quarta-feira, 21 de setembro de 2005

4 X BRASIL

Texto de Affonso Romano de Sant’Anna

(Conferência seminário 4xBrasil( 14.9.2005, Porto Alegre)- a ser publicada pela Ed. Artes e Ofícios.Objetivo: balanço do que ocorreu com o Brasil de 1960 para cá. Outros conferencistas: Fernando Gabeira, Nelson Motta, Luis Carlos Maciel)

No Palácio do Planalto em 2005 estão alguns dos guerrilheiros dos anos 60 e 70.
No Congresso Nacional em 2005 estão vários políticos que nos anos 60 cairam na clandestinidade.
O Presidente do Brasil em 2005 é um metalúrgico que nos anos 70 era líder sindical.
Estou começando a dizer o seguinte: a periferia chegou ao centro.
Estou começando a dizer o seguinte: os marginais de ontem chegaram ao poder.
Estou começando a dizer o seguinte: houve um giro de 180º nos acontecimentos e em nossas perspectivas. Somos num certo sentido uma geração privilegiada porque conseguiu ver e viver o verso e o reverso da medalha. Portanto, urge confrontar épocas e rever toda uma trajetória para nos perguntarmos: “ o que aprendemos até hoje?”(1).

Em 2003 Mick Jagger -o debochado cantor líder dos “Rolling Stones” foi condecorado “Cavaleiro” pelo príncipe Charles da Inglaterra. Aconteceu com a extravagante banda inglesa, o mesmo que ocorreu com os “Beatles” que, tendo desencadeado uma revolução na música e nos costumes, antes também foram condecorados pela Rainha. Naquele tempo dizia-se que os Rolling Stones estavam à esquerda dos Beatles. No entanto, acabaram igualmente no Palácio do Buckingham. O fato de Mick Jagger comparecer à cerimônia da condecoração de tênis, não o afirma a como um indivíduo da “margem”, mostra apenas que o tênis também foi coroado.

Lanço aqui aquilo que em propaganda se chama de “ teaser”- uma frase solta, um slogan prenunciando algo que vem depois numa maciça campanha publicitária. Ou seja: poderia intitular esta comunicação assim. “Da utopia à anomia”. Ou para tornar o texto academicamente mais impressionável e aceito: “Da utopia da modernidade à anomia da pós-modernidade”.
Mas começo falando de nossos iguais, de nós que viemos dos anos 60 e conseguimos, malgrado os obstáculos e nós mesmos, chegar até aqui. Muitos partiram antes. Como disse num poema :

“ Não era isto o combinado.
Eles estão se adiantando, os meus amigos.
Sei que é útil a morte alheia
para quem constrói seu fim.
Mas eles estão indo, apressados,
deixando filhos, obras, amores inacabados
e revoluções por terminar”( 2).

Estou me lembrando, por exemplo, do mítico Betinho, o sociólogo, o irmão do Henfil, o organizador do programa de combate à fome. Mas estou me lembrando do Betinho que era meu colega em Belo Horizonte nos anos 60, quando eu cursava a Faculdade de Filosofia da UFMG e ele a recém criada Faculdade de Ciências Econômicas, de onde saíram vários guerrilheiros, inclusive o saudoso Juarez Brito, com quem conversava sempre no bandeijão da universidade e que virou lugar-tenente de Lamarca e morreu metralhado ou suicidado no Rio.
Betinho é também uma metáfora do que comecei a dizer quando falei dos guerrilheiros no Palácio do Planalto, do presidente hoje que era líder sindical ontem, quando falei do rock enquanto marginalidade e poder.
O Betinho que nos anos 80 voltou de um longo exílio em vários paises, criou o IBASE lançou essa mobilização para combater a fome, foi nos anos 60 e 70 um maoista, que acreditava na revolução como forma de modificar de vez a história. Numa biografia de Betinho feita por Ricardo Gontijo – e para a qual fiz a orelha – há estórias muito pedagógicas, politicamente, sobre sua trajetória de um lado ao outro da experiência humana.
Não é só o Betinho. Olhem essas ONGs espalhadas pelo país. Quantas delas são geridas, quantas foram criadas por ex-guerrilheiros de ontem?
Teria ocorrido um giro de 360 graus da revolução ao assistencialismo?
A mudança estrutural de ontem teria sido substituída pela atuação apenas pontual?
Interessa-me menos qualificar essa modificação do que assinalar formalmente a mudança, uma mudança estrutural de comportamento e visão do mundo.

Ao dizer isto estou já me inclinando noutra direção, direção mais esclarecedora do que está embutido no que estou tentando desdobrar como raciocínio. E o que vou dizer, poderia ser resumido nesta frase: viemos de uma geração de utópicos.
Digo isto e lembro aquela outra frase que lancei anteriormente, meio aleatoriamente quando disse que poderia intitular essa apresentação de: “Da utopia à anomia”.
Começo então pela utopia.
Nossa geração foi criada dentro de uma ideologia utópica: a Modernidade. A Modernidade, aliás, como o Romantismo, são ideologias siamesas, utópicas. Romantismo e Modernidade acreditavam na História com H maíúsculo. Ou seja, na história segundo a visão não apenas marxista, hegeliana e cristã, mas numa História que, para usar uma expressão que tenho empregado em vários textos, caminha em sentido de flecha. Ela parte de um determinado lugar para chegar a outro. A História teria um desenho linear. Sai-se do Gênesis para o Apocalipse, onde nos espera, na catástrofe, a redenção. Os revolucionários marxistas colocaram dentro da catástrofe (ou conflito de classes) a criação do estado dialético onde teríamos a beatitude seráfica dos eleitos da História.
Neste sentido, a arte moderna, que irrompe mais claramente com os manifestos literários no princípio do século XX alardeiam a utopia, o progresso onde a máquina estaria a serviço do artista. (Alguns foram até mais radicais, o homem é que estaria a serviço da máquina, como foi satirizado por Chaplin em “Tempos Modernos”). A mitificação do progresso, constituído como motor propulsivo da história foi tanta, que para fazer logo uma paródia, e pela paródia, como pela charge, traçar melhor o perfil do que estamos dizendo, no Brasil, essa ideologia progressista da modernidade fez com que em qualquer vilazinha se encontre uma “Mercearia Progresso” “ Padaria Progresso”, “Alfaiataria Progresso”. Enfim, isto estava já no emblema de nossa bandeira positivista: “Ordem e Progresso”. (E ler os nomes de ruas, nomes de lojas, enfim as inscrições nos grafitos urbanos é desconstruir certa ideologia). Com efeito, os positivistas também modernos no seu tempo achavam que a história marchava em linha reta. Começava com estado Teocrático (no mundo primitivo) e terminava com o Estado Positivista, onde a razão seria a nova religião, não se sabendo muito claramente onde começava uma e terminava a outra.
Dois exemplos tautologicamente exemplares: Maiakovksly pela esquerda e Ezra Pound pela direita, personagens da vanguarda e do modernismo, ambos tinham uma visão utópica da história. No modernismo brasileiro, de novo Plínio Salgado, que antes de ser líder integralista era escritor pela direita ou Oswald de Andrade e Jorge Amado pela esquerda viveram essa utopia divergente.

Pois os anos 60 foram um período de recrudescimento utópico. A revolução cubana arrebatou toda a nossa geração. Até filósofos que deveriam ser mais sensatos, como Sartre, deixaram-se empolgar. No caso de Sartre, foi mais grave e radical, pois foi também maoísta.
E foi neste contexto que os que estão participando das rodadas dessa discussão surgiram. Lembro-me de Fernando Gabeira, por exemplo, no “Jornal do Brasil”, para onde chamou-me para trabalhar com ele no Departamento de Pesquisa, em 1967, antes de ele cair na ilegalidade e participar do sequestro do embaixador Elbrick. Lembro-me de tê-lo ido visitar na cadeia depois dos ferimentos e tortura. E com ele tenho continuado esse diálogo textual e literário desde seu retorno, quando publicou a autocrítica em “O que é isso, companheiro”, sobre o qual discorri no ensaio “ É isso aí, companheiro”(3).
Lá, naqueles anos e naquele jornal, também estava Nelson Mota (outro colega nestes debates), participando e ajudando a parir o movimento tropicalista e já participando do histórico programa Flávio Cavalcanti na TV Tupi. E Luiz Carlos Maciel, diretor de teatro já ia se configurando como guru, editando o jornal Rolling Stones, escrevendo livros não apenas sobre Sartre, mas tomando Marcuse e Norman 0’ Brown como seus gurus, aplicando-se a expandir o underground e outras formas de utopias marginais.
De minha parte, fazendo agora um depoimento, depois das experiências com os grupos de vanguarda e de ter participado do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE fui lecionar nos Estados Unidos; e na Califórnia, durante dois anos, vi de perto e vivi a utopia da cultura hippie, participei dos “ love-in” dos “teach-in”, das marchas contra a guerra no Vietnam, seja em São Francisco ou Los Angeles. Acho que posso até botar em meu curriculum que assisti até a um concerto dos Beatles em Los Angeles…

Sem complicar muito, como seria lícito fazer em linguagem acadêmica, quando se começa a falar de modernidade, criando uma parábola que sintetize vários pensamentos aqui embutidos, eu tomaria uma frase emblemática daquela época para começar a contrastar com o que ocorre nos nossos dias, esses dias em que uma insidiosa anomia parece nos grudar às sem-saídas do presente.
Daquelas frases de 68 inscritas nos muros de Paris, tomo uma: “É proibido proibir”. Como nos fascinava! Era a liberdade absoluta, uma resposta, na Europa, ao peso da tradição que engessava os estudantes na universidade e no sistema; no Brasil, na canção de Caetano num daqueles festivais, uma reação à censura imposta crescentemente desde 1964.
Essa frase lida hoje tem algumas lições a nos dar. Examinando-a do lugar onde estamos essa “É proibido proibir” deixa de ser uma frase libertária e utópica e passa ser uma frase igualmente autoritária, posto que ao enfatizar o “ proibir”, ainda que paradoxalmente, está reafirmando um centro, uma verdade única. É uma frase tão contraditória quanto aquela fórmula que vulgarmente se aplica à teoria da relatividade: “Tudo é relativo”. Então, podemos paradoxalmente raciocinar: a afirmativa “tudo é relativo” é uma afirmativa absoluta, absolutista, que nega a si mesma, tanto como a frase dos rebeldes jovens de 68 que, ao proibir a proibição remete gostosa e idilicamente para o paraíso, mas pode desencadear também a anomia, a entropia e o impasse.
No contexto em que estamos, quarenta anos depois, descobrimos que ao contrário de “é proibido proibir”, é também legal dizer “Não”, dizer “ Basta”. Diria, correndo todos os riscos de ser mal interpretado, que esta é uma das diferenças fundamentais entre aquele ontem e o este hoje.
Não é verdade que existe liberdade sem limites.
Não é verdade que existe revolução permanente.
Não é verdade que tudo é arte ou que arte seja qualquer coisa que qualquer pessoa chame de arte.
Enfim, não é verdade que qualquer coisa é igual a qualquer coisa.
Não é verdade que uma sociedade (que uma cultura) possa viver sem “valores” e sem um “cânone”. O que não significa que “valores” e “cânone” tenham que ser verdades pétreas. Como disse Whitehead: “a arte de uma sociedade livre consiste primeiro: em manter um código simbólico; e, depois, em não temer a revisão… As sociedades que não podem combinar a reverência aos seus símbolos com a liberdade de revisão hão de deteriorar-se no final”.
E é de revisão que venho falando há tempos.
E para ir ilustrando isto e retomando tanta coisa que tenho diluidamente dito em crônicas, poemas e ensaios, basta lembrar primeiro a famosa frase de um bandido famoso nos anos 70 -Lúcio Flávio. Como se verá, certas frases tiradas dos muros, tiradas da boca de marginais, podem ter a mesma força das frases formuladas por intelectuais e heróis consagrados. Dizia Lúcio Flávio, cansado de ser explorado pela polícia, que o encurralava e achacava para que distribuísse com ela seus ganhos, dizia ele, querendo restabelecer os limites das ações entre a polícia e os criminosos: “Polícia é policia, bandido é bandido”.
Bons tempos aqueles em que se pensava que polícia era polícia e bandido era bandido.
Bons tempos aqueles em que juiz era juiz e ladrão era ladrão. (Isto foi antes do juiz Nicolau e tantos outros).
Ilusórios tempos aqueles em que se pensava que havia limites entre o centro e a periferia, quando os revolucionários sonhavam que chegando ao poder criariam um novo Éden.

Recentemente publiquei um livro- “ Nós, os que matamos Tim Lopes”( Ed. Expressão e Cultura), onde reuni todas as crônicas sobre violência escritas dos anos 70 até recentemente. E uma delas tinha o profético título. “ A história de um país é também a história de seus bandidos”. E propunha que se fizesse uma história dos bandidos para que através desses marginais entendêssemos melhor nosso sistema. Os marginais não são outro sistema. São parte do sistema e metonimicamente o explicam.
Que se faça um estudo comparativo entre o bandido ainda romântico Lúcio Flávio e Fernandinho Beira-mar hoje. Que se faça um estudo sobre o artesanal jogo do bicho ontem e o intrincado comércio das drogas hoje. Que se faça uma análise de como a guerrilha colombiana acabou se misturando com o narcotráfico, e se terá uma noção mais nítida de como certos “valores” se metamorfosearam.
E aqui a chamada “pergunta que não quer calar”: o que a tragédia do PT tem a nos ensinar sobre isto tudo?

Devo esclarecer a essas alturas que nas entrelinhas do meu texto até agora existe um pensamento que tornarei mais explícito. Falo de estratégia epistemológica. Não se deve tentar pensar o confronto entre os anos 60 e os dias de hoje, sem um enfoque epistemológico. E esse enfoque exige que esclareçamos a partir de que ponto de vista emitíamos nossa visão do mundo ontem e a partir de que ponto de vista emitimos nossa visão de mundo hoje. É neste sentido, que ao situarmos a nossa geração como herdeira da utopia e da revolução artística e social, ao localizarmos aí uma ideologia visível e invisível que configurava nossas ações, torna-se necessário esclarecer que ideologia está a nos envolver hoje, para que saibamos criticamente nos comportarmos em relação a ela.
É aí que entra a questão da pós-modernidade. É aí que entra o papel da arte como metáfora ilustrativa de nossos impasses e perplexidades.
Se tomarmos os movimentos que surgiram em torno dos anos 60: a Bossa Nova, o Teatro de Arena, o Centro Popular de Cultura, o Opinião, as Neovanguardas, o Tropicalismo, o Cinema Novo, veremos que eram iniciativas programáticas, com manifestos e idéias apriorísticas. Estão dentro do espectro da modernidade, quando se acreditava na História e no sujeito histórico.
Em torno da década de 80, configura-se mais nitidamente algo que, para uso acadêmico, passaram a chamar de pós-modernidade. Algo que teve aí o seu apogeu, representado sobretudo pelas artes plásticas. Quem acompanhou os debates acadêmicos ouviu insistentemente dizer sobre “a morte da arte”, a “ morte do sujeito”, a “morte do romance”, e tantas outras mortes, a exemplo da “ morte da história”. Tornou-se exemplar disto a afirmativa daquele pensador da CIA que decretou “a morte da história”. Morte da qual, com a maior desfaçatez, depois de ter provocado polêmicas em toda parte, já se arrependeu, produzindo um outro texto dizendo que havia se equivocado.
Há algum tempo venho insistindo numa cantilena de
que precisamos rever a modernidade e a pós-modernidade para iniciarmos um outro tempo ou pelo menos para purgarmos nossos erros e fantasmas de ontem. O livro “Desconstruir Duchamp” foi mais uma tentativa nessa direção. Aí, tomando a arte como metáfora sintomal vejo que as últimas décadas têm sido caracterizadas na arte e em nossas vidas por uma ideologia que privilegia o instantâneo no lugar do projeto; que privilegia a quantidade no lugar da qualidade; que cultua a aparência e o brilho como valores em si; que incita ao supérfluo; que oferece mais o verniz da visualidade do que a imersão na leitura; que louva a marginalidade e a falsa marginalidade; que cultua o lixo como luxo; que impõe o globalizado sobre o nacional e o regional e que cultiva o indivíduo narcísico sobre o social participativo. É como se a utopia se tivesse transformado numa eutopia. Mas a eutopia, aqui não no sentido grego, do “Eu” como sinônimo do “ bom”, mas numa cultura do “ego” enredado apenas em seus fantasmas.
Essa cultura da alienação do sujeito, da isenção de responsabilidade, onde a cópia vale tanto quanto o original tem sua metáfora magnífica no filme de Jorge Furtado- “O homem que copiava”. Os personagens não têm qualquer valor ético, os indivíduos são simples objetos metonímicos e o falso passa por verdadeiro. E aqui, ainda que de passagem uma anotação: não se trata de recair na antiga concepção estática e cêntrica de falso e verdadeiro.Trata-se, isto sim, de observar que ao mesmo tempo que o conceito de falso e verdadeiro faz parte de uma construção conceitual, isto não significa que o falso e o verdadeiro se equivalem, que sejam valores que se anulem.
Esta cultura chamada de pós-moderna nos trouxe também essas multidões sem rumo, das quais os recentes happenings chamados “ flash mob” foram um sintoma. Grupos de pessoas correndo daqui para ali, sem qualquer sentido, porque se decretou que a vida não tem sentido, que a arte não tem sentido, que a vida social não tem sentido, ignorando com essas afirmativas, que esse “não sentido” define já um sentido. Iludem-se ao dizer que “nada tem sentido” que podem escapar à análise. É semelhante à tolice dos que apregoaram o fim “das grandes narrativas”, sem se darem conta que esse discurso sobre o fim das grandes narrativas é uma “grande narrativa” e, como tal, pode ser analisada, desde que se tenham elementos epistemológicos eficientes para a análise do discurso.
No campo da arte dá-se mal entendido semelhante: tornou-se moda com a chamada “arte contemporânea”(nome totalmente impróprio) os artistas se apresentarem como “antiartistas” ou “não-artistas”. Deste modo produzem ”antiarte” e “não-arte”, mas ocupam esperta e hipocritamente o espaço que é da arte: os museus, galerias e livros de história da arte.
É um mal entendido conceitual e linguístico. É como se uma pessoa pelo simples fato de se declarar invisível, passasse a ser invisível. A pós-modernidade exacerbando experiências da arte conceitual acabou enredada no ilusionismo e naquilo que Baudrillard denuncia como um jogo de simulacros.
É como se vivêssemos uma época em que o discurso se descolou totalmente de sua contraparte, o real, como se tivesse se tornado significante puro. Isto pode ser muito estimulante para debates acadêmicos, mas em termos existenciais e sociais é uma alucinação discursiva.
Por isto, terminando, é que insisto no termo anomia. Digo “ anomia” e vou ao dicionário me entender: “1.ausência de lei ou regras; anarquia. 2. Estado da sociedade no qual os padrões informativos de conduta e crença têm enfraquecido ou desparecido..3. Condição semelhante em um indivíduo, comumente caracterizada por desorientação pessoal.ansiedade e isolamento social. 4. Med. perda da faculdade de dar nome aos objetos ou coisas ou de reconhecer e lembrar seus nomes”.
Em muitos casos chegamos a um estágio de anomia ética e estética. A vida artística e a vida política e social mostram isto. Mas entrever essa anomia não significa ficar paralizado diante dela. Há instrumentos para analisá-la, diagnosticá-la. Daí que tenho proposto insistentemente (vejo outros intelectuais no exterior na mesma linha), uma revisão do que foi a modernidade e a pós-modernidade, como uma forma de, nomeando, configurar o sentido até mesmo do não-sentido.
Chegando ao fim desta apresentação, talvez pudesse terminar com palavras que usei recentemente ao participar de um seminário em Santiago do Chile (11-12 de julho), patrocinado pelo CEPAL, onde havia uma preocupação semelhante a esta aqui: queria-se entender os caminhos e descaminhos percorridos pelo Brasil e pelo Chile entre 1960 e hoje. Ali, evidentemente tracei outro percurso de idéias. Mas terminei dizendo que o desafio comum que vejo para os intelectuais e artistas chilenos e brasileiros é nitidamente este: proceder à revisão urgente não apenas da década de 60, mas da modernidade e da pós-modernidade, não com os pés no retorno ao século XIX, mas com os pés no século XXI. Uma revisão impiedosa, que sendo uma autocrítica, seja um enfrentamento com os ídolos de ontem, porque a maior homenagem que se pode fazer a um contestador de ontem é contestá-lo hoje.
Com efeito, se olharmos a história da arte e do pensamento do século XX teremos, de certa forma, uma lúgubre imagem. Aí se falou exaustivamente da “morte da arte”, da “morte da poesia”, da “morte do romance”, da “ morte do homem”, da “morte do sujeito”, da “morte da história”, da “morte de Deus”. Enfim, essa sequência de mortes nos convence que o século XX é um cemitério, um vasto cemitério.
Façamos a autópsia desse século. Procuremos a “causa mortis” de tantas idéias e ideologias. A ordem é recomeçar. Já dizia Nietzsche o genial suicida e coveiro de tantas idéias, que só pode haver ressurreição onde houver morte. Não se trata, portanto, de regressar, mas de recriar algo novo que com o novo século se inicia. Mas para que isto se faça é preciso fazer o

EPITÁFIO PARA O SÉCULO XX



Affonso Romano de Sant’ Anna



1.Aqui jaz um século
onde houve duas ou três guerras
mundiais e milhares
de outras pequenas
e igualmente bestiais.

2.Aqui jaz um século
onde se acreditou
que estar à esquerda
ou à direita
eram questões centrais.

3. Aqui jaz um século
que quase se esvaiu
na nuvem atômica.
Salvaram-no o acaso
e os pacifistas
com sua homeopática
atitude
-nux-vômica

4. Aqui jaz o século
que um muro dividiu.
Um século de concreto
armado, canceroso,
drogado, empestado,
que enfim sobreviveu
às bactérias que pariu.

5.Aqui jaz um século
que se abismou
com as estrelas
nas telas
e que o suicídio
de supernovas
contemplou.
Um século filmado
que o vento levou.

6.Aqui jaz um século
semiótico e despótico,
que se pensou dialético
e foi patético e aidético.
Um século que decretou
a morte de Deus,
a morte da história,
a morte do homem,
em que se pisou na Lua
e se morreu de fome.

7. Aqui jaz um século
que opondo classe a classe
quase se desclassificou.
Século cheio de anátemas
e antenas, sibérias e gestapos
e ideológicas safenas;
século tecnicolor
que tudo transplantou
e o branco, do negro
a custo aproximou.

8.Aqui jaz um século
que se deitou no divã.
Século narciso & esquizo,
que não pôde computar
seus neologismos.
Século vanguardista,
marxista, guerrilheiro,
terrorista, freudiano,
proustiano, joyciano,
borges-kafkiano.
Século de utopias e hippies
que caberiam num chip.

9.Aqui jaz um século
que se chamou moderno
e olhando presunçoso
o passado e o futuro
julgou-se eterno.
Século que de si
fez tanto alarde
e, no entanto,
-já vai tarde.

10.Foi duro atravessá-lo.
Muitas vezes morri, outras
quis regressar ao 18
ou 16, pular ao 21,
sair daqui
para lugar nenhum.

11.Tende piedade de nós, ó vós
que em outros tempos nos julgais
da confortável galáxia
em que irônicos estais.
Tende piedade de nós
-modernos medievais-
tente piedade, como Villon
e Brecht por minha voz
de novo imploram. Piedade
dos que viveram neste século
per seculae seculorum.


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1-Título de uma aula inaugural dada em meia dúzia de universidades na década de 90, analizando críticamente o século XX.
2- “Eles estão se adiantando”- in “O lado esquerdo do meu peito”Ed. Rocco, 1992, Rio
3. “Politica e paixão”.Ed. Rocco, 1984, Rio


Leia também: poema de Lauro Marques com dedicatória a ARS

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