No limite, não há nada que não seja esteticamente bom, já “provaram” os surrealistas e Duchamp. Na medida em que um fenômeno é ―seja um banco de madeira, uma roda de bicicleta, um urinol, ou um acontecimento, o qual poderia ser o “evento surrealista” (Boher 2001: 20)―, como um todo unificado, ele “deve ter alguma qualidade permeando sua totalidade” (Potter 1967: 46). Ele possui, nessa avaliação, “excelência estética”, o que foi chamado de “excelência ontológica” pelos escolásticos (Parker 1998: 50). A qualidade pode ser tal que nos nauseie, assuste, ou de qualquer outra maneira nos perturbe a ponto de nos afastar do humor próprio ao prazer estético, da disposição de simplesmente contemplar a materialização dessa qualidade em um objeto. Tal objeto “permanece igualmente esteticamente bom, embora as pessoas em nossas condições sejam incapazes de uma calma contemplação estética dele” (Peirce 1998: 201). O que significa simplesmente dizer que há uma certa autonomia do objeto, em relação à sua recepção, e que as qualidades que ele apresenta não são em si mesmas nem boas nem ruins. Pois, como frisa Peirce (2003): “toda abominação estética é meramente nossa insensibilidade resultando de obscurecimentos devidos às nossas próprias aberrações morais e intelectuais” Esse caráter livre, autônomo, de um objeto estético, é um aspecto inerente à sua conformação, que faz ele ser como ele é. Schiller definiu beleza como “nada mais do que liberdade no fenômeno” (Schiller 1995: 120).
Entretanto, dizer que todo fenômeno possuindo unidade interna é ontologicamente ou esteticamente bom, não significa dizer que não existam diferenças entre os fenômenos (Parker 1998: 50), o que não deixaria nenhum espaço para crítica. Especialmente, não deixaria espaço para a crítica de arte ― pois não teria muito sentido, ao nosso ver, criticar “os Alpes”, ou qualquer outra forma da natureza, a não ser que adotássemos algum ponto de vista de um esteticismo radical, à maneira de um Oscar Wilde, que via no sol poente, “um Turner muito secundário, um Turner do mau período” (Wilde 1992: 53).
Pelo contrário, cada fenômeno tem sua qualidade sui generis ― ainda que “possivelmente alguns podem ser melhores do que outros” (Peirce 2003: 229). A questão da excelência de algo só pode ser resolvida caso se faça referência a algum propósito que esse algo preencha. Numa obra de arte, seu propósito específico é provocar uma experiência estética. Para apreender a diferença entre fenômenos, no caso de uma obra de arte, de maneira evidente, bastaria comparar quaisquer duas pinturas, como no exemplo que iremos utilizar, Saturno de Goya e o de Rubens.
Saturno é o deus romano identificado a Cronos, um dos Titãs, na mitologia grega. De acordo com uma lenda, Cronos teria sido advertido de que um dos seus filhos o destronaria e passou então a engoli-los por ocasião de seu nascimento (Harvey 1987: 145). Saturno é também a encarnação do Tempo, para os romanos, e o Tempo devora todas as coisas, Tempus edax rerum. Na representação que fez Goya perceba-se como o fundo negro colabora para o sentimento de terror da figura, juntamente com a desproporcionalidade dos corpos representados, e como essa impressão é de certo modo deslocada de seu horror habitual, quando observada em detalhe a cabeça com a boca escancarada do gigante grisalho, o qual possui um certo ar típico, ao mesmo tempo trágico e cômico, das caricaturas ―“penetradas de humanidade” (Baudelaire 1995: 10)― de Goya. Comentando sobre Goya escreve Sylvester que a boca desempenha um papel na sua arte mais proeminente do que em qualquer outro grande artista.
Nesse mesmo quadro perceba-se ainda as diferentes qualidades (que são “idéias gerais”) ao percorrermos o corpo do Titã: a qualidade de repugnância das cicatrizes e manchas; o erotismo velado do corpo despedaçado da(o) filha(o) e da nudez do gigante escondida pela escuridão; a qualidade de rigidez dos músculos e veias intumescidas do braço; a força que ele imprime aos punhos e as contorções do ossos sob a carne nas costas; o vermelho vivo do sangue que dele escorre; a qualidade expressiva da boca (onde concentram-se, junto com a expressão dos olhos, as paixões das quais parece tomado o “monstro”), cuja sombra parece engolir tudo, algo que é reforçado pelo fundo negro da pintura.
Francisco Goya Saturno, 1821-1823 e Peter Paul Rubens Saturno devorando seu filho, 1639
Francisco Goya Saturno (detalhe da boca)
Parece ser assim, mas poderia parecer ser de outro modo? Sim, mas apenas em uma certa medida. Imagine o mesmo quadro com um fundo branco, ou azul, ou vermelho, ou... rosa. Imagine ―ou nem precisa imaginar, observe a versão de Rubens para o mesmo mito: na versão de Rubens (que Goya poderia ter visto em Madrid), “Saturno curva sua cabeça sobre o corpo, afunda seus dentes na carne e suga o sangue que jorra de seu filho que esperneia” (Sylverter s/d). Veja-se que nesse último caso o sangue jorra, e não escorre, Saturno afunda seus dentes e não escancara a boca ―, ainda por cima de velho, da qual mal se vêem os dentes, o lado cômico da figura― parecendo querer nos engolir junto com a pintura. (Outra obra de Goya, de um episódio do romance do século XVII El Lazarillo de Tormes, feita cerca de dez anos antes (1808-1812), é a contraparte cômica desse Saturno. Ela mostra um velho cego forçando o nariz dentro da boca do jovem Lazarillo para “cheirar” se ele tinha comido sua sopa.)
O fato de que parece ser assim é indicativo de que estamos falando do modo como experienciamos qualidades que são possíveis de serem experienciadas desses fenômenos, representados na pintura, cujas qualidades podemos abstrair ―prescindir― da existência material do quadro, que constitui o fenômeno que estamos observando. Não precisamos tocar na pintura, para, por assim dizer, sentirmos sob a pele os ossos. Fazemos isso porque uma qualidade disso ser assim foi corporificada na pintura. Não se pode, portanto, confundir, que estamos dizendo que são qualidades subjetivas, pois todas essas qualidades estão realmente lá como propriedades intrínsecas desses fenômenos, independentemente de alguém experienciá-las ou não. E a capacidade que tem uma obra, concluída em 1823, de continuar despertando em nós sentimentos e cognições, é a prova maior de que se trata de uma “realidade” “viva”, e “não é vestígio mudo, ruína, museu...” (Gadamer 1996: 27). Quando falamos do “ar tragicômico”, ou da expressividade do rosto, etc., estamos supondo que são qualidades que já existem na pintura. Elas existem, como possibilidade positiva definida, até mesmo antes de terem sido corporificadas pela mão do pintor.
BAUDELAIRE, Charles et.al. (1995). Os caprichos de Goya. São Paulo: Imaginário.
BOHER, Karl Heinz (2001). O ético no estético. Ética e estética (org. por ROSENFIELD, D.L). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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HARVEY, Paul (1987). Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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POTTER, Vincent G. (1967). On norms and ideals. Amherst: The University of Massachusetts Press.
SCHILLER, Friedrich (1994). Sobre a educação estética numa série de cartas e outros textos. Lisboa: Imprensa Nacional -Casa da Moeda.
SCHILLER, Friedrich (1995). A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras.
SYLVESTER, David (s/d). About modern art: http://www.artchive.com./core.html.
WILDE, Oscar (1992). A decadência da mentira e outros ensaios. São Paulo: Imago.
PEIRCE, C. S. (1998). The essential Peirce 2. Nathan Houser et al. (eds.). The Peirce edition project. Bloomington, Indiana: Indiana University Press.
PEIRCE, C. S. (2003). Manuscrito 310.1-14. Conferências sobre o pragmatismo – Conferência V. Tradução, apresentação e notas de Lauro José Maia Marques. Cognitio – Revista de Filosofia, São Paulo, Vol. 4, nº 2, 227-231.