segunda-feira, 21 de maio de 2007

NOTAS VAGABUNDAS




Obrigado linhas brancas. Obrigado por me salvarem mais uma vez esta noite. Eu que sempre desprezei o conceito de “arte como terapia”, me valho dele aqui hoje. Bem, eu não devo estar fazendo “arte” nenhuma agora mesmo, então foda-se. Eu apenas tento manter o movimento da caneta em minha mão. Tento me manter vivo.

Eu poderia estar matando alguém esta noite ou sendo morto - movimentos diferentes das mãos (me matar, esqueçam, está completamente fora dos meus planos)...

Parou e olhou para a janela, a noite como sempre convidativa e atraente, com suas luzes piscando das janelas dos edifícios vizinhos no ar úmido. A noite parecendo uma cadela no cio. Na TV de outros apartamentos, o papa desfilava em meio à multidão. Alemães, “Deutschen” - os “pagãos”, e agora um santo brasileiro. Aguardente e cristianismo nas reservas indígenas. Narcóticos europeus.

Especialmente ele agradecia pelo silêncio dessas linhas brancas, as quais ia ferindo com a ponta aguda da caneta. Vocês sabem conduzir uma conversa, vocês sabem me mostrar quando estou sendo ridículo ou totalmente enganado. Vocês sabem que eu sou mais um prisioneiro de vocês. Vocês não pedem nada em troca. Vocês fingem que me compreendem ou será apenas a indiferença que me atrai? Porque vocês aceitam tudo e não reclamam nunca. Toda conversa fiada ou mole, toda estupidez humana ou divina....

Pensou na frase de Nietzsche e na sua crítica dos santos cristãos, “os quais suportavam a vida somente por pensarem que, vendo sua virtude, cada um seria tomado de desprezo por si mesmo”. Foi um pensamento absurdo que lhe veio à mente,como qualquer outro.

O importante é tê-los por perto. Nunca compreendeu que se escrevesse em guardanapos, caixas de sapatos e quejandos, especialmente esses últimos. Cadernos com marcas de vinho, batom vermelho, manchas de café e manchas de tinta de uma imitação barata de uma marca igualmente barata de caneta, e uma alma vagabunda demais para ser vendida - admitiu. E seja lá como for, ele não a venderia nunca. Gostava de tê-la só para si, inacessível. Enfurnada num corpo que não a continha nem pela metade, nem quando deitado ao comprido. Daí que precisasse ir para fora, para além dele, e por isso esses cadernos inúteis, muito úteis para ele.

Tomou um gole do vinho cujo rótulo informava que cangurus de verdade pulavam no meio dos vinhedos da Austrália. Pensou na mãe canguru (cuja palavra em língua australiana significa “não sei”) carregando garrafas de vinho na bolsa marsupial, outro pensamento absurdo.

Meus sentimentos? Costumava dizer. Meus pêsames, eles morrerão comigo, são incomunicáveis.

Eu não sou como o vinho, você não pode se embebedar comigo. Eu não sou como o vinho, não tenho nem um pingo dessa nobreza. Eu não sou como o vinho, no máximo, eu posso deixar marcas na sua língua e dentes. No máximo, eu posso ir embora enquanto você dorme ou morrer jovem... estragar no dia seguinte.

Como essas notas vagabundas.

Um comentário:

Anônimo disse...

seria redundante dizer: maravilhoso blog, excelentes textos. não seria por menos. bravo! beijos, pedrita