segunda-feira, 30 de abril de 2007

DO CADERNO AZUL - OUTONO



Notas para um conto.
Um homem espera num chalé no alto de uma montanha, após ter cometido um ato. Que ato? O que espera? Quem virá encontrá-lo?

Sugere-se que cometeu um crime (assassinato) por encomenda e espera o autor do pedido ou a polícia. O conto termina desviando o olhar, à maneira dos filmes de Godard, para os próprios pés, para o chão, a estrada.

Talvez seja possível incluir, nem como uma espécie de comentário posterior ou epígrafe, alguma coisa de Platão, no Fedro, quando diz: “É isso precisamente o que a escrita tem de estranho e que a torna muito semelhante à pintura. Os produtos desta apresentam-se na verdade como seres vivos, mas, se lhes perguntares alguma coisa, respondem-te com um silêncio cheio de gravidade. O mesmo sucede também com os discursos escritos.”

* * *

A solidão da invenção.
― Para escrever, basta a solidão e um papel. Para escrever bem, talvez seja necessário alguma outra coisa.

Olhou o céu azul pálido, como lavado, e alinhado de nuvens excessivamente embranquecidas pela luz de verão.

― Fernando Pessoa tinha essa mania de descrever o estado do céu, em “O Livro do Desassossego”, mas, merda, isso também cansa ― pensou.

* * *

Era preciso estar numa cidade estranha esta noite. Num quarto de hotel vagabundo, açoitado pelo vento. Sem mãe, pai, esposa, filho ou amigos a quem recorrer. Era preciso estar num quarto escuro, numa cidade estranha, esta noite. Onde ninguém relembrasse meu nome, onde eu não tivesse língua alguma a quem me comunicar.

É verdade, eu já estive lá.

* * *

Há certos caminhos que precisam ser retomados.

O que é a solidão para um homem? Será o mesmo para uma mulher?

Por que as frases deslizam no papel?

No meu caderno azul que precisa ser trocado, de velho, marcas.

Fragmentos de uma briga em que eu tentava me comunicar pela escrita. Na primeira linha: “Caiu no”, e uma linha abaixo, parecendo uma notação musical, deslocada para direita: “meu” e quase na mesma linha, mas um pouco acima, faltando uma letra: “Cai”, e pulando uma linha, no mesmo estilo de escrita na diagonal, a palavra “conceito”.

A raiva era tanta que as letras saíam tortas, repetidas, como num gaguejo.

Aquilo soou para ela como se eu chamasse a mãe dela de puta ou pior. E, impressionante, totalmente por acaso, um recado anotado no mesmo caderno, deixado ali para ser lido, na ausência dela, de um outro dia, já distante, com a letra dela, femininamente perfeita, na página imediatamente anterior: “Muitos beijinhos, meu amor”.

Nos fragmentos, a vida, o murmurinho do mundo.

* * *

Qual a melhor forma de se apagar senão inventando para si mesmo um duplo?

É o que une Paul Auster e um punhado de outros bons escritores a André Gide. Dois autores que citei com freqüência aqui nessa minha coluna pretensiosamente despretensiosa. Talvez, pensando melhor, fosse bom eu também criar um duplo para mim mesmo, que executasse a tarefa.

Leituras de outono.
Recentemente dois “lançamentos” de autores a quem também já fiz referência me chamaram a atenção. Um deles é de 1961, finalmente traduzido para o português. “O Estaleiro”, romance do escritor uruguaio, Juan Carlos Onetti. Dele, escreveu André Sant’anna em resenha de amanhã (no caderno Mais! da Folha de São Paulo, 15/4, que leio nesta noite de sábado, 14/4): “Onetti trabalha enfurnado na insignificância, com personagens insignificantes, em um cenário insignificante, onde nada de fantástico jamais acontece.” Mas é provável que o leitor, prognostica ele, “na insignificância da leitura de ‘O Estaleiro’”, “sinta uma agonia profunda, sinta o cheiro da morte, o gosto do nada”. O improvável leitor fiel desta coluna deve estar se lembrando do que eu disse sobre o filme “O Cheiro do Ralo”. Por isso mesmo, acrescento, Onetti é um autor que “significa” muito ou quase tudo (representa uma coisa por meio de outra, ausente, que se faz presente no ato da leitura). Ele surpreende, sim, por sua linguagem e estimula a imaginação do leitor. Ao contrário do que estranhamente afirma Sant’anna logo no início da resenha.

Outro “lançamento” saído pela Topbooks é “Tempo dos Mortos”, uma reedição da trilogia “Estação da Morte”, “O Enigma” e “O Sonho”, do poeta, escritor e memorialista cearense, José Alcides Pinto. Alcides é autor do fragmento, fincado na memória: “Oh, a beleza que cuspo quando sonho ― o puro licor que adoece.”

Eis aí uma seleção, caro leitor, do que você pode talvez querer ler no seu outono, o qual, ao que tudo indica, salvo disposições em contrário, já começou.

2 comentários:

Anônimo disse...

li teu blog ontem antes de ir dormir como faço às vezes e sonhei contigo conversando com o mia couto... tu contava de teu pai ouvindo beethoven no carro...nossa, acho que ando com isso na cabeça desde que li há muito tempo atrás...abração... (quem perguntou por vc foi o ronaldo bispo...)

Lauro Marques disse...

Ó pá, manda cá notícias! Saudades de ti, que sumiste desde aquele dia de sol e de teu pai morto em São Paulo, em que bebemos uma cerveja à vida. Tue, eu, e o Bispo somos camaradas para toda a vida, não esqueça.