segunda-feira, 4 de agosto de 2008

O TOALETE OU HAMLET


Comecei a comentar o texto de Stanley Fish, traduzido na Revista Bula, “As Humanidades nos salvarão?”, mal tinha terminado de ler. O que segue é um apanhado, com alguns acréscimos, do que comecei a rascunhar na ocasião, na própria seção de comentários da revista.

Concordo que o estudo das Humanidades não salva ninguém. Ponto. Aliás, é muito mais condenar, ao desemprego, por exemplo, do que salvar. No nosso País, então nem se fala. Só que Fish pensa demais como americano, confortavelmente instalado num posto de prestígio de uma universidade de um País tremendamente rico, e não só culturamente. (Ele é professor emérito de Humanidades na Davidson-Kahn Distinguished University e decano do College of Liberal Arts and Sciences da Universidade de Illinois em Chicago.)

Imagine um mundo sem arte. Imagine o Afeganistão dos talibãs ou a América fanática de Bush que nega Darwin (coisa que dificilmente alguém letrado defenderia). Ou o Brasil com seu povo explorado e feliz, se achando um habitante do Paraíso. Eis aí os “efeitos concretos” experienciáveis de um mundo sem acesso às Humanidades.

Nesse texto não acho que ele esteja questionando apenas a utilidade “prática” das interpretações de textos literários, ainda que esse possa ter sido seu alvo inicial, mas coloca em xeque o próprio valor desse estudo. E por extensão das artes. É o velho argumento, com uma roupagem nova, de que é melhor investir na cura de doenças do que em teatro, livros, ou no estudo das artes. (À primeira vista fica difícil de negar que não seja assim). A questão toda gira em torno do financiamento do departamento de Artes e Humanidades. Ao que parece, para Fish, os integrantes desse departamento não têm o direito de reclamar da ausência de financiamento. Afinal não há como justificar tal financiamento, as Humanidades não servem para nada, elas não produzem efeitos “palpáveis”, a não ser proporcionar prazer aos seus apreciadores. Elas não servem a um bem maior, mas são seu próprio bem.

Em um artigo chamado “Verdade e Toaletes: Pragmatismo e as Práticas da Vida”, Fish diz também que “pontos de vista filosóficos são independentes dos pontos de vista de uma pessoa (e logo de suas práticas) em qualquer outro domínio da vida diferente do domínio muito específico e refinado do fazer filosófico”. O mesmo, segundo ele, se dá com o estudo das Artes e Humanidades em geral. Não nos torna mais nobres ou pessoas melhores, mas mais habilitados a responder sobre esses campos específicos, quando solicitados. E Fish ainda afirma, nesse mesmo artigo publicado como uma reflexão sobre a coletânea “O revival do pragmatismo”, de 1999: “A tese de que toaletes são mais essenciais à vida do que a filosofia me parece auto-evidente”. No fundo ele tem razão,o estudo da arte e humanidades não salva a vida de ninguém, mas saneamento básico, e a existência de banheiros, sim.

A minha total discordância é quando ele afirma que as Humanidades, o estudo ou ensino ou a prática disso, “não podem produzir efeitos concretos”, e só podem ter sua existência justificada, “em relação ao prazer que dão àqueles que as apreciam.” Ele está obviamente minimizando o impacto da Cultura na sociedade, e reduzindo tudo a uma questão hedonista. Para ficar num caso bem conhecido, lembremos que Hitler utilizou argumentos estéticos (de raça “pura”) para propor varrer os judeus da Alemanha. Não só para o “bem”, mas para o “mal”, uma esfera influencia a outra. Essa pretensa autonomia dos saberes que ele pretende não existe.

Levada ao extremo a opinião de Fish, nem deveria haver ensino de filosofia ou humanidades em geral em países pobres como o Brasil. Realmente não há como justificar o financiamento dessa área em relação a outras muito mais “rentáveis”. É justamente por propor um distanciamento entre as diferentes áreas do saber, que Fish só consegue justificar a existência da área em que atua recorrendo à noção gasta de prazer.

A milésima interpretação de Hamlet é tão “útil” à sociedade quanto foi a primeira e quanto será a milésima primeira. Não se pode medir a produção acadêmica desse modo. Hamlet continuará sendo lido e estudado enquanto houver pessoas dispostas a lê-lo e ensiná-lo ― e fazem isso porque o julgam merecedor de tal ato, como algo importante em suas vidas.

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