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quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Bienal 2010


Ninhos, Helio Oiticica (divulgação/Bienal)

Gostei da Bienal 2010, muito melhor que a última (a do "Vazio"). Apesar do tema "Arte e Política", os que conseguem fugir da interpretação literal se saem bem. Achei algumas participações bastante interessantes e bem-humoradas, como o vídeo que mostra a performance de um grupo do Rio, montado num carro-pipa "lavando" as ruas com jatos de ..."sangue", e a reação das pessoas nas rua. Os curadores obtiveram sucesso no ponto em que obras dialogam o tempo todo com a poesia, a literatura, e as artes visuais, com destaque para a fotografia, e na homenagem a autores do passado, como Lygia Pape (num belo filme da época) e Hélio Oiticica, no ninho reproduzido na foto ao lado. Ainda não deu para ver tudo, preciso voltar logo.

domingo, 11 de julho de 2010

MINIMUM RES (COISA MÍNIMA)

AFORISMO SEM NENHUM PRÉ-JUÍZO (para Valdivino Braz)

Em terra de cego, quem tem um olho só é semi-ótico.



ARTE É INTERPRETAÇÃO

Uma obra de arte é um signo. Como tal já é interpretação, antes mesmo de ser interpretada. Ela representa algo para um intérprete futuro. Esse intérprete futuro é virtual.

Signo de quê? Do objeto que “aparece” por meio da mediação que a obra de arte faz entre o objeto ―que não é individual, mas múltiplo, o universo “criado” pelo artista, algo que é “dado”, ou seja, “aparece” por meio dela― e um intérprete futuro. O primeiro intérprete desse signo assim “criado” sendo o próprio artista.

É interpretação, de algo anterior a ela, desde a origem, seja na forma de pintura, partitura, livro, filme, já é uma interpretação. Como se dá essa interpretação é que vai definir se ela é arte. É olhando para o produto “criado” que podemos emitir algum tipo de julgamento. Claro, há muita subjetividade envolvida nesse julgamento, mas ele não pode ser somente subjetivo.

OBJETIVIDADE DA ARTE

Há uma objetividade na obra de arte que está na origem desta como um signo (algo que não vive numa esfera à parte, mas está sempre “grávido” de mundo, de um objeto). Uma pintura não deixa de ser arte quando se apagam as luzes do museu e não há ninguém mais para admirá-la. Ela “contém” algo.

Assim como uma pintura, uma partitura é um sistema de signos, que vai ser lido, “interpretado” por alguém. Obviamente ninguém “tira” Mozart de qualquer partitura Então há um ponto de partida para a música ―uma “ontologia da arte”― que vai ser executada depois, e isso é fixado por quem escreveu a partitura, uma pessoa, mil, não importa. O que importa é o produto.

ARTE É PROCESSO

A vida dos signos é “comunicar idéias”. Como um signo, uma obra de arte está sempre apta a uma interpretação. Essa interpretação é um signo mais desenvolvido, não no sentido de algo melhor, mas de que foi gerado pelo primeiro. A execução da música é um signo mais desenvolvido de uma partitura. Há arte em ambos, arte é processo. Está sempre em processo. Como tal não é “acabada” nunca.
DIGRESSÃO: NEM TUDO É ARTE, MAS TUDO PODE SER INTERPRETADO

Mesmo a arte conceitual precisa de objetos. Duchamp é o caso paradigmático. Affonso Romano de Sant'anna disse que não havia o que ver na última vez que Duchamp foi exposto em São Paulo. Segundo alguns críticos, os “objetos” de Duchamp não são obras de arte, mas reflexões sobre o fazer artístico.

No entanto, essas reflexões não existem apenas na cabeça de Duchamp. Elas ganharam uma forma, que não é ―nunca é― destituída de conteúdo. Algumas pessoas confundem as coisas e passam admirar somente as formas do urinol, sua “beleza estética”. Um artista que visitou a exposição confessou ao jornal que ficou emocionado porque fez girar com a mão a roda da bicicleta ―uma “cópia” da “original”, que foi jogada no lixo pela irmã de Duchamp, que, obviamente, “não entendia” nada de arte.

Dissemos que arte é interpretação. Mas qualquer coisa pode ser interpretada. Um banco de madeira não é simplesmente um banco de madeira. Ele inclui, no próprio processo de fabricação, a forma humana. Tem uma determinada altura, que é a altura que uma pessoa normal poderia se utilizar para sentar. Em alguns casos, pode ter um encosto para os pés. A forma é determinada pela função.

Do mesmo modo, uma roda de bicicleta. Nenhuma forma é destituída de conteúdo. As rodas da bicicleta têm uma função, são feitas para cumprir essa função, que é fazer com que a bicicleta se mantenha em pé e se movimente.

Duchamp pega esses dois elementos que não coexistem (na verdade são antípodas) e cria, reinterpreta, a partir de um conceito, que já é o surrealismo, um novo objeto, que é um “mix” de ambos: um banco de madeira, feito para sentar, que se move! (Ao fazer isso, ele “recria” a bicicleta, de cabeça para baixo, devolvendo uma característica de estranhamento ao que é considerado “normal”).

O “produto final” é também uma idéia ―mais do que nunca um signo, imaterial. Paradoxalmente, essa idéia precisa, como dissemos, de uma forma para se expressar. Não por acaso, os curadores das exposições ganharam destaque. São eles os responsáveis pela organização dessa forma, o que já fazem os museus. Os museus, as exposições, “reinterpretam” as obras, que já são interpretações. A arte morre ―é a tese de Hegel― para se tornar “filosofia da arte”. A História, no entanto, continua.

sábado, 16 de agosto de 2008

Diferenças entre objetos esteticamente bons

(fragmento de Teoria Estética)

No limite, não há nada que não seja esteticamente bom, já “provaram” os surrealistas e Duchamp. Na medida em que um fenômeno é ―seja um banco de madeira, uma roda de bicicleta, um urinol, ou um acontecimento, o qual poderia ser o “evento surrealista” (Boher 2001: 20)―, como um todo unificado, ele “deve ter alguma qualidade permeando sua totalidade” (Potter 1967: 46). Ele possui, nessa avaliação, “excelência estética”, o que foi chamado de “excelência ontológica” pelos escolásticos (Parker 1998: 50). A qualidade pode ser tal que nos nauseie, assuste, ou de qualquer outra maneira nos perturbe a ponto de nos afastar do humor próprio ao prazer estético, da disposição de simplesmente contemplar a materialização dessa qualidade em um objeto. Tal objeto “permanece igualmente esteticamente bom, embora as pessoas em nossas condições sejam incapazes de uma calma contemplação estética dele” (Peirce 1998: 201). O que significa simplesmente dizer que há uma certa autonomia do objeto, em relação à sua recepção, e que as qualidades que ele apresenta não são em si mesmas nem boas nem ruins. Pois, como frisa Peirce (2003): “toda abominação estética é meramente nossa insensibilidade resultando de obscurecimentos devidos às nossas próprias aberrações morais e intelectuais” Esse caráter livre, autônomo, de um objeto estético, é um aspecto inerente à sua conformação, que faz ele ser como ele é. Schiller definiu beleza como “nada mais do que liberdade no fenômeno” (Schiller 1995: 120).

Entretanto, dizer que todo fenômeno possuindo unidade interna é ontologicamente ou esteticamente bom, não significa dizer que não existam diferenças entre os fenômenos (Parker 1998: 50), o que não deixaria nenhum espaço para crítica. Especialmente, não deixaria espaço para a crítica de arte ― pois não teria muito sentido, ao nosso ver, criticar “os Alpes”, ou qualquer outra forma da natureza, a não ser que adotássemos algum ponto de vista de um esteticismo radical, à maneira de um Oscar Wilde, que via no sol poente, “um Turner muito secundário, um Turner do mau período” (Wilde 1992: 53).

Pelo contrário, cada fenômeno tem sua qualidade sui generis ― ainda que “possivelmente alguns podem ser melhores do que outros” (Peirce 2003: 229). A questão da excelência de algo só pode ser resolvida caso se faça referência a algum propósito que esse algo preencha. Numa obra de arte, seu propósito específico é provocar uma experiência estética. Para apreender a diferença entre fenômenos, no caso de uma obra de arte, de maneira evidente, bastaria comparar quaisquer duas pinturas, como no exemplo que iremos utilizar, Saturno de Goya e o de Rubens.

Saturno é o deus romano identificado a Cronos, um dos Titãs, na mitologia grega. De acordo com uma lenda, Cronos teria sido advertido de que um dos seus filhos o destronaria e passou então a engoli-los por ocasião de seu nascimento (Harvey 1987: 145). Saturno é também a encarnação do Tempo, para os romanos, e o Tempo devora todas as coisas, Tempus edax rerum. Na representação que fez Goya perceba-se como o fundo negro colabora para o sentimento de terror da figura, juntamente com a desproporcionalidade dos corpos representados, e como essa impressão é de certo modo deslocada de seu horror habitual, quando observada em detalhe a cabeça com a boca escancarada do gigante grisalho, o qual possui um certo ar típico, ao mesmo tempo trágico e cômico, das caricaturas ―“penetradas de humanidade” (Baudelaire 1995: 10)― de Goya. Comentando sobre Goya escreve Sylvester que a boca desempenha um papel na sua arte mais proeminente do que em qualquer outro grande artista.

Nesse mesmo quadro perceba-se ainda as diferentes qualidades (que são “idéias gerais”) ao percorrermos o corpo do Titã: a qualidade de repugnância das cicatrizes e manchas; o erotismo velado do corpo despedaçado da(o) filha(o) e da nudez do gigante escondida pela escuridão; a qualidade de rigidez dos músculos e veias intumescidas do braço; a força que ele imprime aos punhos e as contorções do ossos sob a carne nas costas; o vermelho vivo do sangue que dele escorre; a qualidade expressiva da boca (onde concentram-se, junto com a expressão dos olhos, as paixões das quais parece tomado o “monstro”), cuja sombra parece engolir tudo, algo que é reforçado pelo fundo negro da pintura.




Francisco Goya Saturno, 1821-1823 e Peter Paul Rubens Saturno devorando seu filho, 1639



Francisco Goya Saturno (detalhe da boca)

Parece ser assim, mas poderia parecer ser de outro modo? Sim, mas apenas em uma certa medida. Imagine o mesmo quadro com um fundo branco, ou azul, ou vermelho, ou... rosa. Imagine ―ou nem precisa imaginar, observe a versão de Rubens para o mesmo mito: na versão de Rubens (que Goya poderia ter visto em Madrid), “Saturno curva sua cabeça sobre o corpo, afunda seus dentes na carne e suga o sangue que jorra de seu filho que esperneia” (Sylverter s/d). Veja-se que nesse último caso o sangue jorra, e não escorre, Saturno afunda seus dentes e não escancara a boca ―, ainda por cima de velho, da qual mal se vêem os dentes, o lado cômico da figura― parecendo querer nos engolir junto com a pintura. (Outra obra de Goya, de um episódio do romance do século XVII El Lazarillo de Tormes, feita cerca de dez anos antes (1808-1812), é a contraparte cômica desse Saturno. Ela mostra um velho cego forçando o nariz dentro da boca do jovem Lazarillo para “cheirar” se ele tinha comido sua sopa.)

O fato de que parece ser assim é indicativo de que estamos falando do modo como experienciamos qualidades que são possíveis de serem experienciadas desses fenômenos, representados na pintura, cujas qualidades podemos abstrair ―prescindir― da existência material do quadro, que constitui o fenômeno que estamos observando. Não precisamos tocar na pintura, para, por assim dizer, sentirmos sob a pele os ossos. Fazemos isso porque uma qualidade disso ser assim foi corporificada na pintura. Não se pode, portanto, confundir, que estamos dizendo que são qualidades subjetivas, pois todas essas qualidades estão realmente lá como propriedades intrínsecas desses fenômenos, independentemente de alguém experienciá-las ou não. E a capacidade que tem uma obra, concluída em 1823, de continuar despertando em nós sentimentos e cognições, é a prova maior de que se trata de uma “realidade” “viva”, e “não é vestígio mudo, ruína, museu...” (Gadamer 1996: 27). Quando falamos do “ar tragicômico”, ou da expressividade do rosto, etc., estamos supondo que são qualidades que já existem na pintura. Elas existem, como possibilidade positiva definida, até mesmo antes de terem sido corporificadas pela mão do pintor.

BAUDELAIRE, Charles et.al. (1995). Os caprichos de Goya. São Paulo: Imaginário.
BOHER, Karl Heinz (2001). O ético no estético. Ética e estética (org. por ROSENFIELD, D.L). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
GADAMER, Hans-Georg (1996). Estetica y hermenéutica. Madrid: Tecnos.
HARVEY, Paul (1987). Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
PARKER, Kelly (1998). The continuity of Peirce’s thought. Vanderbilt University Press: Nasville.
POTTER, Vincent G. (1967). On norms and ideals. Amherst: The University of Massachusetts Press.
SCHILLER, Friedrich (1994). Sobre a educação estética numa série de cartas e outros textos. Lisboa: Imprensa Nacional -Casa da Moeda.
SCHILLER, Friedrich (1995). A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras.
SYLVESTER, David (s/d). About modern art: http://www.artchive.com./core.html.
WILDE, Oscar (1992). A decadência da mentira e outros ensaios. São Paulo: Imago.
PEIRCE, C. S. (1998). The essential Peirce 2. Nathan Houser et al. (eds.). The Peirce edition project. Bloomington, Indiana: Indiana University Press.
PEIRCE, C. S. (2003). Manuscrito 310.1-14. Conferências sobre o pragmatismo – Conferência V. Tradução, apresentação e notas de Lauro José Maia Marques. Cognitio – Revista de Filosofia, São Paulo, Vol. 4, nº 2, 227-231.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Spleen e Ideal




Porventura posso eu ter roçado de leve a curiosidade do hipotético leitor destas mal-ajambradas linhas, quando evoquei um poema de Baudelaire, ao tratar das garrafas PET que um ser bem intencionado e auspicioso, sob a égide de arte conceitual ou “de protesto”, mandou plantar às margens nada plácidas do rio-esgoto Tietê, que bem podia se chamar Anhanguera ou diabo ou Hades ― ou o principal dos seus rios, na mitologia grega: Stix, “a repugnante”, um dos espíritos fluviais (as filhas de Oceanôs).

Faz pouco tempo, foi ontem, o meu sogro, atualmente com 62 anos, praticava remo no Tietê-Stix, um pouco antes as pessoas nadavam. Houve um tempo, dizem, que se pescava. Esse rio estupendo nasce no interior do Estado de São Paulo, quilômetros antes da Capital, miraculosamente, com águas quase puras.

O poema chama-se Spleen. Recitava para mim em voz baixa, dirigindo devagar. Voltava de uma estada no campo, longe nas serras. Chovia, pouco, uma casca fina e gelatinosa, quase sólida, envolvia as janelas do carro e alguns seres humanos dignos de pena se arrastavam às margens da rodovia. A noite se elevava projetando sombras nos edifícios ao longe e nos casebres dos crentes filhos de Deus empilhados em volta, ameaçadora e cinzenta, escorregadia como um muco, escorrendo à medida que eu adentrava, rumo à luz, a cidade-cemitério, armada de cimento e os seus cheiros, tão adoráveis ao olfato de um cão, intraduzíveis.

Transcrevo, na tradução de Ivo Barroso, que é a que está à mão, o poema de Baudelaire:

Quando o céu plúmbeo e baixo pesa como uma tampa
Sobre o espírito exposto aos tédios e aos açoites,
E, ungindo toda a curva do horizonte, estampa
Um dia mais escuro e triste do que as noites;

Quando a terra se torna em calabouço horrendo,
Onde a Esperança, qual morcego espavorido,
Sua asa tímida nos muros vai batendo
E a cabeça roçando o teto apodrecido;

Quando a chuva, a escorrer as tranças fugidias,
Imita as grades de uma lúgubre cadeia,
E a muda multidão das aranhas sombrias
Estende em nosso cérebro uma espessa teia,

Os sinos dobram, de repente, furibundos
E lançam contra o céu um uivo horripilante,
Como os espíritos sem pátria e vagabundos
Que se põem a gemer com voz recalcitrante.

― Sem música ou tambor, desfila lentamente
Em minha alma uma esguia e fúnebre carreta;
Chora a Esperança, e a Angústia, atroz e prepotente,
Finca em meu crânio penso uma bandeira preta.


* * *

As garrafas PET infláveis, feitas de vinil, serão ao cabo de alguns meses de “exposição”, desmontadas e submetidas a um processo de higienização e em seguida transformadas em duas mil mochilas a serem doadas a estudantes. A higienização é necessária, por causa das bactérias, fungos, vírus e sabe-se mais o quê a que ficarão expostas. Não seria melhor doar de uma vez o material, o qual, devido à ausência de uma coleta seletiva do lixo, de uma forma ou de outra voltará ao rio? Ou tratar os 32 mil litros de esgoto despejados ali por segundo (solução custosa para a qual seriam necessários investimentos muito maiores)?

Não, pois essa não é a lógica do espetáculo. Primeiro é preciso submeter ao fogo, para somente após, vencida essa primeira etapa de existência simbólica, ritual, estender a mão num gesto de generosidade que não passa de uma desculpa esfarrapada para aliviar a consciência da culpa e legitimar a inutilidade, a não ser para o próprio espetáculo, e as “boas intenções” do ato.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Perambulamos pela noite, consumidos pelo fogo

A foto tem inegável "beleza plástica"

“Nenhuma sensatez em cima, nenhuma ordem embaixo”. Assim termina o filme-ensaio-manifesto cujo nome cifrado é um palíndromo latim (pode ser lido da esquerda para direita e vice-e-versa) de Guy Debord. No filme, de 1978, Debord narra: “Nada expressa melhor o atual encurralamento e inquietude que esse velho ditado que por si só diz tudo, montando carta por carta como um labirinto inevitável, unindo perfeitamente a forma e o conteúdo da perdição: In girum imus nocte et consumimur igni. Perambulamos pela noite, consumidos pelo fogo”.

Presente nesse filme, como comenta Luiz Zanin Oricchio, em artigo no jornal O Estado de São Paulo, está a “idéia de espetáculo como a forma moderna da alienação, tendo caráter tautológico por sua própria natureza ('O espetáculo não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo')”. Tanto a frase final, quanto o palíndromo e as idéias de Debord servem para pensar a respeito da sequência de 20 esculturas infláveis no formato de grandes garrafas PET (acesas durante a noite) que o artista Eduardo Srur instalou nas duas bordas do Rio Tietê - o Stix paulistano.

Em 21 de maio de 2007 escrevi em um breve texto intitulado “Sobre Estética e cosméticos - anotações para uma possível crítica do boudouir”:

Um artista em São Paulo joga centenas de pérolas (não valiosas) no Rio Tietê, como forma de protestar contra a poluição do rio. O gesto, que poucas pessoas presenciam, gera uma reportagem nos principais jornais, onde somos informados que 32 mil litros de esgoto não tratado são lançados por segundo (!) no rio. Não há uma “obra de arte” específica, um objeto, só um gesto, que é uma tentativa de introduzir elementos esteticamente expressivos numa atitude política. (Assim como seria o terrorismo para Habermas).

Ao mesmo tempo é uma forma de capitalizar a atenção para o autor da iniciativa. Quem sabe ele não será chamado pelo Estado no futuro para fazer uma “intervenção” em uma área pública, ou seu nome não seja cogitado para a próxima Bienal que discutirá, pela ducentésima vez, a relação entre a arte e cidade? A “transgressão” está mais do que institucionalizada. Foi preciso primeiramente o consentimento do poder governante (e o patrocínio deste) para a realização do ato, cujos efeitos na resolução do problema além disso são bastante duvidosos.


Debord sabe, como Heráclito, citado no filme, que “não se pode entrar no mesmo rio duas vezes, nem duas vezes tocar a mesma substância perecível”. Quase um ano depois, inacreditáveis 32 mil litros de porcaria pura continuam sendo despejados por segundo no rio-lama, ou quem sabe, até esse número aumentou. O ex-rio está mais podre e fétido do que nunca. Mas a instalação, “obras lúdicas e provocativas”, “um empreendimento coletivo” - nas palavras do humilde autor da façanha ao jornal - “exigiu meses de pesquisa técnica e participação de diversos profissionais e órgãos públicos”.

“Não, deixe-nos atravessar o rio e descansar debaixo da sombra dessas árvores” (Debord).

Levando a alienação e o aspecto lúdico ao extremo, a TV Cultura, demonstrando mais uma vez o mau gosto estético da emissora, noticiou o evento (“culturalizou” o evento?) colocando o áudio de Trem das Onze (ou foi Sampa?), música-símbolo da capital paulista, sobre as imagens das PET acesas formando um “contraponto às luzes vermelhas dos carros” (palavras do locutor, extasiado diante de tanta beleza) que passavam, também eles engarrafados. Perdidos num labirinto de espelhos, dando voltas pela noite, e sendo consumidos pelo fogo autodesejante do espetáculo televisivo.

Não precisa nem perguntar a quem interessa o show. Certamente não é ao cidadão paulistano, acostumado com a feiúra da cidade, que pode se contemplar no espelho sem luzes do rio imundo e pensar no fracasso da incivilização que ajudou a fomentar. (Entrar na cidade pela avenida depois de uma temporada longe no campo, tem a dimensão de uma tragédia com todas as cores de um poema de Baudelaire sobre o Spleen, é experimentar o apocalipse acontecendo).

Sairia mais barato se tivesse partido do próprio Estado a idéia brilhante, digna de uma Marta Suplicy nos seus melhores dias de “projeto belezura”, mas com certeza seria criticado. Aí entra o “artista” com o seu discurso qualificante perfeitamente adaptado às exigências dos donos do poder e à estrutura do jogo. Se, em lugar das inocentes e pueris PET, fossem imensas fezes iluminadas, o efeito seria outro, a jogada teria alguma audácia, como quando o publicitário da Benetton instalou, a pedido do mandatário local, um desentupidor gigante em Veneza para “afugentar os turistas” - ainda que continuássemos no reino do cinismo. E não da arte, gostaria de acrescentar, se esse nome não estivesse sido já tão maltratado a ponto de perder de vez, se é que possuiu algum dia, o caráter de revolta.

terça-feira, 29 de maio de 2007

Sobre estética e cosméticos: anotações para uma possível crítica do “boudoir”

“Estética e cosméticos são para o boudoir. Busco a verdade. Pura verdade para um homem puro.” James Joyce, em Ulisses.


A partir do livro “A Ideologia da Estética” de Terry Eagleton




Um artista em São Paulo joga centenas de pérolas (não valiosas) no Rio Tietê, como forma de protestar contra a poluição do rio. O gesto, que poucas pessoas presenciam, gera uma reportagem nos principais jornais, na qual somos informados que 32 mil litros de esgoto não tratado são lançados por segundo (!) no rio. Não há uma “obra de arte” específica, um objeto, só um gesto, que é uma tentativa de introduzir elementos esteticamente expressivos numa atitude política. (Assim como seria o terrorismo para Habermas).

Ao mesmo tempo é uma forma de capitalizar a atenção para o autor da iniciativa. Quem sabe ele não será chamado pelo Estado no futuro para fazer uma “intervenção” em uma área pública, ou seu nome não seja cogitado para a próxima Bienal que discutirá, pela ducentésima vez, a relação entre a arte e cidade? A “transgressão” está mais do que institucionalizada. Foi preciso primeiramente o consentimento do poder governante para a realização do ato, cujos efeitos na resolução do problema além disso são bastante duvidosos.

Do Romantismo ao Modernismo, afirma Terry Eagleton, em “A Ideologia da Estética”, a arte busca tornar vantajosa para si a autonomia que ganhou com sua condição de mercadoria - livre das funções sociais tradicionais no interior da Igreja, do tribunal ou do Estado, ganhando a liberdade autônoma da mercadoria. Ela passa a existir para qualquer um que a possa apreciar e que tenha dinheiro para comprá-la. Numa tentativa de escapar a essa nova condição, a vanguarda revolucionária proclama que o problema da arte é a própria arte: “Abaixo com as bibliotecas e os museus”; “não há obras de arte, só gestos, happenings, manifestações, provocações”, declara. Comporta-se assim como “crianças rebeldes tentando chocar seus pouco escandalizáveis progenitores”, segundo Eagleton.

No momento atual, apesar de a produção artística representar um papel cada vez menos significativo na ordem social - após esta ter marginalizado o prazer, reificado a razão e esvaziado inteiramente a moral - adverte Eagleton, a estética propõe colocar novamente as três regiões do estético, ético e cognitivo em contato umas com as outras. Ela fará isso articulando os três discursos, engolindo os outros dois. Tudo agora deve se tornar “estético” - que não se confunde mais com o belo, mas que diz respeito a tudo aquilo que apela à intuição, ao sensível, ao corpo. Até o feio, o repugnante, tem sua legião de admiradores, chegando a ponto de existirem espetáculos em que o artista se automutila diante da platéia, ou as pinturas feitas com o próprio sangue (se for HIV+, “melhor” ainda), animais conservados em formol e expostos cortados ao meio ou ainda a exibição de cadáveres em museus.

A estética se assenhoreia de seus territórios vizinhos, modelando-os a partir de si, com muito pouca atenção por sua especificidade discursiva. No seu caráter autotélico, de fim em si mesmo, guarda ainda uma perturbadora afinidade com a idéia do mal. “O mal não é só uma questão de imoralidade, mas um prazer ativo e sádico com a miséria humana e a destruição; e que, aparentemente entrega-se à destrutividade como um fim em si mesmo”, afirma Eagleton.

Não há portanto porque assumirmos como positiva essa predominância da estética sobre os outros discursos. Assim como, por um outro prisma, não deve haver também nenhuma virtude “automática” numa arte que abrace os temas da experiência comum. No capitalismo de consumo, com a cultura totalmente estetizada, é de se perguntar até onde vai a função crítica de manifestações como essa do artista que protestava contra a poluição do Rio Tietê.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

Baudrillard falando sobre seu novo livro "A Conspiração da arte":

Arte era uma forma, e então tornou-se gradualmente não mais uma forma, mas um valor, um valor estético, e desse modo fomos da arte para a estética - é algo muito, muito diferente. E à medida que a arte se torna estética ela se junta à realidade, ela se junta à banalidade da realidade. Pelo motivo que toda realidade se torna estética, também, é uma confusão total entre arte e realidade, e o resultado dessa confusão é hiperrealidade. Mas, nesse sentido, não mais uma diferença radical entre arte e realismo. E isso é o próprio fim da arte. Como forma.

São temas caros ao autor, "banalidade", "transfiguração", "perda da diferença", "hiperrealidade", "fim da arte".

A arte se torna estética, isto é, ela se torna filosofia. Não estaria aí Baudrillard negando o potencial filosófico da arte? Arte é forma. Mas é também reflexão. Reflexão pela forma. O problema é quando ela deixa de ser forma para ser só reflexão. Quando se torna na maioria das vezes má filosofia.

Por outro lado é impossível separar o valor estético daquilo que é uma obra de arte. Obras de arte são objetos que possuem valor estético. Quando dizemos de uma obra que "ela é boa", boa para ser perseguida, alcançada, imitada, aí está seu valor estético e normativo.

Uma obra se torna menos banal quando adquire maior valor estético. Não o contrário. A realidade é banal. Mas pode vir a se tornar estética. Arte é a transfiguração do banal em algo digno de ser apreciado.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2006

O que eu sou, eu não sei, "disse Baudrillard", com um brilho gaulês no olho. "Sou o simulacrum de mim mesmo."

O público deu uma risadinha.

"E quantos anos você tem?" persistiu o questionador.

"Poucos."

What I am, I don’t know,” Baudrillard said, with a Gallic twinkle in his eye. “I am the simulacrum of myself.”

The audience giggled.

“And how old are you?” the questioner persisted.

“Very young.”



MEN OF LETTERS
BAUDRILLARD ON TOUR

THE nEW yORKER
THE TALK OF THE TOWN
Issue of 2005-11-28
Posted 2005-11-21
— Larissa MacFarquhar