sexta-feira, 27 de maio de 2016

O avesso e o direito

CAMUS


Esta "Madonna" de Giotto tinha um sorriso maroto


Há muito o que se aprender com livros de estreia de grandes escritores. Não é diferente em relação a O avesso e o direito, de Albert Camus. O livro foi publicado, na Argélia, em 1937, quando o autor d’O estrangeiro tinha apenas 22 anos. Primeira lição: um escritor tem de tomar notas. Não necessariamente escritas. Podem ser também mentais. Ele tem de registrar tudo o que acontece à sua volta. Tudo é matéria do pensamento. Os eventos só são desimportantes para aqueles que também são.

A segunda (ou terceira?) lição é aprender a conviver com os contrários e extrair deles sua soma. O amor de viver nasce do desespero de viver. No que nos aflige está também o prazeroso. É preciso não ter pressa para poder contemplar, na paisagem que se descortina diante de nossos olhos, quase sempre cegos, o avesso e o direito das coisas. Duas faces de uma só medalha.

Uma frase do livro me remeteu para algo que escrevi anteriormente a respeito da qualidade estética no olhar oblíquo dos retratos de grupo de Manet. No penúltimo ensaio, “Amor pela vida”, Camus fala nos “olhos sem olhar dos Apolos dóricos ou nos personagens ardentes e imobilizados de Giotto”. E acrescenta em nota: “É com o surgimento do sorriso e do olhar que começam a decadência da escultura grega e a dispersão da arte italiana. Como se a beleza deixasse de existir onde começava o espírito.”

- Novamente, é preciso não ter pressa. Vemos bem em que a frase atraiçoa o autor. Há, sem dúvida beleza de sobra nos personagens “ardentes” e “imobilizados”, mas nem por isso menos "espiritualizados" de Giotto, que por sinal também podiam sorrir, como na Madonna com um sorriso maroto que ilustra esse post. Por outro lado lembremos que a estatuária grega era repleta de cores, e portanto "ardente", e que só para nós agora ela aparece branca, "espiritualizada", destituída de olhos.

Um exemplo de um torso "carnavalesco".


C'HI

Os chineses têm uma palavra, "C'hi", que significa, entre outras coisas “beleza estática”. O termo só me ocorreu hoje, no momento em que escrevo isto, para descrever, infelizmente ainda de modo muito imperfeito, o que sentia um dia atrás, da sacada desse quarto na montanha, a mais de mil metros de altitude. Enquanto finalizava a leitura de Camus, e observava as dobras do tecido azul, lembrando um manto, da roupa de verão de minha mulher, estendida ao sol do meio-dia, sobre o parapeito de madeira, tendo ao fundo, entrecortado, o verde vibrante das colinas.

Santo Antônio do Pinhal, 4 de janeiro de 2006, atualizado em 16/6/2016

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