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terça-feira, 28 de junho de 2011

EMBAIXO D’ÁGUA



É preciso ser “apanhado” pela literatura, “apanhado” em alguns momentos, em alguns sentidos O rio, quantos rios já vivi? Pela vida, talvez. Falo da vida quando penso na morte. A vida é esguia, como um rio

Imergi, por entre meus pés, piabas, ao pisar, senti o barro mole, por entre meus pés, o sol brilhando na superfície barulhenta e verde, cercado de

Menos raivoso. lodo. Tudo é pré-texto. Foi você ou fui eu quem pensou primeiro isso? Os avós estavam vivos ainda. A casa amarela no pé da serra estava ainda. Meu pai

Cinco anos. Eu ainda não sei que não sei nadar. A água à minha frente parece tão fresca. Eu tenho dois pés. Todo mundo tem dois pés e está na água. A água começa onde acaba a superfície que toco com meus pés. É fácil pisar na água. Eu afundo

também. Tudo é pretexto, você disse? Para mim basta estar aqui. Hum, queria sair dessa dicotomia. Dois, 2+2=5 será possível?

  É tudo tão bonito. Ouço um som surdo e abafado de vozes acima. O que são essas bolhas coloridas? Aqui é bom. Vou ficar aqui mais um tempo. De repente, uma quebra no som. Sou levado para cima. De volta ao sol e às

Tem um hum de reserva guardado aí, para ser usado, 1 elevado a 0 dá sempre 1. Noves fora, eu

nuvens. Treze, agora, eu sei nadar. A piscina estava a uma temperatura de cerca de perto de acho que uns 30º C. Fonte termal. Mergulho

Não foram muitos os rios, pensando bem. Talvez, minha experiência debaixo d’água,

deslizando, pelo fundo, indo. Voltar, voltar. Sem forças eu quase não consigo, mexer, os braços, as pernas, não têm a força necessária para, a água pesa, depressa, depressa!

talvez não tenha sido muito boa.
Na praia, redemoinho, certa vez, mudou minha perspectiva de vida. Outra vez, atravessei o rio dentro do mar - o rio queria me levar

Ela nadou certa vez, alto mar, até a beirada de uma rocha, com o mar batendo em volta, inconsciente de si própria e do perigo, ela simplesmente se deixou levar para longe, longe daquele lugar, de sua adolescência triste e solitária ao lado da mãe, de sua beleza radiante, de si, fora de si, longe. Foi finalmente salva por um barco de pesca numa cena digna de 

O pai estava embriagado demais aquela noite. Ele e ela discutiram mais uma vez. Antonioni. Ele começou a tirar a roupa e correu para o meio do mar, no meio da noite, nu, para a escuridão e o conforto da noite, a água quente do litoral do Norte, “Mar do Norte” (Rilke), permite entrar na água mesmo à noite, chamando os homens e as mulheres, a lua apenas iluminava sua cabeça um ponto preto uma ilha de solidão no meio da noite cálida meu pai naufragava cada vez mais longe da costa e nós ali na praia, na imensa solidão da praia deserta, na escuridão clara de uma lua cheia, agarrados à nossa mãe e à areia, chamando de volta chamando de volta chamando

Desde a infância: são coisas de outro meio, grandes demais, sem uso, sem lugar, que só aumentam sua
solidão.

domingo, 19 de setembro de 2010

Mário de Sá-Carneiro: Impressões domingueiras


Leio Mário de Sá-Carneiro no domingo meio nublado, no parque da Água Branca. Um parque meio pobre e mal-cuidado, em reformas, com aves simplórias ciscando em meio aos pombos (que ao meu ver nem aves são), galinhas, galos e pavões. Paus-brasis dos mais altos que já vi -antes só conhecia mudas-, que me pareceram muito estranhos, e um resto de vegetação que para nós, citadinos, já nos basta para nos sentirmos em meio ao mato. Uma surpresa. Há quiosques com livros que você pode pegar e ler, depois devolver, sem ninguém para dar por isso. Um quiosque com livros de poesia! Poucos, uns 20 talvez, mas todos bons (lembro que vi Rimbaud, Lautréamont, Haroldo de Campos, Célan, José Paulo Paes), outro de literatura em geral. Fui lá no de poesia e peguei o Mário de Sá. Há mesas de leitura, como as de um restaurante, só que sem garçons, e quando fui lá estavam vazias. Uma musiquinha tocava ao fundo, uma canção infantil. Eu já o tinha lido, claro, mas naquele parque lúgubre, num domingo, após ter passado em frente a um baile da terceira idade, que ocorria a poucos metros ali mesmo dentro do parque, onde pairava um estranho desânimo, um “além-tédio" (1) de tudo -para um parque, com crianças!-, a sensação foi amplificada.

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Acrescento algo totalmente desnecessário a essa minha nota igualmente desnecessária, que não tem muito a ver com Sá-Carneiro mas com o "estado de ânimo" do parque naquele dia. O tal baile da terceiridade era uma das "atrações", comparável aos brinquedos para as crianças e os animais soltos, para os que de fora observávamos os velhinhos a entrar na casa - de onde saía uma animada música, contrastando com as figurinhas trêmulas que, rapidamente, e sem trocar muitas palavras, a espinha dobrada, entregavam determinada quantia ao homem, também de idade, usando um chapéu preto e camisa social, que fazia às vezes de porteiro e bilheteiro. Como a casa ficava numa parte baixa, as pessoas na parte alta do caminho que passava ao lado do salão de baile, paravam para olhar, algumas empurrando carrinhos de bebês, em roupas de "jogging", ou casais de meia-idade, por um momento sinceramente enternecidos com as imagens do passado (que para nós seria mais certo dizer futuro, mas que vemos como pertencentes a um tempo passado). Escutei uma garotinha dizer: "mas deve ser necessário ter uma certa idade", entre desejosa e precavida, de participar da "festa", que, como tudo mais no parque, tinha a aura de espectro.

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(1) - nome de um poema de MSC.

Nada me expira já, nada me vive ---/ Nem a tristeza nem as horas belas. /De as não ter e de nunca vir a tê-las, /Fartam-me até as coisas que não tive. //Como eu quisera, enfim de alma esquecida, /Dormir em paz num leito de hospital.../ Cansei dentro de mim, cansei a vida/ De tanto a divagar em luz irreal. //Outrora imaginei escalar os céus/ À força de ambição e nostalgia,/ E doente-de-Novo, fui-me Deus/ No grande rastro fulvo que me ardia.// Parti. Mas logo regressei à dor, /Pois tudo me ruiu.../ Tudo era igual: A quimera, cingida, era real,/ A própria maravilha tinha cor!// Ecoando-me em silêncio, a noite escura/ Baixou-me assim na queda sem remédio;/ Eu próprio me traguei na profundura,/ Me sequei todo, endureci de tédio.// E só me resta hoje uma alegria:/ É que, de tão iguais e tão vazios, /Os instantes me esvoam dia a dia/ Cada vez mais velozes, mais esguios...

Ver também o poema "Dispersão".

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Filme em preto e branco

Chove há quatro dias consecutivos na cidade, que respira aliviada depois de um período prolongado de muita estiagem e secura. Mas não é uma chuva intensa, maciça, e sim chega a ser delicada, porém insistente, generosa, ininterrupta, mas sem ser excessiva, cobrindo a cidade e os habitantes com uma camada líquida que deita e literalmente rola pelos ombros dos homens e pelas ruas acidentadas, ladeira abaixo, formando verdadeiras cascatas e rios nos asfaltos e paralelepípedos, correndo por entre carros e homens ― e não parando nem para um nem outro.

Há um trilha sonora intensa e maravilhosa que sufoca os barulhos dos carros e quase que muda se faz ouvir surpreendentemente por cima dos ruídos. Os movimentos dos passantes se tornam lentos e algumas vezes incômodos, como que convidando à reflexão. Diferentemente dos dias ensolarados, em que cada um vai para aonde quiser, na hora que bem entender, a passos rápidos, esportistas, aqui vemos os guarda-chuvas se abrirem e se fecharem formando verdadeiros círculos de veículos separados, isolando seus condutores em cabines únicas, na maioria de cor preta, individualizadas.

O dia inteiro pouco se viu de luz. Embora não estivesse tão escuro a ponto de se acenderem as lâmpadas dos postes, como sói ocorrer às vezes, quando somos pegos de surpresa e quase sempre nos causa uma sensação desagradável de angústia de não saber as horas nem onde estamos. Havia luz, mas filtrada pelas nuvens e pela poluição, chegava aqui em baixo esmaecida e opaca, só tornando o concreto ainda mais feio e cinza, como num filme em preto e branco, feito intencionalmente dessas cores, ao qual assistimos mornamente, com um misto de interesse e tédio, apenas para num determinado momento espetacular de epifania nos depararmos com o conhecimento de que é para nós a nossa própria vida.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Cidade do México - Diário de viagem

Frida Kahlo por Antonio Gironella


(Instantâneos)
-escrito em portuñol selvagem-

Xochimilco: Pântano Azteca de águas oscuras. Aquí hay gente que vive aislada. A mãe levando de balsa, remando, seus filhos para la escuela. Nosotros y los mexicanos bebiendo frescas cervezas. Tristes-alegres, “valsam”. Noches Buenas*, los terribles Mariachis e bem no fundo, quase não se notam, emplumados para la guerra, eles nos olham.

Teotihuacan: Das casas de palha e barro, nenhum vestígio. Palácios, um rei morou aqui. Do alto da pirâmide, larga vista para o vale de los muertos ―“camelando” sus últimas bugigangas.

Centro, praça do Zócalo: Em uma tenda zapatista armada, solitária, alguém canta una vieja canção, Che Guevara. Policiais no palacio del Gobierno montam-guardam os murais de Rivera.

Centro, Catedral: Silêncio. No centro, à entrada, de interior negro, Jesus Del Veneno, oscuro, pende de la cruz, como se pendesse de um galho, antes dos outros santos e altares. Tudo alto y dependurado. Cheiro incenso ―mais silêncio, intenso, vindo de fora, da praça, um canto, irreproduzível, la-la-la-la, de tristeza amplificada de micrófono, alegre y desesperada. Um campesino escuta a si próprio na sala reservada, a conversar com estátuas, que lhe olham, e a si mesmas, assustadas, em su silencio de luto e de madera.

Palácio de Belas-Artes: Fuera los santos! Catedral (in)útil onde se odeia/adora el hombre: de novo Rivera, Orozco ―um rasgo en las paredes, mejor que los murales, gigantescos y tirânicos: Gironella, pinturas que  son un corte y sangran.

Museo Nacional de Arte: Bela moldura, em espanhol. Patio sin nombre ―donde contemplo o vazio, el tiempo, como se fuera la mas bela de las artes, subindo y descendo las escaleras.

Calle Francisco de Souza: O ocre cor de terra das casas da calle Francisco de Souza, hijos de la Malinche, também tingida de azul cobalto y Frida, que eu não vi, as aquarelas do museu de aquarela...

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* "Noche Buena" é o nome de uma cerveja mexicana, do tipo premium, escura, de edição limitada e lançada nos meses de outubro a dezembro para ser consumida na noite de Natal (a "Nochebuena", como é chamada). É também o nome de uma flor vermelha estampada no invólucro da cerveja.

sábado, 5 de julho de 2008

CADERNOS DE ESTÉTICA

Pico do cabugi_on the road
Revista Bula, 11 de setembro de 2006
Lauro Marques

RAZÃO-POESIA


–– “O que faz uma obra ser dotada de poesia e outra não? A sensibilidade do receptor?”

Acredito que deva haver uma razão objetiva, isto é, na própria obra. Existem potencialidades latentes que apelam tanto à razão como à emoção, para um receptor suficientemente apto a interpretar-sentir (sentir já é uma forma de interpretar).

Alogicidade, pelo menos de um tipo de lógica, formal, estrito senso, é uma das características da poesia. Mas há um outro tipo de lógica, que apela para, na falta de uma palavra melhor aqui, a “intuição” e funciona por meio, por exemplo, do uso de metáforas.

Lembremo-nos que um poema verbal é constituído de um encadeamento de palavras, uma após a outra. Essas palavras formam conexões “abertas”, e, para mim, quanto mais abertas, ambíguas, mais “poéticas”.

Isso nos “salva do abismo de existir”? Talvez seja um só nó em que nos seguremos, por algum tempo. Não seria o poeta aquele que, ao contrário, mantém-se sempre na superfície? Sempre mirando o abismo e portanto nunca a salvo dele?

Salvos estariam somente os que evitam esse olhar. O homem comum. Mas quem quer estar-se a salvo quer também fugir. Este tem medo... não sente....

Talvez nossa tarefa, e parte de nossa condenação, como poetas, seja “permanecer valentemente na superfície, na dobra, na pele, adorar a aparência, acreditar em formas, em tons, em palavras, em todo o Olimpo da aparência!”. Ser “superficiais – por profundidade...” , como os gregos, como queria Nietzsche.


TRANSPARÊNCIA


Pensar como o poema “revela” algo (de nós, do mundo). Por que temos pudor do poema? Porque ele nos deixa nus, ao mesmo tempo em que esconde. É transparência. Benedito Nunes fala algo a respeito disso no livro “Introdução à filosofia da arte”, da Série Fundamentos, vol. 38. São Paulo: Ática.

O objeto estético, que é ao mesmo tempo sensível e expressivo, é para Nunes (1991: 79) uma “existência ‘aparente’, não como Platão queria, mas como Schiller entendeu: aparência que é translucidez ou transparência, a qual vive de sua própria forma reveladora”. E afirma Suzanne Langer (apud Nunes 1991: 80) que: “uma obra de arte difere de todas as outras coisas belas pelo fato de que é ‘vidro e transparência’ (palavras de Ortega y Gasset)”, sendo, portanto, nessa acepção, “um símbolo”.

“A arte é uma forma de ação, cujos efeitos se produzem de maneira indireta, oblíqua, na proporção da transparência do mundo que exprime. Revelando-nos o humano em sua variedade e profundeza, forçando-nos a interiorizar essa revelação e assimilá-la à experiência, ela age sobre a nossa maneira de sentir e pensar” (Nunes 1991: 88).

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Poesia é risco. Ser poeta é arriscar-se. Mas não nos confundamos mais, uma coisa é o poema, outra a poesia (há até quem faça poema sem poesia...).


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Há na poesia uma espécie de fusão. Quando eu era menino, por volta dos sete anos, lembro que minhas viagens de carro com meus pais duravam horas. Iam da madrugada até o meio da tarde do dia seguinte. Eram séculos, em que eu podia observar todas as colorações, mudanças de tom, da paisagem e vegetação que iam do preto-azul escuro cinza ao amarelo e azul e verde e depois cinza e azul e depois verde-escuro-azul e amarelo-ouro de novo. Lembro da paisagem lunar do Pico do Cabugi, marciana, quando ficava avermelhado. (Revendo a fotografia, me lembrei de uma Torre do Silêncio Parse). Lembro também da comoção que me causavam algumas pessoas caminhando ao pé da rodovia. Como, diante de uma casa solitária com um homem velho parado à entrada eu podia sentir como se fosse aquele homem, ou essas crianças jogando bola num chão de terra batida, ou agachadas ao lado de um cão, ou aquela mulher com um lenço vermelho estendendo roupa numa cerca de arame na planitude. Podia me ver transportado para dentro daquela pessoa e quase me observar passando diante deles, de seus olhos. Em uma ocasião, disse à minha mãe, como eu me sentia. Cautelosa, ela pediu-me para não fazer mais isso. Eu não deveria fazer mais isso. Era perigoso, ela disse, olhar na alma das pessoas.

domingo, 12 de agosto de 2007

O ENGANO

É verdade que cultuo a incerteza pelo pouco que vale.

Oh, canções dos sóis distantes!

Hoje, compus uma canção de marinheiro, dessas bem tolas, para serem cantadas por um grupo de amigos, caneca à mão, em alegres rodas:

DESAFIO AO MAR



O mar é um marujo bêbado, este fim de tarde.
E eu não sei se sou um espectador ou sou ele
próprio se arrebentando no casco
de terra sobre o qual estamos,
em nossa embarcação de
pedra, aço e madeira.
(Todos estamos bêbados de cerveja e vinho e bebemos
sentados em nossas cadeiras, dormindo ou apenas admirando).
A verdade é que se passaram assim
mais de seis horas.
Ninguém sai daqui antes do sol
ir-se embora...

Não haverá vencedores nessa peleja...
Hoje, o banco de areia resistiu,
Mas, alto lá,
voltaremos amanhã, mar,
– e veremos!
*
*
*
Todos nós seremos grandes coisas assim que quisermos. Mas, ai de nós, não será ainda hoje.

Grandes corações, homens, artistas, escritores, poetas, atores. Amigos, maridos e esposas. Pais e filhos. Irmãos-na-alma.

Por enquanto, a única certeza acabou de se pôr no horizonte. E como eu estava longe, e chovia, e entre quatro paredes de concreto... Eu não vi nada.

Um dia nos tornaremos aquilo que somos. Mas, ai de nós, não hoje.

Volto o olhar mais uma vez sobre minha pequena criação tola. Que quis eu dizer, realmente, com aquilo?

Qual o desafio?

Os marujos só podem vencer o mar, na sua batalha contra o monte conquistado, arrebentando eles próprios o coração, transbordando de tanto beber nos seus copos de cerveja.

Falsa vitória!

E há pouco, julgava-os audazes e orgulhosos!


“O engano” ou como vi a mim mesmo num reflexo noturno.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

NOTAS VAGABUNDAS




Obrigado linhas brancas. Obrigado por me salvarem mais uma vez esta noite. Eu que sempre desprezei o conceito de “arte como terapia”, me valho dele aqui hoje. Bem, eu não devo estar fazendo “arte” nenhuma agora mesmo, então foda-se. Eu apenas tento manter o movimento da caneta em minha mão. Tento me manter vivo.

Eu poderia estar matando alguém esta noite ou sendo morto - movimentos diferentes das mãos (me matar, esqueçam, está completamente fora dos meus planos)...

Parou e olhou para a janela, a noite como sempre convidativa e atraente, com suas luzes piscando das janelas dos edifícios vizinhos no ar úmido. A noite parecendo uma cadela no cio. Na TV de outros apartamentos, o papa desfilava em meio à multidão. Alemães, “Deutschen” - os “pagãos”, e agora um santo brasileiro. Aguardente e cristianismo nas reservas indígenas. Narcóticos europeus.

Especialmente ele agradecia pelo silêncio dessas linhas brancas, as quais ia ferindo com a ponta aguda da caneta. Vocês sabem conduzir uma conversa, vocês sabem me mostrar quando estou sendo ridículo ou totalmente enganado. Vocês sabem que eu sou mais um prisioneiro de vocês. Vocês não pedem nada em troca. Vocês fingem que me compreendem ou será apenas a indiferença que me atrai? Porque vocês aceitam tudo e não reclamam nunca. Toda conversa fiada ou mole, toda estupidez humana ou divina....

Pensou na frase de Nietzsche e na sua crítica dos santos cristãos, “os quais suportavam a vida somente por pensarem que, vendo sua virtude, cada um seria tomado de desprezo por si mesmo”. Foi um pensamento absurdo que lhe veio à mente,como qualquer outro.

O importante é tê-los por perto. Nunca compreendeu que se escrevesse em guardanapos, caixas de sapatos e quejandos, especialmente esses últimos. Cadernos com marcas de vinho, batom vermelho, manchas de café e manchas de tinta de uma imitação barata de uma marca igualmente barata de caneta, e uma alma vagabunda demais para ser vendida - admitiu. E seja lá como for, ele não a venderia nunca. Gostava de tê-la só para si, inacessível. Enfurnada num corpo que não a continha nem pela metade, nem quando deitado ao comprido. Daí que precisasse ir para fora, para além dele, e por isso esses cadernos inúteis, muito úteis para ele.

Tomou um gole do vinho cujo rótulo informava que cangurus de verdade pulavam no meio dos vinhedos da Austrália. Pensou na mãe canguru (cuja palavra em língua australiana significa “não sei”) carregando garrafas de vinho na bolsa marsupial, outro pensamento absurdo.

Meus sentimentos? Costumava dizer. Meus pêsames, eles morrerão comigo, são incomunicáveis.

Eu não sou como o vinho, você não pode se embebedar comigo. Eu não sou como o vinho, não tenho nem um pingo dessa nobreza. Eu não sou como o vinho, no máximo, eu posso deixar marcas na sua língua e dentes. No máximo, eu posso ir embora enquanto você dorme ou morrer jovem... estragar no dia seguinte.

Como essas notas vagabundas.

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Cuspidelas para o alto: pseudo-escrito



“Talvez eu nem sequer seja escritor”, escreve, “mas apenas alguém que rabisca de vez em quando garranchos ininteligíveis em seu caderno”.

Pegou um trecho qualquer e leu: “Quando o vento veio irritar, enrugando, a superfície da água...”. O texto não tinha início nem fim.

Mais adiante, achou essas anotações encabeçadas por um título curioso, e, é claro, não plenamente desenvolvido e também deixado incompleto: “Da culinária dos nômades: lições de sobrevivência”. Cito um trecho:

“Comida do nordestino. Foi feita para viajar. Um pedaço de rapadura e a carne salgada e seca ao sol duram meses. Nisso temos em comum com os povos nômades (...) O sertão não é deserto. Talvez nem mesmo o deserto seja tão deserto assim para quem vive nele. Logo saberá descobrir-lhe os oásis.”

“Há desertos nas cidades grandes que são mais desertos que...”.

Parou neste ponto, perigosamente perto de um lugar-comum.

Depois, essas anotações sobre a Beleza:

“A beleza não existe. Ponto. O artista deve ser obrigado a inventá-la. Uma das formas de inventar a beleza é mostrando seu extremo oposto. O feio. O feio existe. Logo, a beleza pode ser imaginada...”

Pensou ter encontrado uma “palavra-valise”, mas, enganou-se. A valise não continha nada.



Etílicos e suicidas

“Melhor/ morrer de vodca/ que de tédio!”, escreve Maiakovski num poema dedicado a Sierguei Iessiênin, que se suicidou num quarto de hotel, em Leningrado, em 28 de dezembro de 1925, aos 30 anos. Cortou os pulsos e escreveu com o próprio sangue estas duas estrofes na parede (tradução de Augusto de Campos):

Até logo, até logo, companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.

Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer, nesta vida, não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo.

No mesmo poema, já citado, em que responde lindamente a essas linhas, Maiakovski quase que admoesta o amigo: “Nesta vida / morrer não é difícil./ O difícil /é a vida e seu ofício.” (Tradução de Haroldo de Campos). Ele que, no entanto, cinco anos depois, em 1930, quando tinha 37 anos, também se suicidou, com um tiro no peito, imitando a si mesmo num dos seus poemas famosos.

Em “A flauta vértebra!” (1915), ele afirma: “Seria melhor talvez / pôr o ponto final de um balaço” (Trad. De Haroldo de Campos).

Quem morreu mesmo de vodca, dizem, foi Paulo Leminsky. E é Carlos Heitor Cony, num prefácio às “Novelas Nada Exemplares”, do também curitibano Dalton Trevisan, quem diz: “Um moço em Curitiba só tem um remédio: afogar-se. Como não há mar, um tonel de rum serve”.

Ultimas notícias

Extra! Extra! Deu entrada no Hospital da Poesia, recentemente, mais um poeta, vítima do trocadilhismo - doença medieval que reaparece de tempos em tempos entre nós. A vítima foi internada, suspeita-se, devido à ingestão conjunta de uma “Mc-rima” com um “Rilke-Shake”.

segunda-feira, 30 de abril de 2007

DO CADERNO AZUL - OUTONO



Notas para um conto.
Um homem espera num chalé no alto de uma montanha, após ter cometido um ato. Que ato? O que espera? Quem virá encontrá-lo?

Sugere-se que cometeu um crime (assassinato) por encomenda e espera o autor do pedido ou a polícia. O conto termina desviando o olhar, à maneira dos filmes de Godard, para os próprios pés, para o chão, a estrada.

Talvez seja possível incluir, nem como uma espécie de comentário posterior ou epígrafe, alguma coisa de Platão, no Fedro, quando diz: “É isso precisamente o que a escrita tem de estranho e que a torna muito semelhante à pintura. Os produtos desta apresentam-se na verdade como seres vivos, mas, se lhes perguntares alguma coisa, respondem-te com um silêncio cheio de gravidade. O mesmo sucede também com os discursos escritos.”

* * *

A solidão da invenção.
― Para escrever, basta a solidão e um papel. Para escrever bem, talvez seja necessário alguma outra coisa.

Olhou o céu azul pálido, como lavado, e alinhado de nuvens excessivamente embranquecidas pela luz de verão.

― Fernando Pessoa tinha essa mania de descrever o estado do céu, em “O Livro do Desassossego”, mas, merda, isso também cansa ― pensou.

* * *

Era preciso estar numa cidade estranha esta noite. Num quarto de hotel vagabundo, açoitado pelo vento. Sem mãe, pai, esposa, filho ou amigos a quem recorrer. Era preciso estar num quarto escuro, numa cidade estranha, esta noite. Onde ninguém relembrasse meu nome, onde eu não tivesse língua alguma a quem me comunicar.

É verdade, eu já estive lá.

* * *

Há certos caminhos que precisam ser retomados.

O que é a solidão para um homem? Será o mesmo para uma mulher?

Por que as frases deslizam no papel?

No meu caderno azul que precisa ser trocado, de velho, marcas.

Fragmentos de uma briga em que eu tentava me comunicar pela escrita. Na primeira linha: “Caiu no”, e uma linha abaixo, parecendo uma notação musical, deslocada para direita: “meu” e quase na mesma linha, mas um pouco acima, faltando uma letra: “Cai”, e pulando uma linha, no mesmo estilo de escrita na diagonal, a palavra “conceito”.

A raiva era tanta que as letras saíam tortas, repetidas, como num gaguejo.

Aquilo soou para ela como se eu chamasse a mãe dela de puta ou pior. E, impressionante, totalmente por acaso, um recado anotado no mesmo caderno, deixado ali para ser lido, na ausência dela, de um outro dia, já distante, com a letra dela, femininamente perfeita, na página imediatamente anterior: “Muitos beijinhos, meu amor”.

Nos fragmentos, a vida, o murmurinho do mundo.

* * *

Qual a melhor forma de se apagar senão inventando para si mesmo um duplo?

É o que une Paul Auster e um punhado de outros bons escritores a André Gide. Dois autores que citei com freqüência aqui nessa minha coluna pretensiosamente despretensiosa. Talvez, pensando melhor, fosse bom eu também criar um duplo para mim mesmo, que executasse a tarefa.

Leituras de outono.
Recentemente dois “lançamentos” de autores a quem também já fiz referência me chamaram a atenção. Um deles é de 1961, finalmente traduzido para o português. “O Estaleiro”, romance do escritor uruguaio, Juan Carlos Onetti. Dele, escreveu André Sant’anna em resenha de amanhã (no caderno Mais! da Folha de São Paulo, 15/4, que leio nesta noite de sábado, 14/4): “Onetti trabalha enfurnado na insignificância, com personagens insignificantes, em um cenário insignificante, onde nada de fantástico jamais acontece.” Mas é provável que o leitor, prognostica ele, “na insignificância da leitura de ‘O Estaleiro’”, “sinta uma agonia profunda, sinta o cheiro da morte, o gosto do nada”. O improvável leitor fiel desta coluna deve estar se lembrando do que eu disse sobre o filme “O Cheiro do Ralo”. Por isso mesmo, acrescento, Onetti é um autor que “significa” muito ou quase tudo (representa uma coisa por meio de outra, ausente, que se faz presente no ato da leitura). Ele surpreende, sim, por sua linguagem e estimula a imaginação do leitor. Ao contrário do que estranhamente afirma Sant’anna logo no início da resenha.

Outro “lançamento” saído pela Topbooks é “Tempo dos Mortos”, uma reedição da trilogia “Estação da Morte”, “O Enigma” e “O Sonho”, do poeta, escritor e memorialista cearense, José Alcides Pinto. Alcides é autor do fragmento, fincado na memória: “Oh, a beleza que cuspo quando sonho ― o puro licor que adoece.”

Eis aí uma seleção, caro leitor, do que você pode talvez querer ler no seu outono, o qual, ao que tudo indica, salvo disposições em contrário, já começou.

quarta-feira, 11 de abril de 2007

SIMILITUDES E INFLUÊNCIAS


“No final, todas as vidas não passam de uma soma de fatos contingentes, uma crônica de interseções fortuitas, lances de sorte, casualidades que nada revelam senão sua própria falta de propósito”, diz o personagem principal de “O quarto fechado”, uma das histórias que compõem A trilogia de Nova York, de Paul Auster.
“Pode ser”, pensa Gabriel. Ele lembra que a viu passando pelo corredor vestida num collant azul, a cor preferida dele. Gabriel recorda de ter pensado como ela era bonita e que com certeza ela devia ter um namorado. Ela nem sequer o notou e não podia saber que alguns meses depois eles iriam estudar juntos na mesma sala no mesmo curso de pós-graduação. Ele também não podia imaginar que eles iriam estar casados um ano depois e que ele seria de fato o primeiro namorado dela.
Nessa época, Gabriel estava morando numa “República” perto da Universidade, no apartamento de número 13. A casa dela ficava no número 1131, em outro bairro, uma casa grande, com piscina, que lembrava um quadro de David Hockney. A placa do carro que o pai de Gabriel dirigia quando morreu era 3113. Quando eles se casaram foram morar num apartamento que tinha sido da avó dela, por mais de dez anos, e que ela costumava alugar a terceiros. Qual era o número do apartamento? Bem, você pode procurar por eles no décimo primeiro andar, nº 113.
* * *
Dois poemas.Remexendo na gaveta de guardados (caixa de entrada do seu velho Outlook Express), M. encontra fragmentos de poemas e a explicação para a semelhança daquilo o que ambos exprimem numa nota enviada pelo correio eletrônico também a S.F.
“Ô a beleza! A beleza que cuspo quando sonho -- o puro licor que adoece.” (Alcides Pinto).
E o de M.:
“Cuspiram-me o cadáver -- o amor!
O amor estava sendo preparado
-- deram-me o amor!
Aí então me tornei a doença que tanto temiam.”
Final de Interlúdio (1) (Do Amor): IV-A MUSA, de Balada para um Morto, livro inédito.
Na nota, M. explica que estava lendo o Alcides e se carcomendo o espírito: “Como posso EU ter sido influenciado por esse senhor??? Na verdade ambos devemos ter sido influenciados pelo ‘De Azedo’ e o ‘De Arbelo’. E Ambos os ‘Dos Demônios’... O Blake e o outro, Dos Anjos, é claro.”
M. gosta de charadas com os nomes. Encontra “Azedo” no nome de Álvares de Azevedo e apelida Baudelaire de “De Arbelo” (tradução para o francês “Beau de l’air”). O profeta paraibano Augusto dos Anjos é consumido por demônios, os mesmos dos “Provérbios do Inferno”, do poeta místico William Blake, e, talvez, pensa M., fossem os mesmos “demônios de rapina” que assaltavam seu peito à noite, de madrugada, queimando como o alcatrão de saias perfumadas, saídos do “seu” Livro dos Mortos em um outro poema esquecido de M.
Aquele mesmo livro cujo primeiro poema ele escreveu exatamente um mês antes da morte do pai e foi “gerado” pela leitura que o pai fez para ele do soneto de Augusto dos Anjos, que vinha com uma dedicatória ao “primeiro filho nascido morto com sete meses incompletos”. “Imagine a dor que ele sentia quando escreveu isto”, disse o pai de M. Naquele mesmo dia, de olhos fechados, no seu quarto, M. imaginou.
Quadros retratando ausências.
Do quadro de Munch, Puberdade (1895) ,diz Giulio Argan, em Arte Moderna, p. 256, retomando alguns temas que eu vinha tratando antes.
“A figura é realista, com mãos e pés grandes e um pouco avermelhados, como frequentemente ocorre com os adolescentes; delicados, como de menina, são o peito e os braços, e plena, já de mulher, é a curva dos quadris e da bacia. O rosto indeciso e amedrontado indica a perturbação da moça pela transformação que sente se realizar em seu próprio ser. Realista é a sombra, projetada pela iluminação frontal, apenas levemente deslocada para esquerda; todavia, essa sombra agigantada, que nasce do próprio corpo da menina, toma forma avulta como um fantasma, possui um claro sentido simbólico, é a prefiguração da vida futura. A cama também é realista, vê-se a marca, sente-se a tepidez deixada pelo corpo; no entanto, certamente se refere aos que, para Munch, são os dois pólos da existência, o amor e a morte”.

sexta-feira, 6 de abril de 2007

LATA DE SARDINHA VOL. 2

É a mais pura verdade. Algo que não posso tocar, ver, ouvir, ou cheirar. Descobrir o significado dessas palavras.

***

Enganei-me sobre a ilustração da capa do livro “A invenção da solidão”, de Paul Auster. É uma lata de sardinha aberta em que se vê o fundo vazio. Imagem da solidão de A. Índice da ausência. A “maldição do pai ausente”.

Como na pintura Splash (“Tchibum”) de David Hockney. Também um emblema da ausência, do que não se vê.

Seguem-se várias citações de quadros retratando a ausência.

Nighthawks, “Notívagos”, de Edward Hopper, cuja tradução literal, em ornitologia, é de uma espécie de pássaro de hábitos noturnos.

Observar com olhos atentos. A caixa registradora solitária na loja fechada, iluminada pela luz do café. A larga calçada, os bancos vazios. Um casal que não se olha, um homem de costas, o paletó lembrando as asas recolhidas de pássaro... noturno... solidão.

O quarto vazio preenchido de Van Gogh.

A “Puberdade”, de Munch. Uma adolescente sentada à beira de uma cama. A sombra da morte, desde o nascimento, presente no despertar sexual da jovem trêmula.

“Mulher de azul”, de Veermer. Conforme um comentarista, citado por Auster: “A carta, o mapa, a gravidez da mulher, a cadeira vazia, a caixa aberta, a janela que não se vê – são todos índices ou emblemas naturais da ausência, do não visto, de outras mentes, vontades, tempos e lugares, do passado e do futuro, do nascimento e talvez da morte - em geral, de um mundo que se estende além dos limites da moldura, e de horizontes maiores, mais largos, que circundam e invadem a cena suspensa diante de nossos olhos. E no entanto é na plenitude e na auto-suficiência do momento presente que Veermer insiste – com tamanha convicção que sua capacidade de orientar e incluir se reveste de um valor metafísico”.

Imagens de Manet. Olhares que nunca se cruzam e que observam o vazio extraquadro. “A ameixa”, “O balcão”, “Almoço no ateliê”, “Na praia”, “Na estufa”.

Série de fotografias, da década de 90, de Sarah Jones, com “quarto” no título. “The sitting room”, “The dinning room”. Adolescente sentada, vestida numa espécie de pijama branco, cabeça caída, da qual só se vê os cabelos lisos alongando-se sobre o braço, recostada na altura dos olhos, deixando entrever um pedacinho da nuca, na mesa extremamente polida, tendo ao fundo um biombo japonês.



“A plenitude e a auto-suficiência do momento presente”.

terça-feira, 27 de março de 2007

SARDINHA EM LATA

Minha propensão para o diarístico.

Já não posso viver sem meu caderno de notas e a caneta. (Desespero: ficar numa casa sem caneta e papel é o equivalente a ter perdido alguma capacidade).

Trocar de caderno.

Quando não escrevo parece que não “vivi direito” aquela semana.

Leitura de Paul Auster, “A invenção da solidão”.

Sugestão de minha irmã. A primeira edição da tradução brasileira é de 1999. Nosso pai já estava morto havia oito anos.

A sombra de meu pai. Meu pai, uma sombra. Nos primeiros tempos, não o procurava. Ele me aparecia em sonho. Lembro do horror de acordar e pensar que ele já não estava lá, eu havia sonhado com ele. Sonhava com um abraço. Um sorriso. Aos poucos foi deixando de existir. Não lembro se nos falávamos nesses sonhos. Lembro de uma frase ditada em meio ao sono não tão profundo. A frase era uma espécie de enigma, que eu logo desvendei: “Os óculos ficaram todos vermelhos”.

Meu pai morreu aos 52 anos num acidente de carro, no dia 31/3 de 1991. A placa do carro era 1331. No dia anterior, eu completava vinte anos.

Naquele dia, um domingo, eu escutei uma canção de Tom Waits, cuja letra dizia: “Nunca dirija um carro se estiver morto”.

Meu pai estava vivendo uma espécie de “separação branca”. Isto é, eles estavam morando em cidades diferentes. Ela, em Natal, com os filhos, e ele em Mossoró, a 4 horas de viagem. Ele ia e vinha todo final de semana.

Naquele dia estávamos nos recuperando de alguma desavença. A regra era adotar o silêncio nesses casos. Até que viesse enfim o perdão, tão natural quanto coçar o nariz ou espirrar, como pensávamos na nossa família. Às vezes acho que pusemos muito peso nessa crença de que tudo seria redimido, não importando o que fosse feito. Muito Cristão, convenhamos.

Nós tínhamos acabado de voltar a nos falar. Estávamos bebendo vinho e conversando, em comemoração ao meu aniversário. Tivemos poucas conversas de fato. Meu pai sempre viveu num mundo próprio, que não era o meu, não era de ninguém. Era só dele. E me pergunto se o mesmo não se dá a propósito de todo mundo (essa, aliás, é a conclusão a que chega Auster, até onde eu li o livro. Ilustração da capa: uma lata de sardinha aberta e dentro outra lata fechada).

Fui a última pessoa a vê-lo com vida, quando me despedi, já dentro do carro. Poucas horas depois ele estava sendo arrastado por alguns quilômetros, preso à carroceria de um caminhão, até que o motorista percebesse que alguém havia batido na traseira do veículo e encostasse.

No pára-choque do caminhão, sem luzes, e rodando em baixa velocidade, estava escrito: “não me siga, também estou perdido”.

Meu pai morreu escutando Beethoven no toca-fitas, que não parou até acabar o último movimento.

* * *

Auster pai, sobre poesia: se não dá dinheiro, não é profissão.

Judaísmo de Auster.

Marina Tzvetáiveva, poeta russa, citada no livro, após ter experimentado um período de “extrema dificuldade econômica e moral”: “Neste que é o mais cristãos dos mundos/ Todos os poetas são judeus”.

* * *

“Toda a infelicidade dos homens advém de um só fato: o de não terem sabido permanecer quietos dentro de um quarto”: Pascal. A frase, glosada também por Baudelaire em um dos seus “Pequenos poemas em prosa”, chamado “A solidão”, obceca Auster.


Mas o próprio sábio francês depois se emendou: a fonte de todos os sofrimentos é a nossa pobre condição mortal.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

Lua nova


1
São Paulo, fim de tarde (início de noite, já sendo noite, de verão), com nuvens ameaçadoras, tranquilas, trazedoras de chuvas, e uma lua nova perfeitamente delineada.

2

Abaixo dela, indiferentes, não lhe notam os prédios monótonos e sem luzes - estranhamente desabitados, de domingos.

3

Quando o céu, turvando-se e multiplicando-se em angustiantes profundidades púrpuras e azuis, vem negar-lhe o esplendor.

4

Que vai aos poucos descobrindo os olhos convulsivos dos habitantes tragados pela cratera do Metrô.

sábado, 6 de janeiro de 2007

mirante em santo antonio do pinhal



Quando chegamos, faltando três dias para a virada do ano, fomos recebidos por um beija-flor, preso na gaiola de vidro da casa. Fiquei admirado e encantado com a delicadeza com que ela pegou o pequeno pássaro em suas mãos e logo em seguida, sem que o minúsculo ser tivesse tempo para se debater, devolveu-o mais uma vez ao seu elemento. Pensei que não haveria melhor maneira de acabar 2006.

O calor do primeiro dia na serra foi logo substituído por uma chuva insistente e muda (como aprendi com René Char, “a chuva fina é muda”) que nos deixou levemente entristecidos.

Fomos interrompidos pelo ano-novo.

Agora, vendo distante, no tempo, as árvores altas, o pio dos pássaros e o canto dos sapos, e já “sem nenhuma montanha no olhar”, pergunto-me se tudo aquilo era real, “como um lago de montanha abandonado”, que não será jamais, já que uma das características do real é a constância.

Abro mais uma vez a página desse livro de Char (Nu Perdido e Outros Poemas), a esmo, e me consola o que está escrito: “Beleza, caminho ao teu encontro na solidão e no frio [...]. Amo você e você vive em mim”.

E pobre de tudo, menos do que escrevo, contento-me apenas em dividir o que não tenho com aquele que neste momento me lê. “Lágrimas e sorrisos são fósseis”. “O tempo rasga e poda. Um clarão dele se afasta: nossa faca”. “Que ele viva!”. Feliz 2007.