terça-feira, 20 de setembro de 2005

Nossa Música (Plano-sequência para Rubens Rodrigues Filho)

Com o lançamento do filme de Godard em DVD, resolvi republicar um velho post:
14.2.05 Nossa Música
(Plano-sequência para Rubens Rodrigues Torres Filho)
Por Lauro Marques

Godard, "Nossa Música". Na grande tela do Cine-Sesc, um lugar ainda possível para se assistir a Filmes.

A Imagem é certeza, o Real é incerteza.

Na total imundície, desordem, e completa desestruturação social, urbana, da Rua Augusta com a Avenida Paulista, essa é a música que estamos compondo na maior cidade do "país do século XXI", em fevereiro de 2005.

Je est un autre. O Eu é um outro. Eu sou um outro. "Ah, não ser eu toda a gente em toda a parte!" Iluminação profética e danação existencial de ser humano.

O homem desgrenhado sorrindo com a cara na lata de lixo, e escarrando repetidas vezes na parede. "Por que ele não foi fazer isso em outra parte?"

Esse outro, passeia conversando com o amigo, puxando uma carroça na calçada mínima despedaçada por "obras" e entulhada de camelôs e gente de paletó e gravata na fervilhante tarde da Paulista.

O ar é um bouquet de borracha queimada e vômito, e o único prédio limpo, a aparecer quase como uma miragem, num ponto da Avenida, é o imaculada e miraculosamente branco Banco de Boston. A contrastar com o mar de bosta, e como a dizer: I am another.

Purgatório e inferno com reflexos muito distantes do Paraíso. E pessoas jogadas nos cantos dos canteiros abertos, o barro à mostra sem flores. Imagens da nossa atrocidade.

Fico pensando em que guerra foi que a gente se meteu e por que perdemos? Os outros ainda podem sonhar com os inimigos e nós com quem sonhamos?

Godard, sem sentido? Not at all, Mr. Au contraire, c'est justement au contraire. Mal vu, mal dit. Mal visto, mal dito. Está tudo isso lá no seu filme. O melhor da arte é quando sai de si própria, pára de interpretar a si própria, e fala da vida, do que está ao redor, dos arredores.

Um país que não tem grandes poetas merece ser vencido por outro que os tem?
Um país que não escreve poesia não pode ser um país forte.


Rubens Rodrigues Torres Filho

Para quem interessar possa: um sebo na mesma Rua Augusta (não guardei o nome, mas fica ao lado do Mac Donald's, e em frente ao Vienna Café da Alameda Santos com a Augusta) tem dezenas de exemplares de dois livros de poesia de Rubens Rodrigues Torres Filho: O vôo circunflexo, prêmio Jabuti de poesia 1981, e A letra descalça, de 1985. Estão à venda por míseros R$ 2, 90. Embolorados e na última prateleira da última parede da loja. O poeta, estudioso de filosofia clássica, tradutor de Kant, Nietszche, Novalis, autor de O Espírito e a Letra: A crítica da imaginação Pura em Fichte, merece um pouco mais do que isso.

Dele, de seu A letra descalça, pesco ao acaso, que sempre é acaso objetivo, esse

Plano-sequência

Fugiste, gesto? A vida, essa, totalmente fora de mim.
Alheia como vistas na tela. Cinema dos outros. Uma
moça que me quer bem. Pois bem. A ela, eu diria:
cenas que comovem, vistas e revistas, são sempre. Até
a emoção é cena. A inspiração, que é uma forma de
respirar e deixar passar o ar. Pela boca, também. E o
ar saindo, metodicamente entrecortado de silêncios,
vai formando o que se chama voz, e parece dizer algo.
A presença se adensa. Pérolas, vôos de pássaro sem
pássaro, pouso de plumas, diretamente, no mesmo
ar. Laços, pequenas liberdades, abstratas no espaço
disponível. Cena, cena. Dedos articulando solidões e
seus espaços. Refinada química dos afetos, cristaliza-
cões de um fluxo sem nome. Imagens. Intensidades
mentais. A cena estaria completa. Resta um fio de
voz, buscando rumo para o contorno. E é dele que se
trata, súbito.


-Rubens Rodrigues Torres Filho

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