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terça-feira, 8 de junho de 2010

Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague




O documentário Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague (Les Deux de La Vague), em cartaz em São Paulo, traça um paralelo instigante entre os dois diretores da Nouvelle Vague, cuja amizade na juventude serviu para forjar e levar adiante o movimento.

Mostra que Godard nunca superou o complexo de filho abastado da classe média, enquanto que Truffaut, vindo de baixo, nunca precisou provar isso. Em uma sequência de "Beijos Proibidos", Truffaut manda um recado para Godard por meio do personagem Antoine Doinel, interpretado por Jean-Pierre Léaud (uma cria dos dois, que sofreu nas telas -e na pele- a separação de ambos): "Se for um acerto de contas, não pode ser uma obra de arte".

Opções estéticas e políticas separaram os dois. Truffaut foi chamado de mentiroso por Godard por ter segundo ele uma visão acrítica. A resposta de Truffaut foi que o artista nunca deve ficar atrelado às ideologias do momento. Talvez por isso os filmes de Godard pareçam datados enquanto os de Truffaut são vivos até hoje. Ele foi mais inteligente que Godard nesse ponto e Godard mais ingênuo, como parecem ingênuos seus panfletos marxistas-leninistas.

Godard sobreviveu como mestre metalinguístico e poeta das imagens, enquanto seu discurso envelheceu. E no entanto, a imagem final do documentário é a de Pierre Léaud em “Os Incompreendidos” de Truffaut: uma imagem angustiada e da inquietação juvenil que é o reflexo daqueles (bons) tempos.

domingo, 15 de junho de 2008

O Elogio da Dúvida


O Elogio da Dúvida
Resenha-ensaio de “O Elogio do Amor”, de Jean-Luc Godard
Lauro José Maia Marques


Ficha técnica
Título: O Elogio do Amor.
Diretor: Jean-Luc Godard
Atores: Bruno Putzulu, Cecile Camp, Jean Davy, Françoise Verny.
Duração: 98 minutos.
Ano: 2001.
País: França.




“O elogio do amor”, o elogio “de alguma coisa”. A frase aparece, entrecortada, em letras brancas sobre a tela preta, insistentemente interrompendo a fruição contínua do filme. Desde os primeiros minutos do longa-metragem, de 2001, Jean-Luc Godard joga com a ambiguidade e o descontínuo, palavras-chave do cinema desse autor.
Neste, como em outros filmes do ex-crítico da revista Cahiers du Cinéma, nos anos 50, e um dos diretores mais marcantes do movimento cultural que redefiniu o cinema moderno para a França e para o mundo na década de 60, a Nouvelle Vague, ao lado de personalidades como Truffaut, Chabrol e Rohmer, não se trata de narrar uma estória, de forma clara, com começo, meio e fim, de modo a envolver — entretendo — o espectador, à maneira do cinema clássico hollywoodiano.
Trata-se antes de, partindo de uma idéia, por vezes imprecisa, e utilizando-se de um universo audiovisual heterogêneo, chegar-se a uma obra de ficção, que seja também um comentário crítico da realidade e do papel do cinema em lidar com essa mesma realidade.
O filme se desenrola em duas partes. Na primeira, filmada em preto e branco, um homem, chamado Edgar, tem um projeto vago: fazer um filme (ou um romance, ou uma peça, ou uma ópera, ele não sabe direito), na “tradição do documentário”, sobre os vários “momentos” do amor, atravessando a juventude, passando pela idade madura, até a velhice.
O projeto está desde o início fadado ao fracasso, pois “o que é um adulto?”, pergunta-se à certa altura Edgar. Os jovens e os velhos são evidentes, mas não os adultos, estes são difíceis de definir, podendo mesmo passar despercebidos. O que se dá em seguida é a narração da impossibilidade de se contar essa estória.
Edgar peregrina por Paris, (e nos faz lembrar imediatamente de Acossado (1960), primeiro filme de Godard, em que um não menos angustiado Jean-Paul Belmondo buscava freneticamente o sentido da vida e do amor nas ruas da cidade-fetiche do autor), procurando pessoas para seu projeto, com um livro em branco nas mãos, um livro sem frases, como um sinal dos tempos, da nossa época das imagens. A trama é um pretexto para Godard ir tecendo sua visão de mundo e do cinema, literalmente falando pela boca de suas criações.
“As coisas estão aí, por que inventá-las?”, questiona Edgar-Godard, parafraseando o neo-realista Rossellini, trocando “manipulação” por “invenção”. Na sequência seguinte há um corte para um casal de mendigos, enrolando-se em um cobertor imundo na calçada. É preciso observar a realidade ao invés de tentar extrair ficções dela, concordaria com ele Zavattini (Xavier 1977: 59) ― outro ícone do movimento cinematográfico da Itália do pós-guerra, cuja “fome de realidade” (Xavier 1977: 59), influenciaria o surgimento da Nouvelle Vague francesa. As coisas precisam resistir para que possam existir fora de nós, diferentemente das ilusões que criamos.
Contudo, o real luta contra revelar-se em sua inteireza. “Uma imagem nunca diz nada”, afirma Edgar. Ela sempre remete à outra, anterior. Não podemos pensar senão por meio de associações. Por isso, a opção pelo ensaio, como forma, e a “primazia da ambiguidade”, como “hipótese e método” (Xavier 1977:62). O que Godard é contra é o artificialismo da certeza (ilusória), celebrado por diretores como Steven Spielberg — uma crítica que já podemos encontrar em O Demônio das Onze Horas (1965): o Cinema é o reino da descontinuidade, posta aqui a serviço de um discurso ambíguo e de final em aberto.
A mulher ideal para o par amoroso na idade adulta, no projeto de Edgar, foi encontrada (e perdida para sempre) no passado, em que ocorre a segunda parte do filme, cronologicamente situada dois anos antes da primeira, e ironicamente rodada em imagens digitais em cores hipersaturadas. Imagens que brincam com as novas possibilidades tecnológicas e fazem eco a experiências recentes do diretor, como na série Histoire(s) du Cinéma (1989-98), mas também em La Puissance de la Parole (1988), ambos fundamentais para as relações entre a arte e a comunicação contemporâneas.
A ironia é que inverte o clichê cinematográfico (passado=preto e branco, presente=colorido), utilizando-se de imagens digitais coloridas para mostrar o passado, que é também a memória/ficção do personagem principal do filme. Ao introduzir um defeito na qualidade dessas imagens, rebela-se uma vez mais contra a fotografia limpa, asséptica, sem ruídos, hollywoodiana. Escolha técnica que faz todo sentido: insere um elemento estranho, impedindo a fruição espontânea, forçando o espectador a uma postura crítica sobre o significado do que está sendo mostrado.
O exato oposto do que ocorre em A Lista de Schindler, de Steven Spielberg, e seu final “real” filmado em cores. Nele vemos bem aonde o uso das convenções, mesmo quando visando uma pretensa objetividade, podem levar: em contraste com seu final, todo o resto do filme, o próprio Holocausto inclusive, corre o risco de ser tomado como uma ficção. A polêmica em torno do filme de Spielberg é o objeto recorrente das investidas de Godard em O Elogio do Amor.
Na segunda metade, principalmente ao final, a montagem adquire um ritmo caótico, com momentos de cinema poético puro e metáforas visuais reveladoras do discurso do autor. Tais como a de uma onda, que fundida à imagem, vai varrendo a tela, como se fosse apagando a memória dos fatos. Talvez querendo com isso dizer que a memória, apoderada por uma narrativa que abdica da ambiguidade, em função do espetáculo, redunda em esquecimento.
Ou quem sabe Godard quisesse nos reportar a Titanic — filme que é alvo de comentários, não muito elogiosos, no contexto da apropriação da memória pelo cinema americano, ao cabo de uma sequência em que um casal de ex-combatentes da resistência vendem sua história para os estúdios de Spielberg.
Há ainda uma terceira onda, menos vaga, a que Godard poderia estar se referindo: a do ressurgimento do fascismo na Europa. “A resistência conheceu a juventude, conheceu a velhice, mas não chegou jamais à idade adulta”, constata, no alto dos seus 71 anos. E o que aconteceu na França, no dia 21 de abril de 2002, quando dois partidos de extrema-direita obtiveram juntos 5,5 milhões de votos, no primeiro turno da eleição presidencial, servem, caso não servirem para mais nada, para confirmá-lo.
REFERÊNCIAS

XAVIER, Ismail (1977). O discurso Cinematográfico. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Último filme de Woody Allen é Hitchcok sem suspense

O último filme de Woody "Sonho de Cassandra" é bom, muito bom, na linha de Match Point, Crimes e Pecados. Referências a Dos. e à tragédia grega, com uma pitada de estilo pop e humor. Tragédia com clima de farsa. Vão dizer que ele se repete, que já cansou, etc, etc, mas não tem problema porque ele já está em outra, filmando em Barcelona, outro filme que irá estrear em Cannes.

Para mim o filme é um Hitchcok sem suspense (SIC). Allen deu um entrevista publicada na Folha de SP, que fez uma coisa meio idiota, no estilo VEJA, na edição impressa, comparando-o à hiena Hardy, porque ele diz -oh céus- que a vida é trágica.

PERGUNTA - Você disse uma vez que a vida é "uma experiência bastante trágica".
ALLEN - Sempre senti que a vida é uma confusão muito grande. Tenho uma visão sombria e pessimista da vida e da fé do homem, da condição humana. Mas acho que há alguns oásis extremamente divertidos no meio dessa miragem. Há momentos de prazer e momentos que são divertidos, mas, basicamente, a vida é trágica.

Leia a entrevista completa na FolhaOnline

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

O novelo de Antonioni

Monica Vitti_ La Notte

“O fio perigoso das coisas e outras histórias”, livro de anotações de idéias para possíveis filmes, de Michelangelo Antonioni. São 33 “núcleos narrativos”, como ele chama, transformados em peças literárias, editado na Itália no início dos anos 80 e publicado aqui em 1990, pela editora Nova Fronteira.

Leio e vou destecendo nós, que são os nossos, um homem e uma mulher, desencontros.
“Na planície do Pó os homens amavam as mulheres com ironia”, diz em um desses fragmentos, intitulado “Crônica de um Amor que nunca existiu”. O Pó aí é o nome do rio no Norte da Itália... mas o importante mesmo é saber o que significa “amar uma mulher com ironia”, como tantos personagens masculinos nos filmes do cineasta morto aos 95 neste negro ano de 2007. ― Penso em Marcelo Mastroianni em “A Noite”, um filme com uma manhã e uma noite e essa ironia talvez seja na verdade desespero, carregado de angústia, quando amanhece.

“Com ironia” significa não se entregar totalmente, manter-se numa situação de proximidade distante, irônica, o contrário ou quase da alegria, que é entrega, total e permanente, sem reservas, talvez um estado impossível só alcançado de tempos em tempos e do qual se cai constantemente. A ironia seja por isso talvez uma defesa para tais quedas. Não entregar-se é manter-se ereto, com todas as conotações eróticas da frase.

A maioria dos contos ou pedaços de filmes imaginários ou não, alguns realizados anos depois, é sobre encontros e desencontros (tomando emprestado como foi traduzido no Brasil o título recente de um filme de Sofia Coppola, que bebe nessa fonte). “As geleiras da Antártida caminham três milímetros por ano em nossa direção. Calcular quando chegarão. Prever, num filme, o que acontecerá.” Num fragmento intitulado Antártida, Antonioni espera a geleira, que afinal chegou para ele, essa que pode fazer esperar mas não decepciona nunca.

Em “Este corpo de lama” temos primeiro uma breve exposição, resultado de pesquisa sobre a vida das mulheres num convento de clausura, tema para o qual o cineasta foi levado após a leitura de um episódio narrado por uma monja americana em seu diário e que daria segundo ele um belo início de filme. Em seguida tem-se uma narrativa também curta baseada nesse episódio.

Um homem encontra uma mulher andando sozinha à noite, muito grave, e resolve segui-la e então abordá-la. Após uma breve troca de palavras, ela o leva quase sem querer para uma igreja onde os dois se separam, por vontade dela, evitando-o por meio de um gesto e indo sentar-se à distância, completamente absorta numa espécie de transe místico. Ela lhe parece “um impermeável vazio, o corpo jogado fora. Este corpo de lama, diz Santa Teresa”.

Ao fim da missa, ele a perde de vista, mas resolve procurá-la na rua onde a havia visto sair de uma porta de casa para a noite antes. Encontra-a e no meio de hesitações trava uma batalha impossível de ser ganha que corresponde à luta travada entre uma fogueira teimando em arder e os primeiros flocos de neve: “Tem a impressão de nunca ter experimentado um desejo tão intenso de possuir uma mulher. Mas é um desejo diferente, que tem algo de meigo e respeitoso. É ridículo, pensa. E no entanto hesita na voz e não pode fazer nada contra isso, enquanto diz:
― Posso te ver amanhã?

Ela continua sorrindo nos poucos segundos de silêncio que precedem sua resposta. E sua voz não deixa transparecer nenhuma emoção quando fala.

― Amanhã vou entrar num convento de clausura.”

“Que início fantástico de filme!”, exclama Antonioni. Mas é um filme que para nós, ― plagiando-lhe ―, feliz ou infelizmente, acaba aqui.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

REALIDADE, DIAMANTES E DESERTOS VERMELHOS



O Deserto Vermelho é o nome do filme, de 1964, do diretor italiano Michelangelo Antonioni (1912-2007). É o primeiro longa-metragem em cores de Antonioni - o que terá toda a importância, a partir, desde já, como veremos, do título - e com a fotografia de Carlo Di Palma. Lançado em DVD, em versão restaurada, o filme se passa na poluída Ravenna, cidade italiana, e tem a atriz Monica Vitti no papel principal. No que segue, não tentarei resenhá-lo, mas abordá-lo de alguns pontos de vista que, se não forem os mais relevantes, foram os que me suscitou a obra quando tive a oportunidade de assisti-la recentemente.

Comecemos pelo final, não o do filme, mas dos extras do DVD recheados de comentários irônicos e divertidamente mundanos dos cinejornais da época que faziam a cobertura das entregas de prêmios às celebridades do cinema italiano. Em tais comentários, Antonioni é sempre retratado de forma caricatural como o “intelectual sombrio”. Monica Vitti, por sua vez, que junto com ele formava o par “menos alegre” do cinema, na avaliação do cinejornal, era premiada pelas suas atuações “cada vez mais mudas”. Antonioni, flagrado na pré-estréia de seu outro filme, “Eclipse”, “não se rendia a nenhuma corrente, nem mesmo à elétrica”.

Numa espécie de contraponto “sério” a essas vinhetas cômicas, o próprio Antonioni comparece nos extras, sendo entrevistado por um repórter de um programa francês. Nessa entrevista, aliás, mostra-se muito pouco “ecológico”, para alguém cuja transformação do mundo industrial foi tido como um choque. Ficamos sabendo, pelo próprio diretor, que Deserto Vermelho “originou-se” desse choque, em uma visita do diretor a Ravenna, cidade próxima ao lugar de nascimento de Antonioni, Ferrara.

Somos informados também que durante as filmagens ele mandou pintar casas, árvores e até um bosque inteiro, cujo verde não lhe parecia uma cor “justa” para a impressão que queria causar no espectador. Por isso foi pintado de branco, com ajuda de uma máquina de borrifar tinta, especialmente para cena inicial do filme, uma greve na porta de uma usina. O cenário construído entretanto sequer chegou a ser utilizado. Por razões técnicas, anteriores à era Spielberg, devido ao sol, o bosque parecia preto, quando enquadrado contra a luz.

Se formos analisar melhor o motivo dessas intervenções visuais “corretoras”, percebemos que, no filme de Antonioni, a poluição das indústrias, com suas cores, precisa ser possuidora de uma beleza ao mesmo tempo assustadora e pungente, atrativa e horrenda, que alguns filósofos como Kant e Schiller chamariam de sublime.



É possível encontrar esse tipo de beleza - a câmera nos mostra, e isso é sentido por Giuliana, interpretada por Monica Vitti, a ponto de levá-la ao desespero: nas poças esverdeadas do cais; na lama azul-petróleo do rio estagnado; nas marcas multicoloridas de ferrugem e óleo do casco das embarcações; na neblina artificial de uma nuvem de amônia ou resultante da evaporação da água utilizada na usina e até mesmo na fumaça amarela e venenosa da chaminé.
Esse é um filme em que o ambiente desempenha um papel principal, revela também o diretor italiano na entrevista. Como isso se coadunaria então, com aquele que os críticos dizem ser o grande tema de Antonioni, “a incomunicabilidade e a solidão do homem contemporâneo”?

Apesar de casada com o diretor da usina, Giuliana está terrivelmente só, a realidade a atinge de modo quase insuportável. A única saída para seu tormento seria se ela pudesse também “pacificar a violência” que sente, sublimando-a esteticamente, em suma, tornando-se artista, a exemplo do próprio Antonioni. Mas o que fazer quando não se é dotado de talento até mesmo para essa não-solução provisória, chamada arte?




No final do conto mais famoso de F. Scott Fitszgerald, encontramos a seguinte frase: “No mundo inteiro, há apenas diamantes, diamantes, e talvez a pobre dádiva da desilusão. Bem, eu tenho esta última, e farei o de sempre com ela: nada.”
Os personagens de Antonioni caracterizam-se quase sempre por uma espécie de inação ao final de suas vidas filmadas (final da película). Chega-se a um ponto em que não há mais nada para fazer ou dizer, a não ser aceitar a “pobre dádiva da desilusão”. Seus personagens nunca são triunfantes, mas resignados. Alguns se deixam mesmo abater pela tragédia, como no caso do final de O Grito, ou em Profissão: repórter.

“Não sou filósofo, nem sociólogo”, afirma Antonioni na entrevista. Tudo aquilo que quis dizer, segundo ele, foi dito no próprio processo de fazer o filme. A avaliação sobre o significado viria depois ou talvez não viesse nunca. A inconclusão de suas obras é a própria inconclusão da vida - enquanto houver vida, ela não estará concluída.

Não sabemos o que acontece com Giuliana, o filme não nos mostra, não há uma “resolução definitiva” para o seu drama. Talvez ela permaneça apenas como um símbolo da inadequação, ao mesmo tempo extremamente receptiva, esteticamente, mas cuja resposta, em forma de ação, seja passiva. Testemunha silenciosa da passagem de um mundo naturalmente belo (que seria talvez apenas ideal) para uma realidade terrível, mas ainda assim não totalmente desprovida de encantos, com a qual é preciso de alguma forma conviver.

segunda-feira, 2 de julho de 2007

ESTRELA SOLITÁRIA

Filme recente de Wim Wenders, com roteiro e atuação impecável do ótimo Sam Shepard (Paris, Texas), nos leva a uma viagem pela paisagem mítica dos confins do oeste americano, que parou no tempo, como uma fotografia de Walker Evans ou um quadro de Edward Hopper.

Um ator de westerns (gênero, a rigor, há muito extinto em Hollywood), em franca decadência, resolve largar tudo. No meio de uma filmagem, no deserto, ele abandona o set e volta à sua cidade Natal, Elko, no Estado de Nevada.

Encontra abrigo (provisório) em casa da mãe, que não o via havia mais de 30 anos . Vaga pelos bares e cassinos, num cenário de sonho e ilusão, como um personagem sem cara própria. Ninguém o reconhece como um filho da terra, nem mesmo, num primeiro momento, a própria mãe, que acompanhou a vida dele durante anos a fio, por meio de recortes de jornais e revistas sensacionalistas.

Wenders faz, mais uma vez, como é do seu estilo, um road-movie sobre a busca da identidade, numa sociedade em que isso já se tornou quase impossível. A paternidade entra na história como mais um elemento nessa jornada, em que o reconhecimento de si próprio no outro é uma constatação dolorosa e não completamente resolvida.

A certa altura o personagem principal afirma que está “travelling light”, viajando de forma descomprometida, sem carregar muita bagagem. A frase também serve de metáfora para o filme, que consegue ser ao mesmo tempo leve e divertido, sem deixar por isso de oferecer material para a reflexão.

PATERNIDADE

“A paternidade, no sentido de gerar conscientemente”– diz Stephen Dedalus, na cena da biblioteca em Ulisses, de James Joyce,– “é desconhecida do homem”. “A paternidade talvez seja uma ficção legal. Quem é o pai de um filho que um filho qualquer deva amá-lo ou ele a um filho qualquer?” As implicações de tal teoria, segundo Harold Bloom, são que “a Igreja e todo o cristianismo se dissolvem se se acreditar nisso”.

A hipótese “perigosa” de Stephen poderia ser pensada como tendo sua origem naquele tipo de herói moderno, tal qual definiu Baudelaire, já no século XIX, na persona do artista que “nada revela senão ele próprio. Não promete aos séculos vindouros senão suas próprias obras. Só cauciona a si mesmo. Morre sem filhos. Foi seu rei, seu sacerdote, seu Deus”.

O preço pago por isso, sabemos, geralmente é alto; costuma vir na forma da melancolia, da dor, o spleen, que é também uma característica marcante do romance de Joyce –ele mesmo um “pai que foi seu próprio pai”, e como tal, sem precursor ou sucessor, o que, ainda segundo Harold Bloom, “é visivelmente a visão de Joyce de si próprio como autor”.

CAUBÓI

O tema da paternidade entra no enredo do longa-metragem de Wim Wenders, Estrela Solitária, como um complicador a mais na jornada do personagem principal, em busca da identidade perdida.

O título original em inglês, Don’t come knocking, um aviso de “Não me perturbem”, é uma alusão às dificuldades que enfrentará Spence, personagem interpretado por Sam Sheppard, ao voltar para casa, passados 30 anos. Ele descobre que tem um filho, a essa altura já na idade adulta, o qual mora com a mãe (Jessica Lange), na cidadezinha de Butte, Estado de Montana, EUA.

Assim como o artista moderno, descrito por Baudelaire, o caubói americano, visto pela ótica da ficção cinematográfica no gênero “faroeste”, consagrado no século passado, é também o retrato de um ser solitário, que busca se realizar de maneira autônoma, e parte sem deixar herdeiros “conscientes”. (É curioso constatar como esse mito persiste até mesmo na versão ressignificada, homossexual, em Brokeback Mountain.)

terça-feira, 17 de abril de 2007

O FUNDO DO RALO



Poderia começar dizendo muita coisa a respeito do filme O cheiro do Ralo, baseado no livro homônimo do quadrinista Lourenço Mutarelli e com roteiro de Marçal Aquino e do próprio diretor, Heitor Dhalia. Começo pela questão do patrocínio, por conta da polêmica levantada na Revista Bula, na qual colaboro. Não queria falar sobre isso porque o filme me impressionou pela própria qualidade (ainda sem julgamento de bom ou ruim, estou falando de uma qualidade em si mesma). No momento em que me levantei da cadeira, não era a Petrobras que eu tinha em mente, mas uma vaga sensação de mal estar.

Acontece que já nos créditos, antes mesmo de começar o filme, o logotipo da empresa petrolífera suscitou o comentário irônico de um espectador. “Mas é sempre a Petrobras!”, dizia a mulher na poltrona ao meu lado, na boa sala do Espaço Unibanco de Cinema, pertencente à instituição bancária fundada pelo pai do cineasta Walter Salles. Como todos sabem, as leis federais de incentivo à cultura no Brasil prevêem que o patrocinador deduza do Imposto de Renda parte do investimento, que pode chegar até a 100%. No caso das estatais, trata-se de um marketing cultural duplamente pago pelo contribuinte, ou seja, nós.

O filme custou aproximadamente R$ 300 mil, uma mixaria até mesmo para os padrões nacionais, como é costume se dizer quando se trata de valores na produção cinematográfica - de todas as artes a mais cara de ser feita. Como a Petrobras está entre as doze maiores empresas de petróleo do mundo, algumas gotinhas do líquido precioso e imundo devem ter bastado. Lembrem-se também que o “Petróleo é nosso” (não sei qual é o slogan que usam lá em Angola ou na Bolívia).

Dizem que alguns investidores se recusaram a produzir o filme por causa do título nauseabundo. O que me faz pensar na razão da maioria do filmes nacionais terem títulos neutros, mesmo quando a temática é barra-pesada: “O céu de Suely”, “Amarelo-manga”, “Central do Brasil”. Nenhum assusta o dono do Boticário ou do Grupo Pão de Açúcar. Ponto para o diretor que foi em frente assim mesmo. Outra coisa que precisa ser dita é que o filme venceu pelas suas próprias pernas. Melhor filme segundo a crítica no Festival do Rio, repetiu a premiação na Mostra Internacional de São Paulo, levando ainda o prêmio do público. Esta última mostra, aliás, uma rara oportunidade de assistir a filmes inéditos da produção nacional e do exterior, teve pela sexta vez o patrocínio da Petrobras que se encarregou ainda da distribuição comercial dos melhores filmes nacionais de ficção e documentário. Esse é outro dado que merece ser mencionado. Para que o filme passe nos cinemas, não basta ser produzido, ainda tem que ser distribuído, daí que alguns filmes nacionais, mesmo quando premiados, demorem em estrear no circuito nacional ou têm a exibição reduzida. E de novo, vem a questão: adianta produzir se não é visto? A quem será que se destina?

Heitor Dhalia é recifense e tem quase a mesma idade que o escrevinhador desta coluna. Como eu, deve ter sido um ávido leitor de revistas em quadrinhos na adolescência, como a “Chiclete com Banana”, de Angeli, Laerte e Glauco, e a lendária Heavy Metal. Lourenço Mutarelli se inscreve nesse quadro de quadrinhos undergrounds inspirados em Robert Crumb, para citar um nome. O filme, é claro, guarda um pouco desse clima meio sórdido, que remete ainda ao humor ácido de um Bukowski, ou aos personagens inertes e sem esperança do escritor uruguaio Juan Carlos Onetti. Como não li o livro não sei se funciona como romance, ou novela, estando mais para um conto.

Cinematograficamente, a referência pode ser tanto David Lynch, como foi propalado a respeito pela crítica, ou Tarantino. Mas pode muito bem ser comparado a alguns filmes de Arnaldo Jabor, na adaptação de Nelson Rodrigues. Há algumas boas tiradas sobre o casamento e a humanidade que lembram o espírito do velho Nelson, que ficava repetindo máximas como a de que “o mineiro” - e o brasileiro por extensão - “só é solidário no câncer”. Ou que “nem toda mulher gosta de apanhar, só as normais”.

Selton Melo, no papel central, tem o melhor desempenho na carreira, superando a si mesmo em “Lavoura Arcaica” – onde o monólogo empolado e literário combinava menos com o tipo que ele costuma interpretar. A linguagem direta, aliás, é uma vantagem do filme. É irritante a mania em filmes nacionais de que para parecer profundo é preciso citar algum escritor ou filósofo erudito, principalmente porque na maioria das vezes parece algo deslocado e falso. Talvez não combine com nossa cultura, pouco afeita à leitura.

O personagem principal é um comprador de bugigangas, na verdade, mais alguém com uma mania de colecionador, que passa a maior parte do tempo a receber em sua loja os tipos mais diversos, também catalogáveis: “a viciada”, “o homem do gramofone”, “o homem da caixinha de música”. No intervalo entre um e outro, ele vai a uma lanchonete, onde, após romper com a noiva às vésperas do casamento, fica fissurado pela bunda de uma garçonete de nome impronunciável. Um pedaço do corpo, no caso a bunda, passa a ser desejado como um objeto a mais para sua galeria.

A tese é clara e tem um fundo psicanalítico. À medida que entra num processo de loucura autodestrutiva no qual sua patologia se exacerba, Lourenço - mesmo nome do criador - procura pelos pedaços aos quais ainda se agarra, símbolos de sua própria mutilação. De revelador, há ainda uma paixão pelas próteses. O olho de vidro pelo qual entrega uma quantia desproporcional de dinheiro é, em sua fantasia, o “olho do pai morto na segunda guerra”. (De novo, a maldição do pai ausente). A perna mecânica adquirida em sequência é a “perna do pai”. Quando conseguir juntar todos os pedaços, ele sonha em se reencontrar.

Ao mesmo tempo, a procura evolui para um fetiche: a bunda, que ganha dimensões também simbólicas, separada do corpo individual, e que se liga ao cheiro do ralo. A bunda, o cheiro do ralo, o olho. Ver, sentir, tocar, ter. O único prazer que Lourenço se permite é o prazer voyeurístico sadomasoquista e o de possuir. Se o filme ficasse apenas nisso, daria um excelente curta-metragem. Mas para um longa, há momentos cansativos e repetitivos, alguns de humor forçado, como se fosse preciso divertir o público, machucar ao mesmo tempo em que se assopra a ferida. Mesmo assim o filme consegue ser reflexivo o bastante e fica acima da média. Fosse um filme argentino, o personagem seria um escritor frustrado, às voltas com a produção de um livro ou peça teatral. Do jeito que está, consegue ser mais próximo de nossa realidade, cada vez mais absurda e doentia, em que procuramos nos salvar muitas vezes mergulhados em nosso erotismo e egocentrismo, bem brasileiros, afinal de contas.

* * *



Ainda falando em filmes. As previsões catastróficas de cientistas de extinção de boa parte da biodiversidade ainda na metade deste século, me fizeram lembrar de Blade Runner, cujo título do romance original de Philip K. Dick é: “Andróides sonham com ovelhas eletrônicas?”. Uma referência ao futuro em que os animais estariam extintos e seriam substituídos por autômatos. A própria humanidade estaria em risco, com a criação de andróides tão perfeitos e indistinguíveis dos verdadeiros humanos que precisariam ser eliminados. As lembranças e sonhos desses modelos são programas de computador implantados em lugar da memória. O argumento virou um filme-pastiche bem ao gosto dos anos oitenta, nas mãos de Ridley Scott, mas que marcou uma geração naquela década ingênua, quando ainda acreditávamos que o futuro demoraria a chegar.