sexta-feira, 4 de novembro de 2005

Las mantenidas sin suenos


Finalmente consigo ver algo da Mostra de Cinema de São Paulo. No último dia, pego o Metrô, desço na Paulista, dou uma passadinha na Livraria Cultura, como quem não quer nada, compro um livrinho "Tel Quel", de Valéry, que ainda vou traduzir uns pedaços aqui no blog, e de quebra filo uma taça de vinho.

No novo Cine Bombril, ali em frente da livraria, não tinha nada que interessasse naquela hora. Então, decido caminhar até o Reserva Cultural, já imaginando também que se não conseguisse ver nada, pelo menos tomaria mais uma taça, e comeria algo na padaria francesa, aproveitando para ler o livro.

Dito e feito. não achei nada que me atraísse, pelo título, já que sinopses de filmes para mim não dizem nada, mas fiquei por ali assim mesmo. Quando deu 21 horas, vendo o povo sair da sessão anterior, bateu a vontade de ver um filme, qualquer que fosse.

Passo na bilheteria e compro o ingresso para a última sessão da mostra, um filme de título espanhol "Las mantenidas sin suenos", que descubro durante a exibição ser argentino. Naõ me perguntem o nome do diretor, atores, não sei nada disso. Mas o filme começa e percebo que ele fala comingo na minha linguagem, que eu entendo. Sarcástico, sem patacoadas ou firulas.

A "mantenida" do título, que em português se traduz por "manteúda", é essa mulher de meia-idade, bonita, educada e que vive drogada, na miséria. Ela está grávida, sem saber de quem, depois de vários abortos, e tem já uma filha, chamada Eugênia, que vai completar 9 anos, também inteligentíssima - uma espécie de "Mafalda" dos quadrinhos, de ótimas tiradas, responsável pelos momentos de maior humor do filme (e de tristeza também). O interessante é exatemente esse humor, irônico, azedo, que se contrapõe à situação de infelicidade. Fica no ar um cheiro de revolta vazia, de geração perdida, de questionamento dos valores e de impotência em afirmar algo para se colocar no lugar.

Ensaia-se uma pretensa luta de classes entre a amiga rica que deu certo, graças ao casamento, com um homem rico, mas idiota, de um lado, e de outro, a mãe drogada, chamada Florência, que afirma preferir não trabalhar, e ser uma "manteúda sem sonhos", como na canção-título do filme. Mas a oposição não se resolve facilmente, para o bem do enredo, percebe-se que as duas têm ainda algo em comum, ambas foram vítimas dos "projetos" que haviam sido traçados para elas na infância. Em certa altura a amiga rica diz que havia se tornado um "projeto sem vida", graças aos "projetos de vida", de que tanto falava a mãe de Florência, uma terapeuta bem sucedida, mas em declínio, um retrato da sociedade argentina, ex-hippie, ex-viciada, que representa a geração anterior.

E como é comum nos filmes hispânicos, a mãe é uma figura central. São elas as causadoras e também as que lidam de alguma forma com os impasses. O pai é uma figura ausente ou em fuga, alguém em "férias permanentes", como se autodefine o pai da pequena Eugênia.

Em suma, ótimas atuações em um roteiro inteligente, sem muitas reviravoltas, e sem recair no excesso de dramaticidade, nem no cinismo cômico.

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