terça-feira, 27 de março de 2007

SARDINHA EM LATA

Minha propensão para o diarístico.

Já não posso viver sem meu caderno de notas e a caneta. (Desespero: ficar numa casa sem caneta e papel é o equivalente a ter perdido alguma capacidade).

Trocar de caderno.

Quando não escrevo parece que não “vivi direito” aquela semana.

Leitura de Paul Auster, “A invenção da solidão”.

Sugestão de minha irmã. A primeira edição da tradução brasileira é de 1999. Nosso pai já estava morto havia oito anos.

A sombra de meu pai. Meu pai, uma sombra. Nos primeiros tempos, não o procurava. Ele me aparecia em sonho. Lembro do horror de acordar e pensar que ele já não estava lá, eu havia sonhado com ele. Sonhava com um abraço. Um sorriso. Aos poucos foi deixando de existir. Não lembro se nos falávamos nesses sonhos. Lembro de uma frase ditada em meio ao sono não tão profundo. A frase era uma espécie de enigma, que eu logo desvendei: “Os óculos ficaram todos vermelhos”.

Meu pai morreu aos 52 anos num acidente de carro, no dia 31/3 de 1991. A placa do carro era 1331. No dia anterior, eu completava vinte anos.

Naquele dia, um domingo, eu escutei uma canção de Tom Waits, cuja letra dizia: “Nunca dirija um carro se estiver morto”.

Meu pai estava vivendo uma espécie de “separação branca”. Isto é, eles estavam morando em cidades diferentes. Ela, em Natal, com os filhos, e ele em Mossoró, a 4 horas de viagem. Ele ia e vinha todo final de semana.

Naquele dia estávamos nos recuperando de alguma desavença. A regra era adotar o silêncio nesses casos. Até que viesse enfim o perdão, tão natural quanto coçar o nariz ou espirrar, como pensávamos na nossa família. Às vezes acho que pusemos muito peso nessa crença de que tudo seria redimido, não importando o que fosse feito. Muito Cristão, convenhamos.

Nós tínhamos acabado de voltar a nos falar. Estávamos bebendo vinho e conversando, em comemoração ao meu aniversário. Tivemos poucas conversas de fato. Meu pai sempre viveu num mundo próprio, que não era o meu, não era de ninguém. Era só dele. E me pergunto se o mesmo não se dá a propósito de todo mundo (essa, aliás, é a conclusão a que chega Auster, até onde eu li o livro. Ilustração da capa: uma lata de sardinha aberta e dentro outra lata fechada).

Fui a última pessoa a vê-lo com vida, quando me despedi, já dentro do carro. Poucas horas depois ele estava sendo arrastado por alguns quilômetros, preso à carroceria de um caminhão, até que o motorista percebesse que alguém havia batido na traseira do veículo e encostasse.

No pára-choque do caminhão, sem luzes, e rodando em baixa velocidade, estava escrito: “não me siga, também estou perdido”.

Meu pai morreu escutando Beethoven no toca-fitas, que não parou até acabar o último movimento.

* * *

Auster pai, sobre poesia: se não dá dinheiro, não é profissão.

Judaísmo de Auster.

Marina Tzvetáiveva, poeta russa, citada no livro, após ter experimentado um período de “extrema dificuldade econômica e moral”: “Neste que é o mais cristãos dos mundos/ Todos os poetas são judeus”.

* * *

“Toda a infelicidade dos homens advém de um só fato: o de não terem sabido permanecer quietos dentro de um quarto”: Pascal. A frase, glosada também por Baudelaire em um dos seus “Pequenos poemas em prosa”, chamado “A solidão”, obceca Auster.


Mas o próprio sábio francês depois se emendou: a fonte de todos os sofrimentos é a nossa pobre condição mortal.

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