de pelica,

Esqueci todo o resto.

Abra a geladeira

Eu abro meu peito

E as garrafas de cerveja

No piso sujo

Da sala,

Ameaçando a escuridão.

 
 
  Música  do CD Canções de Ninar. Autor: Macacco (Alexandre Gurgel). Letra: Lauro Marques.

Haiku de primavera (atrasada)


"Três Amigos e Centenas de Pássaros",
Bian Wenjin, dinastia Ming
 






Inverno, acabe!

empoleiradas nas árvores,

gritam maritacas.

















De: Sumário de Incertezas, Lauro Marques. Editora Confraria do Vento, 2010 (no prelo)

domingo, 19 de setembro de 2010

Mário de Sá-Carneiro: Impressões domingueiras


Leio Mário de Sá-Carneiro no domingo meio nublado, no parque da Água Branca. Um parque meio pobre e mal-cuidado, em reformas, com aves simplórias ciscando em meio aos pombos (que ao meu ver nem aves são), galinhas, galos e pavões. Paus-brasis dos mais altos que já vi -antes só conhecia mudas-, que me pareceram muito estranhos, e um resto de vegetação que para nós, citadinos, já nos basta para nos sentirmos em meio ao mato. Uma surpresa. Há quiosques com livros que você pode pegar e ler, depois devolver, sem ninguém para dar por isso. Um quiosque com livros de poesia! Poucos, uns 20 talvez, mas todos bons (lembro que vi Rimbaud, Lautréamont, Haroldo de Campos, Célan, José Paulo Paes), outro de literatura em geral. Fui lá no de poesia e peguei o Mário de Sá. Há mesas de leitura, como as de um restaurante, só que sem garçons, e quando fui lá estavam vazias. Uma musiquinha tocava ao fundo, uma canção infantil. Eu já o tinha lido, claro, mas naquele parque lúgubre, num domingo, após ter passado em frente a um baile da terceira idade, que ocorria a poucos metros ali mesmo dentro do parque, onde pairava um estranho desânimo, um “além-tédio" (1) de tudo -para um parque, com crianças!-, a sensação foi amplificada.

*
*
*

Acrescento algo totalmente desnecessário a essa minha nota igualmente desnecessária, que não tem muito a ver com Sá-Carneiro mas com o "estado de ânimo" do parque naquele dia. O tal baile da terceiridade era uma das "atrações", comparável aos brinquedos para as crianças e os animais soltos, para os que de fora observávamos os velhinhos a entrar na casa - de onde saía uma animada música, contrastando com as figurinhas trêmulas que, rapidamente, e sem trocar muitas palavras, a espinha dobrada, entregavam determinada quantia ao homem, também de idade, usando um chapéu preto e camisa social, que fazia às vezes de porteiro e bilheteiro. Como a casa ficava numa parte baixa, as pessoas na parte alta do caminho que passava ao lado do salão de baile, paravam para olhar, algumas empurrando carrinhos de bebês, em roupas de "jogging", ou casais de meia-idade, por um momento sinceramente enternecidos com as imagens do passado (que para nós seria mais certo dizer futuro, mas que vemos como pertencentes a um tempo passado). Escutei uma garotinha dizer: "mas deve ser necessário ter uma certa idade", entre desejosa e precavida, de participar da "festa", que, como tudo mais no parque, tinha a aura de espectro.

__________

(1) - nome de um poema de MSC.

Nada me expira já, nada me vive ---/ Nem a tristeza nem as horas belas. /De as não ter e de nunca vir a tê-las, /Fartam-me até as coisas que não tive. //Como eu quisera, enfim de alma esquecida, /Dormir em paz num leito de hospital.../ Cansei dentro de mim, cansei a vida/ De tanto a divagar em luz irreal. //Outrora imaginei escalar os céus/ À força de ambição e nostalgia,/ E doente-de-Novo, fui-me Deus/ No grande rastro fulvo que me ardia.// Parti. Mas logo regressei à dor, /Pois tudo me ruiu.../ Tudo era igual: A quimera, cingida, era real,/ A própria maravilha tinha cor!// Ecoando-me em silêncio, a noite escura/ Baixou-me assim na queda sem remédio;/ Eu próprio me traguei na profundura,/ Me sequei todo, endureci de tédio.// E só me resta hoje uma alegria:/ É que, de tão iguais e tão vazios, /Os instantes me esvoam dia a dia/ Cada vez mais velozes, mais esguios...

Ver também o poema "Dispersão".

sábado, 18 de setembro de 2010

Segunda canção do homem tolo

"Ho Tche Tchang, sempre a cavalo, parecia remar numa barca. Certa noite, mais bêbado que nunca, caiu num poço, onde dorme ainda, creio eu..."





Foto de Okinawa Soba
Escuta o barulho do mar
Longe silente
E vê o pelo ouriçar
Tu que não sentes
Enche o peito de ar
(Até um grito estourar)
Por entre os dentes
E gira em teu calcanhar
Tolo contente
Até o dia sangrar
Novo poente


E bebe o vinho dormente
E bebe o vinho dormente





De: Sumário de Incertezas, Lauro Marques. Editora Confraria do Vento, 2010 (no prelo)

domingo, 12 de setembro de 2010

Earth in beauty dressed

Foto de mauroguanandi
Um ipê amarelo desfolhando (despetalando?) nesse início de setembro me lembrou um fragmento de Yeats, que sempre me vem à memória nessa época do ano (traduzo aqui sem muito rebuscar):

"Em beleza a terra vestida
 Aguarda o retorno da primavera.
 Todo amor verdadeiro deve findar,
 Transformado no ápice
 Em alguma coisa menor.
 Prove que eu minto."

O poema no original completo:

Her Anxiety


Earth in beauty dressed

Awaits returning spring.

All true love must die,

Alter at the best

Into some lesser thing.

Prove that I lie.



Such body lovers have,

Such exacting breath,

That they touch or sigh.

Every touch they give,

Love is nearer death.

Prove that I lie.


William Butler Yeats

Aqui, uma animação desse poema (quase "espírita") com a namorada de Yeats, Maud Gonne, resssucitada dos mortos por meio da computação gráfica, "recitando" o poema. Detalhe: Gonne lembra "gone", ido.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

O homem tolo - poema, antecedido de comentário à leitura de Ulisses

Sábado 14 de janeiro de 2006


Limpo a poeira do Ulisses, traduzido por Antônio Houaiss. Poeira não. São grossas camadas pretas de poluição, gordura, e ácaro. Joyce diria: "Necrófago! Mascador de cadáveres!".

Leio a edição carcomida pelas traças, que traçaram umas curvas (algumas bem elegantes) por todo o livro. Com a caneta, sublinhando as frases que eu gosto. (Ou do estilo). E são muitas.

"Diz Maeterlink: Se Sócrates deixar sua casa hoje, encontrará o sábio sentado à sua soleira. Se Judas sair esta noite, é para Judas que seus passos tenderão. Cada vida são muitos dias, dia após dia. Caminhamos através de nós mesmos, encontrando ladrões, fantasmas, gigantes, velhos, jovens, esposas, viúvas, irmãos do amor. Mas sempre encontrando-nos a nós mesmos."

E de fato, a passagem remeteu-me para algo que escrevi antes. Eis que reencontro. O anti-Zaratustra. O sem força. O poeta, o bobo. O bufão que interrompe, através da parábase, o discurso do sábio. O último dos homens, talvez. Eu. Incipt commedia!


O HOMEM TOLO


O homem tolo construiu castelos de gelo

no verão, onde pensou em morar

por muitos anos

e rimou palavras a esmo

para surdos-mudos e

analfabetos

numa língua morta e

desconhecida

desde então.



O homem tolo saiu à noite com uma lanterna

apagada

procurando pela escuridão

e só encontrou a si mesmo.



Esse homem tolo

abriu as janelas de sua alma

numa rua deserta e no lugar de inspirar,

expirou ali mesmo.


ÍNDICE DAS FRASES MAIS NOTÁVEIS DE ULISSES

Foto da primeira edição (verdemuco) do Ulisses
(TRADUÇÃO: ANTÔNIO HOUAISS)



Pág. 8: “– Por Deus – disse sereno. – Não está o mar tal como Algy lhe chama: a doce mãe gris? O mar verdemuco.” (1)

Pág. 20: “O vazio espera certo todos os que tecem o vento.”

Pág. 73: “O senhor Dedalus olhou para a claudicante personagem e disse docemente:

– Que o Diabo lhe quebre o espinhaço.”

Pág. 362: “Estética e cosméticos são para o boudoir. Busco a verdade. Pura verdade para um homem puro.”



Pág. (*): .........................................................................



(*) Para respeitar a idiossincrasia de cada um, deixamos a cada leitor a tarefa de completar esta página.

________________________

(1)
"Snotgreen", termo "criado" por Buck Mulligan, no Ulisses. "O mar verdemuco" e não "verdemeleca" como está na tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro (Editora Objetiva, 2005). Uma bobagem essa, admito... mas me fez recuar na compra do livro. "Meleca" lembra palavreado infantil que não corresponde a snot - nasal mucus, mucous secretion, mucus - protective secretion of the mucous membranes; in the gut it lubricates the passage of food and protects the epithelial cells; in the nose and throat and lungs it can make it difficult for bacteria to penetrate the body through the epithelium - além de não combinar com o contexto da rememoração de Stephen, em seguida: a mãe a morrer vomitando a bile numa tigela de porcelana que "parecia uma lesma verde arrancada de seu fígado apodrecido em seus ataques de vômito e de altos gemidos..."

Aí está: O mundo à beira do caos e eu aqui discutindo meleca...

domingo, 5 de setembro de 2010

Há pouco, velozmente, no Metrô

Traffic, de riczribeiro

Desfizemos nossas roupas e saímos nós, vestidos de noite. Há pouco, velozmente, no Metrô, estáticos, espalhamos átomos pelo mundo afora. Um hálito quente, a língua úmida, a queimar-lhes a nuca. Dois velhos de boinas, conversam contentes, segurando livros. Uma moçoila, com ares de estudante, também de boina, quase que “posa”. Uma velha gorda com a sacola de supermercado, distraída, pensa (?). Somos todos desesperados... Somos todos... desesperados... E a mulher bela, na propaganda de desodorante, sorri. Enquanto isso, eu, no canto contrário, sentado, componho o poema com o olho, pois sei que, no momento seguinte, esquecerei tudo.

NOTAS À MARGEM

LER É VIVER


Minhocão, foto de Daniel Mitsuo


A frase em letras garrafais, numa faixa, sobre a porta de um pequeno sebo, surpreendeu-me da janela do ônibus, enquanto passava embaixo do elevado Costa e Silva, mais conhecido como minhocão, uma das sete desgraças do mundo contemporâneo (não há as sete maravilhas do mundo antigo? Eu proponho uma lista alternativa que seja encabeçada pelo minhocão).



Quer frase mais “Pessoana” do que essa? Ler é viver. E portanto, a maioria da população brasileira não vive, pois não lê. Não sei se quem pôs a faixa estava inteiramente consciente da crítica feroz que fazia à ignorância dos que, como eu, por ali cruzavam a rua, cumpridores da rotina diária, ruidosos ou em silêncio, a caminho de mais um dia na metrópole paulistana.





DIGNIDADE



Parei hoje para cumprimentar o vigilante que toma conta do prédio onde trabalho. Ele estava polindo as botas, sentado à cadeira do engraxate, que faz ponto na praça em frente do prédio. Fui dizer, apenas para ser simpático e ter algo para dizer, que eu também iria engraxar meus sapatos, um dia desses. Então ele me responde afirmando: “Já que vamos sair amanhã, resolvemos engraxar as botas”.



Confesso que de início não compreendi, o plural majestoso confundiu-me. Imaginei que ele, vaidoso, certamente planejava dar uma volta à noite, ou sair para uma festa ou quem sabe talvez um bar, após o trabalho, e queria por isso ver suas botas brilhando.



Como eu não havia entendido bem, fiquei surpreso quando ele me disse em seguida que este seria o seu último dia naquele emprego. Falei qualquer coisa para reanimá-lo e fui-me embora, sorrindo. Só agora, já em casa, quando tomo para mim mesmo essas notas solitárias, é que pude compreender a verdadeira dimensão do que ocorrera.



Ele chegara ao fim do contrato temporário de serviço como vigilante e o ato de polir as botas era uma maneira de demonstrar para si mesmo que ele era superior à sua própria desgraça. (Se as devolveu ou não, como imagino ser praxe nesses casos, é um mero detalhe que não afeta em nada a minha imaginação de sua superioridade).



Tinha razão portanto o plural majestoso, carregado de dignidade, daquele homem, que eu, para minha vergonha, na minha simplicidade, não pude perceber de imediato.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Dois poemas de Ezra Pound


O SOBRADO

Ezra Pound

Tradução Lauro J.M. Marques

Vem, apiedemo-nos daqueles que estão melhor que nós.

Vem, amiga minha, e recorda

que os ricos têm mordomos e não amigos,

E nós temos amigos e não mordomos.

Vem, apiedemo-nos de casados e solteiros.



A aurora entra com seus pezinhos

como uma dourada Pavlova*

E estou próximo ao meu desejo.

Não há coisa melhor no mundo

Que essa hora de claro frescor

A hora de despertarmos juntos.





INSTRUÇÕES POSTERIORES

Ezra Pound

Tradução Lauro J.M. Marques

Venham, minhas canções, vamos expressar nossas paixões mais básicas.

Vamos expressar nossa inveja do homem com um trabalho regular e nenhuma preocupação com o futuro.

Vocês são muito vãs, minhas canções.

Receio que terão um péssimo fim.

Vocês vagabundeiam pelas ruas, vocês demoram-se nas esquinas e paradas de ônibus,

Vocês não fazem quase nada.



Vocês sequer expressam nossas grandezas mais íntimas,

Vocês terão um péssimo fim.



E eu? Eu acabei meio alucinado.

Eu falei tanto com vocês, que as vejo quase à minha volta,

Insolentes animaizinhos! Libertinas! Desnudas!



Mas vocês, canções mais recentes do lote,

Vocês não são velhas o suficiente para terem causado muita injúria.

Eu trarei para vocês um casaco verde da China

Com dragões bordados.

Eu trarei para vocês as calças de seda escarlate

Da imagem do menino Jesus em Santa Maria Novella;

Para que não digam que nos falta o gosto,

Ou que não há ninguém casto nessa família.

 
_______________

(*) "Como uma dourada Pavlova" = Anna Pavlova, bailarina russa, nascida em São Petersburgo, a 31 de janeiro (segundo o calendário juliano) ou a 12 de fevereiro (pelo calendário gregoriano) de 1881 e falecida na Haia, em 23 de janeiro de 1931.. De talento e carisma excepcionais, fascinou o mundo da dança no fim do século XIX e na primeira metade do século XX. Seu extraordinário talento e suas interpretações extremamente pessoais deram um novo sentido ao balé clássico. Também era conhecida como Anna Pavlovna Pavlova. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Anna_Pavlova

Texto original dos poemas:

Lustra, 1916.
http://www.archive.org/stream/lustrofezrpound00pounrich#page/n0/mode/2up



A POESIA É UM CENTAURO


“A poesia é um centauro”. Metade lógica, metade música.

“A faculdade clarificadora, pensante, de arranjar as palavras, deve se mover em conjunto às faculdades estimuladoras, sensíveis, musicais.”

Ezra Pound, Literary Essays of Ezra Pound, New Directions, New York, pg 52.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

SILENCIEMOS, POIS SIM, MAS NA LINGUAGEM

Ela caminha em minha direção, vinda de não sei onde, que a apanhei. Eu a pus para andar, soprei ar nos seus pulmões, dei-lhe um nome incógnito para protegê-la. Eu a falei.



Agora ela é sua. Trate-a bem.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Hamlet e as ervas daninhas


Que mundo este! Oh! É um jardim inculto em que crescem as ervas bravas!



Ler com a “chave” do soneto 94 (*). Hamlet é uma erva daninha que cresce num maltratado jardim de lírios (a Dinamarca, o casal real, este mundo!), os quais, infectados por um tipo de mal (traição e assassinato do rei), fedem mais do que as ervas, quando apodrecem.



A vil erva vai turvar-lhes (ultrapassar-lhes) a compostura (dignidade).



Não fuga à vida, mas preparação para a morte.

_____________

(*)

Soneto 94

Eles que podem magoar, mas não, / não fazem coisas neles evidentes, / que movem outros e em si mesmos são / de pedra, imóveis, frios, reticentes, / herdam graças do céu, poupam primores / da Natura a desgaste e decadência, / de suas faces donos e senhores. / Outros são servos só dessa excelência. / Embora para si viva e pereça, / a flor do verão ao verão traz a doçura, / mas basta que se infecte e adoeça, / vil erva vai turvar-lhe a compostura. / Se há feitos que os mais doces mais azedem, / os lírios podres mais que as ervas fedem.



“Sonetos Completos de William Shakespeare”. Tradução de Vasco Graça Moura

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Dois poemas de Augusto Monterroso

Na direção contrária ao ¿Por qué no te callas?, o guatemalteco Augusto Monterroso escreveu: Cuando tengas algo que decir, dilo; cuando no, también. Escribe siempre.
Li a respeito dele, falecido em 2003, que era um autor de minicontos. Na minha opinião, são minipoemas, como este “epitáfio”, carregado de humor, que traduzo a seguir:
Epitáfio achado no cemitério
Monte Parnaso de San Blas, S.B
Escreveu um drama: disseram que se julgava Shakespeare;
Escreveu uma novela: disseram que se julgava Proust;
Escreveu um conto: disseram que se julgava Tchekhov;
Escreveu uma carta: disseram que se julgava Lord Chesterfield;
Escreveu um diário: disseram que se julgava Pavese;
Escreveu uma despedida: disseram que se julgava Cervantes;
Deixou de escrever: disseram que se julgava Rimbaud;
Escreveu um epitáfio: disseram que se julgava morto.

Lendo os seus poemas -chamemo-os assim, talvez não mais de “mini”, pois o poema é sempre maior que a forma que ele contém- lembrei-me de René Char, E.E. Cummings, Samuel Menashes, Giuseppe Ungaretti e D.H. Lawrence. O texto traduzido a seguir poderia ser colocado lado a lado de um pansie (forma anglicizada do francês pensée) - título de um livro de poemas-pensamentos de D.H. Lawrence:
Cavalo imaginando Deus
“Apesar do que dizem, a idéia de um céu habitado por Cavalos e presidido por um Deus com figura equina repugna ao bom gosto e à lógica mais elementar, raciocinava dias destes o cavalo.
Todo mundo sabe -prosseguia em seu raciocínio- que se os Cavalos fôssemos capazes de imaginar Deus, o imaginaríamos na forma de Ginete.”

Tomado de La letra e, México, Era, 1987.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

short lived like a butterfly

Diante da imagem em P&B, de baixíssima definição, que espelhava a performance, o artista alienado manipulava frequências no ferro-velho eletrônico, que remetiam à ante-sala do consultório ou à Internet discada. A experiência, muito mais agonicamente vivida que a existência de uma borboleta, durou cerca de uma hora. Ao final do desconcerto, na sala ecoou o vazio, envolvendo todos numa atmosfera de frouxidão.

domingo, 11 de julho de 2010

MINIMUM RES (COISA MÍNIMA)

AFORISMO SEM NENHUM PRÉ-JUÍZO (para Valdivino Braz)

Em terra de cego, quem tem um olho só é semi-ótico.



ARTE É INTERPRETAÇÃO

Uma obra de arte é um signo. Como tal já é interpretação, antes mesmo de ser interpretada. Ela representa algo para um intérprete futuro. Esse intérprete futuro é virtual.

Signo de quê? Do objeto que “aparece” por meio da mediação que a obra de arte faz entre o objeto ―que não é individual, mas múltiplo, o universo “criado” pelo artista, algo que é “dado”, ou seja, “aparece” por meio dela― e um intérprete futuro. O primeiro intérprete desse signo assim “criado” sendo o próprio artista.

É interpretação, de algo anterior a ela, desde a origem, seja na forma de pintura, partitura, livro, filme, já é uma interpretação. Como se dá essa interpretação é que vai definir se ela é arte. É olhando para o produto “criado” que podemos emitir algum tipo de julgamento. Claro, há muita subjetividade envolvida nesse julgamento, mas ele não pode ser somente subjetivo.

OBJETIVIDADE DA ARTE

Há uma objetividade na obra de arte que está na origem desta como um signo (algo que não vive numa esfera à parte, mas está sempre “grávido” de mundo, de um objeto). Uma pintura não deixa de ser arte quando se apagam as luzes do museu e não há ninguém mais para admirá-la. Ela “contém” algo.

Assim como uma pintura, uma partitura é um sistema de signos, que vai ser lido, “interpretado” por alguém. Obviamente ninguém “tira” Mozart de qualquer partitura Então há um ponto de partida para a música ―uma “ontologia da arte”― que vai ser executada depois, e isso é fixado por quem escreveu a partitura, uma pessoa, mil, não importa. O que importa é o produto.

ARTE É PROCESSO

A vida dos signos é “comunicar idéias”. Como um signo, uma obra de arte está sempre apta a uma interpretação. Essa interpretação é um signo mais desenvolvido, não no sentido de algo melhor, mas de que foi gerado pelo primeiro. A execução da música é um signo mais desenvolvido de uma partitura. Há arte em ambos, arte é processo. Está sempre em processo. Como tal não é “acabada” nunca.
DIGRESSÃO: NEM TUDO É ARTE, MAS TUDO PODE SER INTERPRETADO

Mesmo a arte conceitual precisa de objetos. Duchamp é o caso paradigmático. Affonso Romano de Sant'anna disse que não havia o que ver na última vez que Duchamp foi exposto em São Paulo. Segundo alguns críticos, os “objetos” de Duchamp não são obras de arte, mas reflexões sobre o fazer artístico.

No entanto, essas reflexões não existem apenas na cabeça de Duchamp. Elas ganharam uma forma, que não é ―nunca é― destituída de conteúdo. Algumas pessoas confundem as coisas e passam admirar somente as formas do urinol, sua “beleza estética”. Um artista que visitou a exposição confessou ao jornal que ficou emocionado porque fez girar com a mão a roda da bicicleta ―uma “cópia” da “original”, que foi jogada no lixo pela irmã de Duchamp, que, obviamente, “não entendia” nada de arte.

Dissemos que arte é interpretação. Mas qualquer coisa pode ser interpretada. Um banco de madeira não é simplesmente um banco de madeira. Ele inclui, no próprio processo de fabricação, a forma humana. Tem uma determinada altura, que é a altura que uma pessoa normal poderia se utilizar para sentar. Em alguns casos, pode ter um encosto para os pés. A forma é determinada pela função.

Do mesmo modo, uma roda de bicicleta. Nenhuma forma é destituída de conteúdo. As rodas da bicicleta têm uma função, são feitas para cumprir essa função, que é fazer com que a bicicleta se mantenha em pé e se movimente.

Duchamp pega esses dois elementos que não coexistem (na verdade são antípodas) e cria, reinterpreta, a partir de um conceito, que já é o surrealismo, um novo objeto, que é um “mix” de ambos: um banco de madeira, feito para sentar, que se move! (Ao fazer isso, ele “recria” a bicicleta, de cabeça para baixo, devolvendo uma característica de estranhamento ao que é considerado “normal”).

O “produto final” é também uma idéia ―mais do que nunca um signo, imaterial. Paradoxalmente, essa idéia precisa, como dissemos, de uma forma para se expressar. Não por acaso, os curadores das exposições ganharam destaque. São eles os responsáveis pela organização dessa forma, o que já fazem os museus. Os museus, as exposições, “reinterpretam” as obras, que já são interpretações. A arte morre ―é a tese de Hegel― para se tornar “filosofia da arte”. A História, no entanto, continua.

sábado, 3 de julho de 2010

He liked the dead/Ele gostava dos mortos


Não sendo um Rupert Broke, nem amante de verdade, nele

Nada evocava simplicidade.

Sua alma de medo nunca foi despossuída,
 
E, agora mesmo, por uma caneca de cerveja, três vezes seria vendida
 
Ele parecia desconhecer o amor, apreciar o pavor
 
Acima de todos os sentimentos humanos. Ele gostava dos mortos;
 
A grama para ele não era verde, sequer era grama;
 
Nem o sol era sol; a rosa, rosa; o fumo, fumo; a rama, rama.



De:
The collected poetry of Malcolm Lowry
Tradução: Lauro Marques


No Ruppert Broke, and no great lover, he

Remembered little of simplicity.

His soul had never beeen empty of fear,

And he would sell it thrice now for a tankard of beer

He seemed to have known no love, to have valued dread

Above all human feelings. He like the dead;

The grass was not green, not even grass to him;

Nor was sun, sun; rose, rose; smoke, smoke,; limb, limb.

sábado, 26 de junho de 2010

e.e. cummings


if you like my poems let them
Se gosta de meus poemas deixe-os


if you like my poems let them
se gosta de meus poemas deixe-os
walk in the evening,
caminhar à noite,
a little behind you
um pouco atrás de você

then people will say
aí as pessoas dirão
"Along this road i saw a princess pass
"Ao longo da estrada eu vi uma princesa passar
on her way to meet her lover(it was
a caminho de encontrar seu amante(era
toward nightfall)
perto do anoitecer)
with tall and ignorant servants."
acompanhada de servos altos e ignorantes."


ee cummings
lauro marques

sexta-feira, 25 de junho de 2010

AS POESIAS DE ANDRÉ WALTER




Em 1892, no ano seguinte à publicação de seu primeiro romance, intitulado "Os cadernos de André Walter", André Gide mandou imprimir, num pequeno volume, um complemento, composto apenas de 20 poemas, numerados em algarismos romanos. O título era “As poesias de André Walter (obra póstuma)”. Num prefácio à “edição definitiva”, que reúne as duas obras, de 1930, o autor escreve que é com um certo sofrimento que folheia os seus Cadernos, e mesmo com alguma mortificação, pela quantidade de defeitos que encontra na obra de juventude. “Ao contrário”, escreve ele, “eu leio com prazer algumas dessas Poesias que reapresento junto com os Cadernos. Eu as escrevi quase todas em menos de oito dias, pouco tempo após a publicação dos Cadernos, o que explica seu título, e essa atribuição a um André Walter imaginário, ainda que este estivesse já morto em mim. E mesmo não me parece que o André Walter dos Cadernos tivesse sido suficientemente capaz de os escrever; eu já o havia ultrapassado.”



A seguir, traduzo um poema deste livro:

XV



O PARQUE



Quando percebemos que a portinhola estava fechada,

Quedamos longo tempo a chorar;

Quando compreendemos que isso não serviria para nada,

Retornamos lentamente à estrada.



O dia inteiro, contornamos o muro do jardim,

De onde por vezes nos chegavam ruídos de vozes e de risos;

Pensávamos haver quem sabe festas sobre a relva,

E a idéia nos deixava melancólicos.



O sol à tardinha avermelhou os muros do parque;

Nós não sabíamos o que lá se passava, pois não víamos

Nada, a não ser os galhos que, por detrás do muro, se agitavam

E os quais deixavam cair, de tempos em tempos, folhas.

terça-feira, 22 de junho de 2010

O SILÊNCIO DO ASCETA (SEGUIDO DE UMA NOTA INTERCALADA)

Fala o asceta:
– E quando não tiver mais nada para dizer? Ora, mergulhar no silêncio é uma tarefa muito fácil e agradável. Os sons e os ruídos que brotam como bolhas na superfície do pensamento, forçando-nos a agir, compelindo-nos a algum tipo de ação, como por exemplo, escrever ou falar, é que tornam difícil... viver.

E no entanto, o poeta está continuamente contradizendo o primeiro. É, na verdade, o seu contrário.

Ou antes, preferivelmente, seu complemento.

“– Pois tudo deve ser manifestado, mesmo as coisas mais funestas: ‘Infeliz daquele a quem o escândalo atinge’, mas ‘É preciso que o escândalo surja.’ – O artista e o homem verdadeiramente homem, que vive para uma determinada coisa, deve ter feito antes o sacrifício de si mesmo. Toda a sua vida não deve passar de um caminhar nesse sentido.


“Mas agora, o que manifestar? – Isso se aprende no silêncio.”

(Esta nota que segue entre aspas, em itálico e intercalada ao que escrevi é de autoria de André Gide, que a pensou em 1890, quando veio a lume o Tratado de Narciso – Teoria do símbolo – dedicado a Paul Valéry).

sábado, 19 de junho de 2010

O Privilégio dos mortos

Nietzsche, § 262, da Gaia Ciência: “- A: ‘Qual é o privilégio dos mortos?’ - B: ‘Não mais morrer’”. O computador de Alphaville, filme de Godard, onde escutei pela primeira vez a questão, na voz gutural do próprio diretor francês, sabia responder exatamente bem a pergunta. Essa era apenas uma das citações sem referência do filme, que só descobri, para o meu prazer, muito tempo depois de assisti-lo.

COOL MEMORIES

Baudrillard escreve nos anos 80 um livro em forma de diário chamado Cool Memories. Traduzo da tradução em espanhol:



“Cada pensamento é o último, cada anotação o traço do final, cada idéia não faz mais do que aparecer e desaparecer, igualmente a este planeta feito de auroras e crepúsculos sucessivos. Múltiplas parcelas de uma continuidade hipotética que não existe e que só se pode recuperar em filigrana, depois da morte.”



Para que uma idéia não cintile e desapareça no ar, é preciso que ela seja retida. Cada pensamento é o último. O escritor tem a consciência vívida da morte e que suas idéias comporão no futuro o retrato, máscara mortuária múltipla de si mesmo, dos seus muitos “eus”.

“TAL QUAL” – PAUL VALÉRY (TRADUÇÃO)*

*Tradução Lauro Marques. Em luto pela morte de Saramago
Extraído de “TAL QUAL” – PAUL VALÉRY



Literatura

A obra e sua duração



Todo grande homem entretém a ilusão que poderá prescrever alguma coisa ao futuro; é o que chamamos durar.



Mas o tempo é um rebelde, – e se alguém parece lhe resistir, se uma obra conserva-se à tona e flutua e não é propriamente deglutida – veremos sempre que é uma obra muito diferente daquela que seu autor acreditou ter deixado.



A obra dura na medida em que é capaz de parecer completamente diferente do que seu autor a havia realizado.



Ela dura por se haver transformado, e porque era capaz de mil transformações e interpretações.



Ou melhor, porque ela comporta uma qualidade independente de seu autor, não criada por ele, mas por sua época ou nação, e a qual adquire valor pela mudança de época ou nação.”

terça-feira, 8 de junho de 2010

Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague




O documentário Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague (Les Deux de La Vague), em cartaz em São Paulo, traça um paralelo instigante entre os dois diretores da Nouvelle Vague, cuja amizade na juventude serviu para forjar e levar adiante o movimento.

Mostra que Godard nunca superou o complexo de filho abastado da classe média, enquanto que Truffaut, vindo de baixo, nunca precisou provar isso. Em uma sequência de "Beijos Proibidos", Truffaut manda um recado para Godard por meio do personagem Antoine Doinel, interpretado por Jean-Pierre Léaud (uma cria dos dois, que sofreu nas telas -e na pele- a separação de ambos): "Se for um acerto de contas, não pode ser uma obra de arte".

Opções estéticas e políticas separaram os dois. Truffaut foi chamado de mentiroso por Godard por ter segundo ele uma visão acrítica. A resposta de Truffaut foi que o artista nunca deve ficar atrelado às ideologias do momento. Talvez por isso os filmes de Godard pareçam datados enquanto os de Truffaut são vivos até hoje. Ele foi mais inteligente que Godard nesse ponto e Godard mais ingênuo, como parecem ingênuos seus panfletos marxistas-leninistas.

Godard sobreviveu como mestre metalinguístico e poeta das imagens, enquanto seu discurso envelheceu. E no entanto, a imagem final do documentário é a de Pierre Léaud em “Os Incompreendidos” de Truffaut: uma imagem angustiada e da inquietação juvenil que é o reflexo daqueles (bons) tempos.

domingo, 25 de abril de 2010

Fotos do meu livro de poesia



 



 

Fotos do meu livro de poesia, a sair em junho pela editora carioca Confraria do Vento.
Foto original da capa por James Emery.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Filme em preto e branco

Chove há quatro dias consecutivos na cidade, que respira aliviada depois de um período prolongado de muita estiagem e secura. Mas não é uma chuva intensa, maciça, e sim chega a ser delicada, porém insistente, generosa, ininterrupta, mas sem ser excessiva, cobrindo a cidade e os habitantes com uma camada líquida que deita e literalmente rola pelos ombros dos homens e pelas ruas acidentadas, ladeira abaixo, formando verdadeiras cascatas e rios nos asfaltos e paralelepípedos, correndo por entre carros e homens ― e não parando nem para um nem outro.

Há um trilha sonora intensa e maravilhosa que sufoca os barulhos dos carros e quase que muda se faz ouvir surpreendentemente por cima dos ruídos. Os movimentos dos passantes se tornam lentos e algumas vezes incômodos, como que convidando à reflexão. Diferentemente dos dias ensolarados, em que cada um vai para aonde quiser, na hora que bem entender, a passos rápidos, esportistas, aqui vemos os guarda-chuvas se abrirem e se fecharem formando verdadeiros círculos de veículos separados, isolando seus condutores em cabines únicas, na maioria de cor preta, individualizadas.

O dia inteiro pouco se viu de luz. Embora não estivesse tão escuro a ponto de se acenderem as lâmpadas dos postes, como sói ocorrer às vezes, quando somos pegos de surpresa e quase sempre nos causa uma sensação desagradável de angústia de não saber as horas nem onde estamos. Havia luz, mas filtrada pelas nuvens e pela poluição, chegava aqui em baixo esmaecida e opaca, só tornando o concreto ainda mais feio e cinza, como num filme em preto e branco, feito intencionalmente dessas cores, ao qual assistimos mornamente, com um misto de interesse e tédio, apenas para num determinado momento espetacular de epifania nos depararmos com o conhecimento de que é para nós a nossa própria vida.

Anywhere out of the world!



― É melhor você aparar os pelos do nariz antes de falar com o capitão ― disse George.

Marcelo não via nenhuma razão naquilo. Em que diabos poderia isso afinal afetar serem aceitos ou não?

George mostrou o recorte de jornal: Navio de bandeira holandesa contrata tripulação por período determinado. Destino: Porto de Roterdã, com paradas em África e Europa. Requisitos: ser maior de idade e gozar de boa saúde física além de disposição para trabalhar no mar. Diversos postos e renumeração equivalente. Procurar o capitão do navio no porto da cidade.

Por via das dúvidas, Marcelo apanhou a tesourinha que lhe ofereceu George e enquanto mirava-se no espelho do banheiro ouvia George na cozinha preparando um lanche. George morava sozinho e tentava impressionar Marcelo com sua independência. A mãe cozinhava e mandava a comida para ele em tupperwares que eram consumidos semanalmente. Também semanalmente as roupas voltavam limpas e passadas a ferro. Marcelo nunca tinha preparado nem o café. George cortou uma salsicha em dois e jogou junto com a manteiga na frigideira fazendo subir um cheiro agradável.

Com as narinas aparadas, Marcelo sentou-se no sofá. Escutava um CD de uma coletânea de músicas de Eduardo Duzek. George chegou com a vitamina de leite com toddy e banana e o sanduíche que ambos repartiram.

― Tem essa passagem pela África ― lembrou Marcelo, um pouco sério, enquanto dava a primeira mordida no pão.

― Moleza ― disse George. ― Depois, velho mundo, meu chapa! Na primeira chance a gente desce e chispa... Vamos fumar maconha em Amsterdã!

Os dois eram magros, haviam acabado de entrar na idade adulta, brancos e esticados. George usava óculos e andava sempre com uma carteira de cigarros no bolso. Os dois eram companheiros de porres. Nenhum dos dois nadava.

― Eu sei que tem vaga na cozinha. Por isso falei para cortar o pelo. Higiene, cara, é fundamental ― falava George, o “rei da culinária” e da higiene.

Aquele era o dia que os dois iriam juntos até o porto. Marcelo achava que oportunidades assim só aconteciam em filmes, nunca na vida real. Já se via suando no porão do navio ou lavando o convés ou esticando cordas. (Não sabia bem porque, mas ele achava que o trabalho num navio deveria envolver, em algum momento, inevitavelmente, esticar cordas. Ainda que ele não tivesse a menor idéia do que afinal isso significava.) Ele tinha lido Kerouac e Hemingway e Baudelaire e Rimbaud. E todos falavam em fuga, todos concordavam que partir era a melhor, senão a única, solução. Anywhere out of the world! “― Seja onde for! Contanto que seja fora desse mundo”, não era o que diziam Baudelaire e os românticos?

domingo, 18 de abril de 2010

Revista celuzlose

Quarto número da revista digital, com boa navegação (dá para ler na tela com facilidade), tem textos inéditos de vários poetas contemporâneos brasileiros e alguns estrangeiros, poesia visual, contos, além  de um caderno crítico.

Contém ainda um excerto do segundo volume (a sair) elaborado em torno da pergunta "O que é poesia?" feita a vários autores.  Publicado na revista como um adendo à apresentação do primeiro volume, é importante ler o depoimento de Márcio-André. Segundo vaticina Márcio, mais do que nunca o que todos -fazedores de poemas ou não- desejam ser é o seu próprio poeta, "como fuga ao desencanto que se abate
em todas as instâncias da realidade institucionalizante".

Isso acaba levando a um beco sem saída, em que todos escrevem e poucos leem poesia. Porém será que de fato todos fazem poesia? Será que devemos chamar qualquer coisa de poesia? Ou será mera fuga à realidade institucionalizante? O que é poesia?

Revista Celuzlose

É preciso separar o joio do trigo. Poesia é profissão? Outra pergunta que surge na entrevista de Carlos Felipe Moisés, também na revista. Muitos fazem poesia, mas quantos podem ser chamados poetas?

E no entanto, quanto prazer quando descobrimos um poeta de verdade! Foi o que aconteceu comigo, quando "descobri", tardiamente, Juan Gelman e achei que deveria ler imediatamente toda sua obra publicada.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

AGUAS

La lluvia cae sin preocupaciones de vecino
Cualquer cosa enciende el poema:
la lluvia que cae sin preocupaciones de vecino. O:
¿por qué las maldiciones
brillan como diamantes en el día general?
Las bocas lloran hasta
el último color. Si me dejaran
solo, entraría
en las aguas al sol, dijo Almagro.

Juan Gelman in Valer la pena
(México, 1996-2000)

domingo, 28 de março de 2010

Juan Gelman _Otromundo: antología 1956-2007

Otromundo: antología 1956-2007 - Google Livros

Madrugada

Jugos del cielo mojan la madrugada de la ciudad violenta.
Ella respira por nosotros.


Somos los que encendimos el amor para que dure,
para que sobreviva a toda soledad.


Hemos quemado el miedo, mirado frente a frente al
      dolor
antes de merecer esta esperanza.


Hemos abierto las ventanas para darle mil rostros.

Vicente Huidobro, Portada

"Las mejores cosas sobre mí las han dicho mis enemigos".

Vicente Huidobro, Portada

Altazor

terça-feira, 23 de março de 2010

O Kyklos Tou Nerou/O Ciclo da Água

Musica de Mikis Theodorakis sobre poema de Dimitra Manda
por Angelique Ionatos - Album "Mia Thalassa" (Um Mar)



Mikis Theodorakis- Dimitra Manda- Angelique Ionatos

    O Kyklos Tou Nerou/O Ciclo da Água

Κάθε βροχή και μία μουσική
έτσι όπως κλείνει ο Κύκλος του Νερού
κι η μοναξιά μου μέσα του ανθίζει

Toda chuva traz uma música
encerrando o ciclo da água
que aflora minha solitude

       
     Mia Thalassa/Um Mar

Τέτοια στιγμή να ρθεις
που η μέρα σβήνει
στην αγκαλιά μιάς θάλασσας
γεμάτης μουσική


Chega a hora em que o dia termina
nos braços de um mar
cheio de música

Lançamento de livro

sábado, 13 de março de 2010

Ainda intradoxos- o Mar

Assim como Pound, o livro de Márcio-André lê-se melhor pelas beiradas. No fragmento. No meio da miríade de sinais, que não deve fazer sentido nem para o poeta, fulguram jóias. O mar sempre presente (o Rio). Seleciono estes:

"[falar do mar é uma imposição do mar]"
...

"preferia ser herói do mar e é preciso pedir ao céu"
...

"o mar do sem música"
...

"Os ghindastes [dorsos de cavalos] bebendo do mar

e a chuva

este alaúde com cordas [também] de vidro
teia-cloro

À deriva"
...

E este que não tem a ver (ou terá?) com mar, que de tão "paulistano" deveria ser gravado nos trens que por aqui transitam, ao lado dos velhíssimos Camões:

"A incerteza dos esgotos
[urbe-uretra]


os sonhos subterrâneos do metrô
onde até os poetas têm cartão de ponto
"

quarta-feira, 10 de março de 2010

Intradoxos-O mar

"Nada existe
excepto o
mar" [Tudo caminha para o mar]


Fragmento de Intradoxos, um livro assombroso, de Márcio-André, um Ezra Pound carioca, da Confraria do Vento.

Como isso é verdadeiro! Como estão aguados de mar os poemas!

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Elegia Pão e Vinho -Hölderlin

Elegia Pao e Vinho- Holderlin

Tradução do alemão por Fernanda Ros/Casa das Musas

Fim de Sumário de Incertezas

Ponto final no livro de poemas Sumário de Incertezas. Terminei de preparar um coletânea com os melhores poemas de Sumário e Balada para um Morto, a sair em breve, por uma editora. Parece que finalmente vou estrear em livro. Brrr.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Carnaval 2x4

Passo o carnaval escutando tango e tomando vinho tempranillo. (Dezenas de discos em mp3. De Gardel a Dolores Solá, imperdíveis o CD e o show dela, "Salto Mortal", que vi em BsAs e me emocionou). Que maneira mais maravilhosa de trair a pátria! (rs)

Neste blog argentino pode-se baixar tudo: Taringa

Paludes

29.1.05 ÍNDICE DAS FRASES MAIS NOTÁVEIS DE PALUDES, DE ANDRÉ GIDE

Pág. 11 ― Disse: Ah! você está trabalhando?

Pág. 107 ― Precisamos carregar até o fim todas as idéias que suscitamos.

Pág. 28 ― Bom para Paludes.

Pág. (*)
.........................................................................



(*) Para respeitar a idiossincrasia de cada um, deixamos a cada leitor a tarefa de completar esta página.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

3 poemas

O Poeta



Acostumar-se a este ofício

Que não é melhor, nem pior

A nenhum outro

Mas que é o único em que te sentes

Igual a ti mesmo e teus semelhantes

Com todas tuas garras e dentes

E preocupar-se com mais nada



A poesia



A poesia é um longo e interminável diálogo entre poetas, no qual se entra como num rio caudaloso. Igual perigo de afogar-se nessa corrente.



Buenos Aires (*)


Não sei quando voltaremos, Buenos Aires

talvez nunca, talvez esta noite, talvez nunca

quem sabe?

Talvez esta cidade seja como todo o resto

criado pelo imprecavido intento humano

de reinventar-se.

Talvez não seja mais que isso, uma breve ilusão

rodeada de praças bem ou mal iluminadas

Um labirinto efêmero em que se perder

e ao qual sonhamos, constantemente, reingressar.

_________

(*)Fiquei com medo de ter roubado o poema Buenos Aires de Borges ou de alguma coisa que li sobre Borges. O fato é que a figura do labririnto ---e do labirinto dentro do labirinto, penso no cemitério da Recoleta--- é inseparável daquela cidade. Estou carregando na minha mochila o volume 1 das obras completas do homem, em que consta "Fervor de Buenos Aires", primeiro livro (e de poesia) dele. Tinha lido antes e não tinha gostado, agora depois de ter conhecido BsAs passou a fazer outro sentido.