domingo, 5 de setembro de 2010

NOTAS À MARGEM

LER É VIVER


Minhocão, foto de Daniel Mitsuo


A frase em letras garrafais, numa faixa, sobre a porta de um pequeno sebo, surpreendeu-me da janela do ônibus, enquanto passava embaixo do elevado Costa e Silva, mais conhecido como minhocão, uma das sete desgraças do mundo contemporâneo (não há as sete maravilhas do mundo antigo? Eu proponho uma lista alternativa que seja encabeçada pelo minhocão).



Quer frase mais “Pessoana” do que essa? Ler é viver. E portanto, a maioria da população brasileira não vive, pois não lê. Não sei se quem pôs a faixa estava inteiramente consciente da crítica feroz que fazia à ignorância dos que, como eu, por ali cruzavam a rua, cumpridores da rotina diária, ruidosos ou em silêncio, a caminho de mais um dia na metrópole paulistana.





DIGNIDADE



Parei hoje para cumprimentar o vigilante que toma conta do prédio onde trabalho. Ele estava polindo as botas, sentado à cadeira do engraxate, que faz ponto na praça em frente do prédio. Fui dizer, apenas para ser simpático e ter algo para dizer, que eu também iria engraxar meus sapatos, um dia desses. Então ele me responde afirmando: “Já que vamos sair amanhã, resolvemos engraxar as botas”.



Confesso que de início não compreendi, o plural majestoso confundiu-me. Imaginei que ele, vaidoso, certamente planejava dar uma volta à noite, ou sair para uma festa ou quem sabe talvez um bar, após o trabalho, e queria por isso ver suas botas brilhando.



Como eu não havia entendido bem, fiquei surpreso quando ele me disse em seguida que este seria o seu último dia naquele emprego. Falei qualquer coisa para reanimá-lo e fui-me embora, sorrindo. Só agora, já em casa, quando tomo para mim mesmo essas notas solitárias, é que pude compreender a verdadeira dimensão do que ocorrera.



Ele chegara ao fim do contrato temporário de serviço como vigilante e o ato de polir as botas era uma maneira de demonstrar para si mesmo que ele era superior à sua própria desgraça. (Se as devolveu ou não, como imagino ser praxe nesses casos, é um mero detalhe que não afeta em nada a minha imaginação de sua superioridade).



Tinha razão portanto o plural majestoso, carregado de dignidade, daquele homem, que eu, para minha vergonha, na minha simplicidade, não pude perceber de imediato.

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