quinta-feira, 26 de maio de 2011
A Vida Breve
I
Há livros que não deveríamos ler. Que querem dissipar suas sombras tristes sobre nós, através de nós, tornando-nos seus personagens. Livros assim escravizam. Talvez Onetti fosse louco, assim como todos os grandes escritores (Joyce, Céline, Becket). E talvez escrever seja uma forma de ir adiante. Levantar-se, preparar o café com ovos mexidos, limpar-se, tomar banho, abotoar o paletó e dirigir-se até o escritório. Enquanto sente-se avolumar ao redor as ondas surdas do caos.
II
A "Vida breve", de Onetti, é também cruel . Me fez lembrar de Céline. Personagens esquisitos, desesperados, a morte rondando ao lado, inquieta. E de vez em quando, frases como essa, entre parêntesis, que iluminam o texto como um clarão de cemitério: "(Alguém pisa, estrangeiro, as folhas caídas no bosque; damos sepultura, sem pompa, à última rosa desse verão chuvoso.)". Enquanto gotas, reais, de chuva lavam a janela do apartamento onde digito isso e uma mulher grita, na casa da rua embaixo, pela terceira vez com o cachorro (que insiste em latir).
III
Achado escrito à mão num marcador dentro do livro "A vida breve", de Juan Onetti: "Gosto dos livros porque são solidões portáteis". (A frase, talvez seja necessário acrescentar, é minha).
IV
No fim do romance "A Vida Breve", os personagens, que, diga-se de passagem, são produtos da fantasia criados por outro personagem, Juan María Brausen, estão fugindo da polícia. Fantasiados, "excessivamente escondidos no Carnaval", sem roupas para trocar e sem nenhuma perspectiva, sem dinheiro nem documentos, deixados para trás na fuga, sem ter mais para onde correr, eles sabem que quando acabar esse que é o último dia de folia, eles não vão conseguir passar mais despercebidos. É a hora em que está amanhecendo em Buenos Aires e eles estão sentados numa praça enquanto brindam à má sorte com copos vazios e a um homem muito velho que "alimentava-se de minúsculos mistérios sem importância. Na hora da morte acreditou que se salvaria dizendo estar com sono".
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