sexta-feira, 28 de abril de 2006

O mistério que é Portugal. Bebo este vinho alentejano tinto, cujo rótulo informa que "Deverá ser bebido em boa companhia". Divido-o, pois, com Schubert, Joyce, e bolinhos de bacalhau, minhas memórias, a ausência de minha amada, Tom Waits, Diana Krall, Vinicius de Moraes, esta cidade escura e tão bela (tão assusta-seduto-ra), à noite, a moça com cara e roupa de puta tossindo no Metrô.
Noite... noite... noite... Esta hora?

A mulher na noite




Eu fiquei imóvel e no escuro tu vieste.
A chuva batia nas vidraças e escorria nas calhas – vinhas andando e eu não te via
Contudo a volúpia entrou em mim e ulcerou a treva nos meus olhos.
Eu estava imóvel – tu caminhavas para mim como um pinheiro erguido
E de repente, não sei, me vi acorrentado no descampado, no meio de insetos
E as formigas me passeavam pelo corpo úmido.
Do teu corpo balouçante saíam cobras que se eriçavam sobre o meu peito
E muito ao longe me parecia ouvir uivos de lobas.
E então a aragem começou a descer e me arrepiou os nervos
E os insetos se ocultavam nos meus ouvidos e zunzunavam sobre os meus lábios.
Eu queria me levantar porque grandes reses me lambiam o rosto
E cabras cheirando forte urinavam sobre as minhas pernas.
Uma angústia de morte começou a se apossar do meu ser
As formigas iam e vinham, os insetos procriavam e zumbiam do meu desespero
E eu comecei a sufocar sob a rês que me lambia.
Nesse momento as cobras apertaram o meu pescoço
E a chuva despejou sobre mim torrentes amargas.

Eu me levantei e comecei a chegar, me parecia vir de longe
E não havia mais vida na minha frente.


-Vinicius de Moraes
Rio de Janeiro, 1935
in Forma e exegese
in Antologia Poética
in Poesia completa e prosa: "O sentimento do sublime"
Fonte: (imperdível): http://www.viniciusdemoraes.com.br/

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