terça-feira, 29 de maio de 2007

Sobre estética e cosméticos: anotações para uma possível crítica do “boudoir”

“Estética e cosméticos são para o boudoir. Busco a verdade. Pura verdade para um homem puro.” James Joyce, em Ulisses.


A partir do livro “A Ideologia da Estética” de Terry Eagleton




Um artista em São Paulo joga centenas de pérolas (não valiosas) no Rio Tietê, como forma de protestar contra a poluição do rio. O gesto, que poucas pessoas presenciam, gera uma reportagem nos principais jornais, na qual somos informados que 32 mil litros de esgoto não tratado são lançados por segundo (!) no rio. Não há uma “obra de arte” específica, um objeto, só um gesto, que é uma tentativa de introduzir elementos esteticamente expressivos numa atitude política. (Assim como seria o terrorismo para Habermas).

Ao mesmo tempo é uma forma de capitalizar a atenção para o autor da iniciativa. Quem sabe ele não será chamado pelo Estado no futuro para fazer uma “intervenção” em uma área pública, ou seu nome não seja cogitado para a próxima Bienal que discutirá, pela ducentésima vez, a relação entre a arte e cidade? A “transgressão” está mais do que institucionalizada. Foi preciso primeiramente o consentimento do poder governante para a realização do ato, cujos efeitos na resolução do problema além disso são bastante duvidosos.

Do Romantismo ao Modernismo, afirma Terry Eagleton, em “A Ideologia da Estética”, a arte busca tornar vantajosa para si a autonomia que ganhou com sua condição de mercadoria - livre das funções sociais tradicionais no interior da Igreja, do tribunal ou do Estado, ganhando a liberdade autônoma da mercadoria. Ela passa a existir para qualquer um que a possa apreciar e que tenha dinheiro para comprá-la. Numa tentativa de escapar a essa nova condição, a vanguarda revolucionária proclama que o problema da arte é a própria arte: “Abaixo com as bibliotecas e os museus”; “não há obras de arte, só gestos, happenings, manifestações, provocações”, declara. Comporta-se assim como “crianças rebeldes tentando chocar seus pouco escandalizáveis progenitores”, segundo Eagleton.

No momento atual, apesar de a produção artística representar um papel cada vez menos significativo na ordem social - após esta ter marginalizado o prazer, reificado a razão e esvaziado inteiramente a moral - adverte Eagleton, a estética propõe colocar novamente as três regiões do estético, ético e cognitivo em contato umas com as outras. Ela fará isso articulando os três discursos, engolindo os outros dois. Tudo agora deve se tornar “estético” - que não se confunde mais com o belo, mas que diz respeito a tudo aquilo que apela à intuição, ao sensível, ao corpo. Até o feio, o repugnante, tem sua legião de admiradores, chegando a ponto de existirem espetáculos em que o artista se automutila diante da platéia, ou as pinturas feitas com o próprio sangue (se for HIV+, “melhor” ainda), animais conservados em formol e expostos cortados ao meio ou ainda a exibição de cadáveres em museus.

A estética se assenhoreia de seus territórios vizinhos, modelando-os a partir de si, com muito pouca atenção por sua especificidade discursiva. No seu caráter autotélico, de fim em si mesmo, guarda ainda uma perturbadora afinidade com a idéia do mal. “O mal não é só uma questão de imoralidade, mas um prazer ativo e sádico com a miséria humana e a destruição; e que, aparentemente entrega-se à destrutividade como um fim em si mesmo”, afirma Eagleton.

Não há portanto porque assumirmos como positiva essa predominância da estética sobre os outros discursos. Assim como, por um outro prisma, não deve haver também nenhuma virtude “automática” numa arte que abrace os temas da experiência comum. No capitalismo de consumo, com a cultura totalmente estetizada, é de se perguntar até onde vai a função crítica de manifestações como essa do artista que protestava contra a poluição do Rio Tietê.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

NOTAS VAGABUNDAS




Obrigado linhas brancas. Obrigado por me salvarem mais uma vez esta noite. Eu que sempre desprezei o conceito de “arte como terapia”, me valho dele aqui hoje. Bem, eu não devo estar fazendo “arte” nenhuma agora mesmo, então foda-se. Eu apenas tento manter o movimento da caneta em minha mão. Tento me manter vivo.

Eu poderia estar matando alguém esta noite ou sendo morto - movimentos diferentes das mãos (me matar, esqueçam, está completamente fora dos meus planos)...

Parou e olhou para a janela, a noite como sempre convidativa e atraente, com suas luzes piscando das janelas dos edifícios vizinhos no ar úmido. A noite parecendo uma cadela no cio. Na TV de outros apartamentos, o papa desfilava em meio à multidão. Alemães, “Deutschen” - os “pagãos”, e agora um santo brasileiro. Aguardente e cristianismo nas reservas indígenas. Narcóticos europeus.

Especialmente ele agradecia pelo silêncio dessas linhas brancas, as quais ia ferindo com a ponta aguda da caneta. Vocês sabem conduzir uma conversa, vocês sabem me mostrar quando estou sendo ridículo ou totalmente enganado. Vocês sabem que eu sou mais um prisioneiro de vocês. Vocês não pedem nada em troca. Vocês fingem que me compreendem ou será apenas a indiferença que me atrai? Porque vocês aceitam tudo e não reclamam nunca. Toda conversa fiada ou mole, toda estupidez humana ou divina....

Pensou na frase de Nietzsche e na sua crítica dos santos cristãos, “os quais suportavam a vida somente por pensarem que, vendo sua virtude, cada um seria tomado de desprezo por si mesmo”. Foi um pensamento absurdo que lhe veio à mente,como qualquer outro.

O importante é tê-los por perto. Nunca compreendeu que se escrevesse em guardanapos, caixas de sapatos e quejandos, especialmente esses últimos. Cadernos com marcas de vinho, batom vermelho, manchas de café e manchas de tinta de uma imitação barata de uma marca igualmente barata de caneta, e uma alma vagabunda demais para ser vendida - admitiu. E seja lá como for, ele não a venderia nunca. Gostava de tê-la só para si, inacessível. Enfurnada num corpo que não a continha nem pela metade, nem quando deitado ao comprido. Daí que precisasse ir para fora, para além dele, e por isso esses cadernos inúteis, muito úteis para ele.

Tomou um gole do vinho cujo rótulo informava que cangurus de verdade pulavam no meio dos vinhedos da Austrália. Pensou na mãe canguru (cuja palavra em língua australiana significa “não sei”) carregando garrafas de vinho na bolsa marsupial, outro pensamento absurdo.

Meus sentimentos? Costumava dizer. Meus pêsames, eles morrerão comigo, são incomunicáveis.

Eu não sou como o vinho, você não pode se embebedar comigo. Eu não sou como o vinho, não tenho nem um pingo dessa nobreza. Eu não sou como o vinho, no máximo, eu posso deixar marcas na sua língua e dentes. No máximo, eu posso ir embora enquanto você dorme ou morrer jovem... estragar no dia seguinte.

Como essas notas vagabundas.

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Cuspidelas para o alto: pseudo-escrito



“Talvez eu nem sequer seja escritor”, escreve, “mas apenas alguém que rabisca de vez em quando garranchos ininteligíveis em seu caderno”.

Pegou um trecho qualquer e leu: “Quando o vento veio irritar, enrugando, a superfície da água...”. O texto não tinha início nem fim.

Mais adiante, achou essas anotações encabeçadas por um título curioso, e, é claro, não plenamente desenvolvido e também deixado incompleto: “Da culinária dos nômades: lições de sobrevivência”. Cito um trecho:

“Comida do nordestino. Foi feita para viajar. Um pedaço de rapadura e a carne salgada e seca ao sol duram meses. Nisso temos em comum com os povos nômades (...) O sertão não é deserto. Talvez nem mesmo o deserto seja tão deserto assim para quem vive nele. Logo saberá descobrir-lhe os oásis.”

“Há desertos nas cidades grandes que são mais desertos que...”.

Parou neste ponto, perigosamente perto de um lugar-comum.

Depois, essas anotações sobre a Beleza:

“A beleza não existe. Ponto. O artista deve ser obrigado a inventá-la. Uma das formas de inventar a beleza é mostrando seu extremo oposto. O feio. O feio existe. Logo, a beleza pode ser imaginada...”

Pensou ter encontrado uma “palavra-valise”, mas, enganou-se. A valise não continha nada.



Etílicos e suicidas

“Melhor/ morrer de vodca/ que de tédio!”, escreve Maiakovski num poema dedicado a Sierguei Iessiênin, que se suicidou num quarto de hotel, em Leningrado, em 28 de dezembro de 1925, aos 30 anos. Cortou os pulsos e escreveu com o próprio sangue estas duas estrofes na parede (tradução de Augusto de Campos):

Até logo, até logo, companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.

Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer, nesta vida, não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo.

No mesmo poema, já citado, em que responde lindamente a essas linhas, Maiakovski quase que admoesta o amigo: “Nesta vida / morrer não é difícil./ O difícil /é a vida e seu ofício.” (Tradução de Haroldo de Campos). Ele que, no entanto, cinco anos depois, em 1930, quando tinha 37 anos, também se suicidou, com um tiro no peito, imitando a si mesmo num dos seus poemas famosos.

Em “A flauta vértebra!” (1915), ele afirma: “Seria melhor talvez / pôr o ponto final de um balaço” (Trad. De Haroldo de Campos).

Quem morreu mesmo de vodca, dizem, foi Paulo Leminsky. E é Carlos Heitor Cony, num prefácio às “Novelas Nada Exemplares”, do também curitibano Dalton Trevisan, quem diz: “Um moço em Curitiba só tem um remédio: afogar-se. Como não há mar, um tonel de rum serve”.

Ultimas notícias

Extra! Extra! Deu entrada no Hospital da Poesia, recentemente, mais um poeta, vítima do trocadilhismo - doença medieval que reaparece de tempos em tempos entre nós. A vítima foi internada, suspeita-se, devido à ingestão conjunta de uma “Mc-rima” com um “Rilke-Shake”.