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sexta-feira, 27 de maio de 2016

O avesso e o direito

CAMUS


Esta "Madonna" de Giotto tinha um sorriso maroto


Há muito o que se aprender com livros de estreia de grandes escritores. Não é diferente em relação a O avesso e o direito, de Albert Camus. O livro foi publicado, na Argélia, em 1937, quando o autor d’O estrangeiro tinha apenas 22 anos. Primeira lição: um escritor tem de tomar notas. Não necessariamente escritas. Podem ser também mentais. Ele tem de registrar tudo o que acontece à sua volta. Tudo é matéria do pensamento. Os eventos só são desimportantes para aqueles que também são.

A segunda (ou terceira?) lição é aprender a conviver com os contrários e extrair deles sua soma. O amor de viver nasce do desespero de viver. No que nos aflige está também o prazeroso. É preciso não ter pressa para poder contemplar, na paisagem que se descortina diante de nossos olhos, quase sempre cegos, o avesso e o direito das coisas. Duas faces de uma só medalha.

Uma frase do livro me remeteu para algo que escrevi anteriormente a respeito da qualidade estética no olhar oblíquo dos retratos de grupo de Manet. No penúltimo ensaio, “Amor pela vida”, Camus fala nos “olhos sem olhar dos Apolos dóricos ou nos personagens ardentes e imobilizados de Giotto”. E acrescenta em nota: “É com o surgimento do sorriso e do olhar que começam a decadência da escultura grega e a dispersão da arte italiana. Como se a beleza deixasse de existir onde começava o espírito.”

- Novamente, é preciso não ter pressa. Vemos bem em que a frase atraiçoa o autor. Há, sem dúvida beleza de sobra nos personagens “ardentes” e “imobilizados”, mas nem por isso menos "espiritualizados" de Giotto, que por sinal também podiam sorrir, como na Madonna com um sorriso maroto que ilustra esse post. Por outro lado lembremos que a estatuária grega era repleta de cores, e portanto "ardente", e que só para nós agora ela aparece branca, "espiritualizada", destituída de olhos.

Um exemplo de um torso "carnavalesco".


C'HI

Os chineses têm uma palavra, "C'hi", que significa, entre outras coisas “beleza estática”. O termo só me ocorreu hoje, no momento em que escrevo isto, para descrever, infelizmente ainda de modo muito imperfeito, o que sentia um dia atrás, da sacada desse quarto na montanha, a mais de mil metros de altitude. Enquanto finalizava a leitura de Camus, e observava as dobras do tecido azul, lembrando um manto, da roupa de verão de minha mulher, estendida ao sol do meio-dia, sobre o parapeito de madeira, tendo ao fundo, entrecortado, o verde vibrante das colinas.

Santo Antônio do Pinhal, 4 de janeiro de 2006, atualizado em 16/6/2016

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

Não me convide para o baile



Observando a cronologia dos contos de Raduan Nassar, o último é de 1996: “Mãozinhas de seda”, escrito especialmente para o segundo número dos Cadernos de Literatura Brasileira, IMS, e não publicado a pedido do autor - como informa edição da antologia editada pela Companhia Das Letras no ano seguinte. É portanto, também, sua última composição literária.

Escrito na primeira pessoa, e que termina com uma exclamação entre parêntesis “(Saudades de mim!)”, o tom é autobiográfico. Nele, o escritor evoca a memória de um bisavô aristocrata que teria lhe dado o conselho de que "a diplomacia é a ciência dos sábios", e que o "'negócio é fazer média', e enfatizava a palavra negócio (...): 'Nada de porraloquice. Me promete.’"

Em seguida compara os intelectuais, "eruditos, pretensiosos, e bem providos de mãozinhas de seda", às mocinhas casadoiras de sua Pindorama natal, que, às vésperas dos bailes de Primavera esgotavam o estoque de pedra-pome, com a qual poliam as mãos a fim de torná-las macias e sedosas para melhor seduzir os mancebos.

"A harmonia do perfil é completa por faltar-lhes justamente o que seria marcante: rosto. Em consequência desse aparente paradoxo, tenho notado também que estão entregues a um rendoso comércio de prestígio, um promíscuo troca-troca explícito, a maior suruba da paróquia!".

Com esse texto -como não poderia deixar de ser, breve, que foge ao formato do conto tradicional-, Raduan Nassar dá adeus não só à literatura mas ao "troca-troca" intelectual. Este último, feito por negociantes disfarçados, “mercadores de ideias”, "sem rostos", ao seu ver, o impediria de praticar aquilo o que à abertura afirma ter a convicção de considerar “a maior aventura humana”: "dizer o que se pensa".

A isso, a “fazer média”, “o verbo passado na régua, o tom no diapasão, num mundanismo com linha ou no silêncio da página”, escolhe, diplomaticamente, a saída da reclusão e de não mais escrever. Resta saber se ainda veremos surgir inéditos, escritos longe das festas e do comércio, cercado de boas-maneiras, dos intelectuais, que só serão descobertos depois que o autor não puder mais receber o convite para a valsa do baile que não queria dançar.


terça-feira, 6 de outubro de 2015

Nota sobre Bioy Casares

Em 2014 ele completaria 100 anos, assim como outro argentino, Cortázar (quem se importa com a idade aproximada de Cristina K?). Fala-se muito de Invenção de Morel, seu romance “semiótico” por excelência, mas Diário da Guerra do Porco, narrativa sempre atual de uma guerra movida pelos jovens para exterminar os mais velhos (curiosamente, lembrei disso recentemente assistindo à série italiana Gomorra), é imensamente superior, até, mas não só, pelo grau de perturbação.

Antes mesmo de Cortázar, talvez valha mais aqui a comparação de Bioy com Kaffka. No romance Dormir ao Sol (baseado no qual existe um tentativa de adaptação para o cinema que resulta um pouco involuntariamente cômica) temos a perspectiva de alguém metamorfoseado num cão, incapaz de comunicar-se com o mundo exterior, que só é capaz de enxergá-lo como um animal.

Mas são nos contos - assim como em Kafka - que encontramos o escritor em um estado muito próximo à perfeição. Como na magistral, ainda que breve, coletânea Historia Desaforada publicada pela primeira vez em 1986, quando o autor tinha 72 anos de idade. No conto Planes para una fuga al Carmelo, ele retoma mais uma vez o tema do extermínio dos velhos pelos jovens, numa ficção científica envolvendo o vizinho Uruguai. 

Já em Historia desaforada, que dá nome ao volume, e que dialoga com o primeiro conto, a inspiração veio, segundo explica Bioy no prólogo do livro, de uma frase de Bergson: “A inteligência é a arte de sair de situações difíceis”. “Pensei que nesse momento para mim uma situação difícil era a velhice, e me ocorreu a história de um professor que consegue isolar as glândulas da juventude, para injetá-las em organismos decrépitos”.

Em outro conto que integra a mesma coletânea, La rata o una llave para la conducta, uma ratazana gigante, outro animal do bestiário de Bioy, que nunca aparece, assombra um chalé de certo professor Melville (como o autor de Moby Dick). O professor havia chegado a uma teoria segundo a qual “podemos averiguar a verdadeira índole de nossos sentimentos” (se são bons ou maus), “mediante a confrontação com a ratazana que há na casa”. A ratazana é a própria morte ou “nossa desaparição e também a desaparição de todas as coisas, gente, história: o mundo inteiro”.

***

Bioy Casares também escreveu um diário de 1.700 páginas em que registrou suas conversações com Borges. Num dos trechos iniciais, há uma breve discussão sobre se deve publicar ou não. Reproduzo aqui mais ou menos exatamente o diálogo, um dos muitos de que o livro é recheado. Borges, naquela ocasião, manifesta-se a favor de que o escritor não deve se apressar em publicar, a fim de evitar a vergonha posterior, que tarda mas não falha. Bioy contemporiza que sempre se ganha algo em publicar, fica-se menos “vaidoso”. E não há coisa pior do que o escritor que jamais escreve nada (o que Enrique Vila-Matas chamaria de complexo de Bartleby e Roberto Arlt descreveu no conto O Escritor Fracassado). Pouco antes ele havia registrado no diário um comentário de Silvina Ocampo, sua esposa, de que, na opinião dela, ele escrevia melhor que Borges, a escritura lhe sairia de modo “mais natural”.

***

De las cosas maravillosas, publicado em 1999, foi a última pérola do colar de Bioy Casares, que encontrei por insanos R$ 100,00 em uma livraria de São Paulo. Por felicidade li-o inteiro de uma sentada, de graça, ali mesmo. No meio encontrei esta anedota sobre as últimas palavras de Buster Keaton. Recordando a morte do grande ator e diretor de comédias mudas, Bioy conta que alguém, junto à cama do enfermo, observou que ele havia parado de respirar. Para saber se está morto – retorquiu outro – “você tem que tocar nos seus pés. As pessoas morrem com os pés frios. ‘Ah, Joana d’Arc, não’, disse Buster Keaton. E caiu morto. 

terça-feira, 7 de abril de 2015

Absolutamente Nada


Lendo "Absolutamente nada", seleção de textos de Robert Walser (que o vendedor entendeu Roberto Salsa e depois emendou uma valsa), me esforçando para gostar. O homem era admirado, segundo me informa a contracapa, por ninguém menos que Walter Benjamin, Musil, Kafka e Herman Hesse, que escreveu: "Se Walser tivesse cem mil leitores, o mundo seria um lugar melhor". Alguns contos são de uma singeleza que nossa época brutal não mais permite. De tão evanescente fica-se um gosto de nada. Algumas imagens são decididamente clichês e pelo menos um conto, "O bote", na minha opinião não mereceria estar na seleção do tradutor Sergio Tellaroli. Por outro lado, há uma crônica genial sobre as calças compridas das mulheres, escrita em 1911, na qual o autor parece adivinhar o futuro. E eu me lembrei de Antônio Maria, o genial cronista brasileiro, que teve a desgraça de escrever em português, num país que não existe no mapa. Antonio Maria por sinal faria 94 anos em 17 de março - ninguém lembrou. Outro conto, "A história de Helbling", lembra o escrivão Bartleby de Herman Melville e Fernando Pessoa, do Livro do Desassossego.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

A Vida Breve


I
Há livros que não deveríamos ler. Que querem dissipar suas sombras tristes sobre nós, através de nós, tornando-nos seus personagens. Livros assim escravizam. Talvez Onetti fosse louco, assim como todos os grandes escritores (Joyce, Céline, Becket). E talvez escrever seja uma forma de ir adiante. Levantar-se, preparar o café com ovos mexidos, limpar-se, tomar banho, abotoar o paletó e dirigir-se até o escritório. Enquanto sente-se avolumar ao redor as ondas surdas do caos.
 II
A "Vida breve", de Onetti, é também cruel . Me fez lembrar de Céline. Personagens esquisitos, desesperados, a morte rondando ao lado, inquieta. E de vez em quando, frases como essa, entre parêntesis, que iluminam o texto como um clarão de cemitério: "(Alguém pisa, estrangeiro, as folhas caídas no bosque; damos sepultura, sem pompa, à última rosa desse verão chuvoso.)". Enquanto gotas, reais, de chuva lavam a janela do apartamento onde digito isso e uma mulher grita, na casa da rua embaixo, pela terceira vez com o cachorro (que insiste em latir).
 III
Achado escrito à mão num marcador dentro do livro "A vida breve", de Juan Onetti: "Gosto dos livros porque são solidões portáteis". (A frase, talvez seja necessário acrescentar, é minha).
IV
No fim do romance "A Vida Breve", os personagens, que, diga-se de passagem, são produtos da fantasia criados por outro personagem, Juan María Brausen, estão fugindo da polícia. Fantasiados, "excessivamente escondidos no Carnaval", sem roupas para trocar e sem nenhuma perspectiva, sem dinheiro nem documentos, deixados para trás na fuga, sem ter mais para onde correr, eles sabem que quando acabar esse que é o último dia de folia, eles não vão conseguir passar mais despercebidos. É a hora em que está amanhecendo em Buenos Aires e eles estão sentados numa praça enquanto brindam à má sorte com copos vazios e a um homem muito velho que "alimentava-se de minúsculos mistérios sem importância. Na hora da morte acreditou que se salvaria dizendo estar com sono".

sexta-feira, 4 de março de 2011

Amuleto, Roberto Bolaño

"Metempsicosis. La poesía no desaparecerá. Su no-poder se hará visible de otra manera."
Uma das "profecias" de R. Bolaño, em "Amuleto", novela do autor, escrita em 1999, como um capítulo extraído de "Os Detetives Selvagens" que ganhou vida própria.

(Outra "profecia" é que "César Vallejo será leído em los túneles en el año 2045". Esta última eu já tratei de concretizar, pois já li, muitas vezes, César Vallejo em túneis.)

Faz parte dos delírios da personagem Auxilio Lacouture(*), escondida num banheiro da UNAM, durante uma invasão do Exército, em 1968, na Cidade do México.

Por trás, há o tema da morte - da poesia, dos poetas (seres perseguidos, fantasmagóricos, e às vezes ridículos, que gostariam de se imaginar heróicos), sua lenta e angustiada aparição e desaparição no mundo. E da memória. Da poesia como uma forma que resiste ao tempo: ela reencarnará, os poetas (ou suas obras), alguns, continuarão.

(*) Relendo essa nota, pensei que o sobrenome "La couture", que siginifica "costura", em francês, talvez seja uma chave, pode ser lido como "La culture", cultura.
"Y ese canto es nuestro amuleto"

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Releituras de Guenádi Aigui

Em 2008 publiquei uma leitura minha de um poema de Aigui, na Revista Bula. (Clique para ir para a página da revista). Na época, eu escrevi "poeta russo", mas o correto é "tchuvache" (a Tchuváchia é uma república autonônoma da Ex-URSS). Utilizei uma tradução de George Yurievitch Ribeiro, que eu considero ainda melhor que a que nos dá agora Boris Schnaiderman, para os mesmos versos, publicada na recente e belíssima coletânea de textos da editora Perspectiva “Guenádi Aigui: Silêncio e Clamor”.

Disse melhor, mas na verdade, relendo, agora, deveria ter dito que as duas traduções são complementares. A de GYR era para mim mais familiar, daí o estranhamento. Como não entendo russo, fica difícil julgar. As traduções iniciam de modo diferente, mas depois seguem mais ou menos juntas. Fica merecendo um estudo posterior. A título de comparação, leia-se os versos iniciais, pelos dois tradutores: "no clarão/ da angústia desfeita em pó" (BS); "no invisível crepúsculo/ de saudade pulverizada" (GYR). Na segunda tradução, a presença da palavra invisível (que não deixa de ser sugerida na primeira), marcou minha leitura do poema.

O conhecimento da biografia do autor também serviria para uma leitura do poema em questão, chamado "Silêncio", quando sabemos que o poeta foi levado ao ostracismo na Rússia, por não se adequar às diretrizes do realismo socialista. Veja-se, sobre isso, os versos, que vem imediatamente após os dois primeiros citados no parágrafo anterior, e são um testemunho da coragem e da firmeza de princípios do autor em relação à sua arte:


“conheço o inútil como os pobres conhecem a última roupa

e trastes antigos

e sei que essa inutilidade

é justamente a de que o país necessita de mim” (GYR)


Muito semelhante é essa passagem na nova tradução, de BS:


“conheço o desnecessário como os pobres conhecem a

roupa última

e os velhos trastes

e sei que este desnecessário

é o que o país precisa de mim”

Em um outro poema de Aigui, chamado “O Nosso”, traduzido na coletânea organizada por BS, a poesia, que neste poema é também sono e silêncio do poeta, é colocada ao lado da verdade, em favor da vida, num contraponto à mentira – reservada para o Estado.


sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Hamlet e as ervas daninhas


Que mundo este! Oh! É um jardim inculto em que crescem as ervas bravas!



Ler com a “chave” do soneto 94 (*). Hamlet é uma erva daninha que cresce num maltratado jardim de lírios (a Dinamarca, o casal real, este mundo!), os quais, infectados por um tipo de mal (traição e assassinato do rei), fedem mais do que as ervas, quando apodrecem.



A vil erva vai turvar-lhes (ultrapassar-lhes) a compostura (dignidade).



Não fuga à vida, mas preparação para a morte.

_____________

(*)

Soneto 94

Eles que podem magoar, mas não, / não fazem coisas neles evidentes, / que movem outros e em si mesmos são / de pedra, imóveis, frios, reticentes, / herdam graças do céu, poupam primores / da Natura a desgaste e decadência, / de suas faces donos e senhores. / Outros são servos só dessa excelência. / Embora para si viva e pereça, / a flor do verão ao verão traz a doçura, / mas basta que se infecte e adoeça, / vil erva vai turvar-lhe a compostura. / Se há feitos que os mais doces mais azedem, / os lírios podres mais que as ervas fedem.



“Sonetos Completos de William Shakespeare”. Tradução de Vasco Graça Moura

sábado, 13 de março de 2010

Ainda intradoxos- o Mar

Assim como Pound, o livro de Márcio-André lê-se melhor pelas beiradas. No fragmento. No meio da miríade de sinais, que não deve fazer sentido nem para o poeta, fulguram jóias. O mar sempre presente (o Rio). Seleciono estes:

"[falar do mar é uma imposição do mar]"
...

"preferia ser herói do mar e é preciso pedir ao céu"
...

"o mar do sem música"
...

"Os ghindastes [dorsos de cavalos] bebendo do mar

e a chuva

este alaúde com cordas [também] de vidro
teia-cloro

À deriva"
...

E este que não tem a ver (ou terá?) com mar, que de tão "paulistano" deveria ser gravado nos trens que por aqui transitam, ao lado dos velhíssimos Camões:

"A incerteza dos esgotos
[urbe-uretra]


os sonhos subterrâneos do metrô
onde até os poetas têm cartão de ponto
"

quarta-feira, 10 de março de 2010

Intradoxos-O mar

"Nada existe
excepto o
mar" [Tudo caminha para o mar]


Fragmento de Intradoxos, um livro assombroso, de Márcio-André, um Ezra Pound carioca, da Confraria do Vento.

Como isso é verdadeiro! Como estão aguados de mar os poemas!

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

A vida Breve


No fim do romance A vida Breve de Onetti, os personagens, que diga-se de passagem, são produtos da fantasia criados por outro personagem Juan María Brausen, estão fugindo da polícia. Fantasiados, "excessivamente escondidos no Carnaval", sem roupas para trocar e sem nenhuma perspectiva, sem dinheiro nem documentos, deixados para trás na fuga, sem ter mais para onde correr, eles sabem que quando acabar esse que é o último dia de folia, eles não vão conseguir passar mais despercebidos. É a hora em que está amanhecendo em Buenos Aires e eles estão sentados numa praça enquanto brindam à má sorte com copos vazios e a um homem muito velho que "alimentava-se de minúsculos mistérios sem importância. Na hora da morte acreditou que se salvaria dizendo estar com sono".

domingo, 28 de dezembro de 2008

Notas sem texto (2)

Enrique Vila-Matas tem o que se pode chamar de uma "escrita ágil", que prende o leitor, embora em alguns trechos do seu "Bartleby e companhia", seja um pouco repetitivo. Os melhores momentos são quando ele deixa de simplesmente recontar, a partir de inúmeras citações, e dá voz ao personagem que ele cria: o corcunda QuaseWatt. O nome, com o qual se renomeia o narrador até então sem nome, é uma homenagem a um personagem de Samuel Becket, o qual é confundido respectivamente com um monte de trapos, uma lata de lixo caída e um pacote de jornais velhos.

"Não inventamos nada, acreditamos inventar quando na realidade nos limitamos a balbuciar a lição, os restos de alguns deveres escolares aprendidos, esquecidos, a vida sem lágrimas, tal como a choramos. À merda.", diz o narrador, o qual, desde então passa a fazer parte do quadro descrito por ele (Rimbaud e Kafka estão entre os mais citados), sua obra também entra no universo das obras de arte em suspenso que povoam e assombram essas "notas sem texto", como ele, Quase-Watt / Vila-Matas, as chama, ou, alternativamente, "Notas do não".

sábado, 13 de dezembro de 2008

Na cafeteria


Notas 13/12/2008
Descobri hoje, lendo na nova livraria do shopping no bairro, que pertenço à linhagem dos Bartleby – os escritores do Não. Li o capítulo I do livro inspirado no escrivão de Melville, Bartleby & Cia, de Enrique Vila-Mattas. A preço de um café, li na cafeteria. (É quase tão bom quanto levar sem pagar. Não que eu faça isso. Não mais). O livro custa absurdos R$ 45,00. A editora Cossac & Naif tem sempre os livros mais caros, coffee tables de luxo. No shopping, várias senhoras desesperadas para "estar adquirindo" o best-seller que irão dar de presente no Natal para os parentes e "amigos secretos" que não irão ler. Frase de Juan Rulfo citado por Vila-Mattas, para justificar o porquê de ter escrito quase nada mais depois de Pedro Páramo: "Hoje em dia até os maconheiros publicam livros, tem muito livro estranho por aí". Sorri.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Poema para uma derrota



Acabei de ler (posso já ter lido, então releio) "Poema para uma derrota", de Gustavo de Castro (poeta estreante, editor autor), do livro Ossos da luz, editora Casa das Musas, 2007, o melhor livro do gênero que li este ano. Este é apenas um exemplo dos muitos bem-sucedidos poemas do livro, perpassado pelas sombras iluminadoras de René Char e do argentino Roberto Juarroz, com ecos de Nietzsche, Calvino e Cortázar (e que tem, lógico, altos e baixos e alguns erros de revisão, mas os altos são mais altos), cuja leitura é essencial.

Poema para um derrota



Entulhas pela casa, em todo canto, os restos do passado. Passeias entre caixas, malas, bolsas, vendo o desgoverno do teu estado. Lá fora, no orvalho da noite fria, não podes deixar de cobrir com lona, devido à chuva das monções, a velha cadeira pia que tantas vezes te sentou. Não podes deixar de notar o tanto de sonhos fracassados que és. O mar de espíritos velhos, este sertão cerrado convés vazio ao mar.

Entulhas pela casa alheia, em todo canto, o relógio velho parado, o monte de saco seco nordestinado, o quadro inacabado do pintor falido, o fogão sem forno funcionado. Procuras no meio do entulho a coleção de pedras, verás estranhamente, que elas continuam pedras. Mas já não pedras como antes. Agora são pedras mudadas, acompanhadas do claudicante pó do nada.


Duas imagens me causam impacto e dão idéia da força do poeta: a cadeira pia (porque velha mãe que "lhe sentou" tantas vezes no colo) que não se pode deixar de cobrir com lona, para proteger-lhe, este resto de passado tornado coisa, devido à chuva das monções - e o uso da palavra monção, de origem árabe, para indicar chuva intensa sazonal, tem um sabor especial também para os nordestinados como Gustavo.


A segunda imagem que fica é a da coleção de pedras, transformadas pelo tempo em outra coisa, cobertas por um pó de nada hesitante, metáforas para o próprio poema, que se oferece o tempo todo en abîme.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Resenha Roberto Bolaño

Resenha do professor de Teoria Literária Francisco Foot Hardman, sobre Roberto Bolano, aponta influência de À Sombra do Vulcão, de Malcom Lowry. Trecho:

"Em Os Detetives.. Essa paisagem, de desolação e anúncio de queda iminente, de estilhaçamento das identidades, tem outro grande inspirador: Malcom Lowry, de À sombra do vulcão (1947), não à-toa inserido como epígrafe do romance. "

O resto está aqui: DETETIVE SELVAGEM

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

O TOALETE OU HAMLET


Comecei a comentar o texto de Stanley Fish, traduzido na Revista Bula, “As Humanidades nos salvarão?”, mal tinha terminado de ler. O que segue é um apanhado, com alguns acréscimos, do que comecei a rascunhar na ocasião, na própria seção de comentários da revista.

Concordo que o estudo das Humanidades não salva ninguém. Ponto. Aliás, é muito mais condenar, ao desemprego, por exemplo, do que salvar. No nosso País, então nem se fala. Só que Fish pensa demais como americano, confortavelmente instalado num posto de prestígio de uma universidade de um País tremendamente rico, e não só culturamente. (Ele é professor emérito de Humanidades na Davidson-Kahn Distinguished University e decano do College of Liberal Arts and Sciences da Universidade de Illinois em Chicago.)

Imagine um mundo sem arte. Imagine o Afeganistão dos talibãs ou a América fanática de Bush que nega Darwin (coisa que dificilmente alguém letrado defenderia). Ou o Brasil com seu povo explorado e feliz, se achando um habitante do Paraíso. Eis aí os “efeitos concretos” experienciáveis de um mundo sem acesso às Humanidades.

Nesse texto não acho que ele esteja questionando apenas a utilidade “prática” das interpretações de textos literários, ainda que esse possa ter sido seu alvo inicial, mas coloca em xeque o próprio valor desse estudo. E por extensão das artes. É o velho argumento, com uma roupagem nova, de que é melhor investir na cura de doenças do que em teatro, livros, ou no estudo das artes. (À primeira vista fica difícil de negar que não seja assim). A questão toda gira em torno do financiamento do departamento de Artes e Humanidades. Ao que parece, para Fish, os integrantes desse departamento não têm o direito de reclamar da ausência de financiamento. Afinal não há como justificar tal financiamento, as Humanidades não servem para nada, elas não produzem efeitos “palpáveis”, a não ser proporcionar prazer aos seus apreciadores. Elas não servem a um bem maior, mas são seu próprio bem.

Em um artigo chamado “Verdade e Toaletes: Pragmatismo e as Práticas da Vida”, Fish diz também que “pontos de vista filosóficos são independentes dos pontos de vista de uma pessoa (e logo de suas práticas) em qualquer outro domínio da vida diferente do domínio muito específico e refinado do fazer filosófico”. O mesmo, segundo ele, se dá com o estudo das Artes e Humanidades em geral. Não nos torna mais nobres ou pessoas melhores, mas mais habilitados a responder sobre esses campos específicos, quando solicitados. E Fish ainda afirma, nesse mesmo artigo publicado como uma reflexão sobre a coletânea “O revival do pragmatismo”, de 1999: “A tese de que toaletes são mais essenciais à vida do que a filosofia me parece auto-evidente”. No fundo ele tem razão,o estudo da arte e humanidades não salva a vida de ninguém, mas saneamento básico, e a existência de banheiros, sim.

A minha total discordância é quando ele afirma que as Humanidades, o estudo ou ensino ou a prática disso, “não podem produzir efeitos concretos”, e só podem ter sua existência justificada, “em relação ao prazer que dão àqueles que as apreciam.” Ele está obviamente minimizando o impacto da Cultura na sociedade, e reduzindo tudo a uma questão hedonista. Para ficar num caso bem conhecido, lembremos que Hitler utilizou argumentos estéticos (de raça “pura”) para propor varrer os judeus da Alemanha. Não só para o “bem”, mas para o “mal”, uma esfera influencia a outra. Essa pretensa autonomia dos saberes que ele pretende não existe.

Levada ao extremo a opinião de Fish, nem deveria haver ensino de filosofia ou humanidades em geral em países pobres como o Brasil. Realmente não há como justificar o financiamento dessa área em relação a outras muito mais “rentáveis”. É justamente por propor um distanciamento entre as diferentes áreas do saber, que Fish só consegue justificar a existência da área em que atua recorrendo à noção gasta de prazer.

A milésima interpretação de Hamlet é tão “útil” à sociedade quanto foi a primeira e quanto será a milésima primeira. Não se pode medir a produção acadêmica desse modo. Hamlet continuará sendo lido e estudado enquanto houver pessoas dispostas a lê-lo e ensiná-lo ― e fazem isso porque o julgam merecedor de tal ato, como algo importante em suas vidas.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

O novelo de Antonioni

Monica Vitti_ La Notte

“O fio perigoso das coisas e outras histórias”, livro de anotações de idéias para possíveis filmes, de Michelangelo Antonioni. São 33 “núcleos narrativos”, como ele chama, transformados em peças literárias, editado na Itália no início dos anos 80 e publicado aqui em 1990, pela editora Nova Fronteira.

Leio e vou destecendo nós, que são os nossos, um homem e uma mulher, desencontros.
“Na planície do Pó os homens amavam as mulheres com ironia”, diz em um desses fragmentos, intitulado “Crônica de um Amor que nunca existiu”. O Pó aí é o nome do rio no Norte da Itália... mas o importante mesmo é saber o que significa “amar uma mulher com ironia”, como tantos personagens masculinos nos filmes do cineasta morto aos 95 neste negro ano de 2007. ― Penso em Marcelo Mastroianni em “A Noite”, um filme com uma manhã e uma noite e essa ironia talvez seja na verdade desespero, carregado de angústia, quando amanhece.

“Com ironia” significa não se entregar totalmente, manter-se numa situação de proximidade distante, irônica, o contrário ou quase da alegria, que é entrega, total e permanente, sem reservas, talvez um estado impossível só alcançado de tempos em tempos e do qual se cai constantemente. A ironia seja por isso talvez uma defesa para tais quedas. Não entregar-se é manter-se ereto, com todas as conotações eróticas da frase.

A maioria dos contos ou pedaços de filmes imaginários ou não, alguns realizados anos depois, é sobre encontros e desencontros (tomando emprestado como foi traduzido no Brasil o título recente de um filme de Sofia Coppola, que bebe nessa fonte). “As geleiras da Antártida caminham três milímetros por ano em nossa direção. Calcular quando chegarão. Prever, num filme, o que acontecerá.” Num fragmento intitulado Antártida, Antonioni espera a geleira, que afinal chegou para ele, essa que pode fazer esperar mas não decepciona nunca.

Em “Este corpo de lama” temos primeiro uma breve exposição, resultado de pesquisa sobre a vida das mulheres num convento de clausura, tema para o qual o cineasta foi levado após a leitura de um episódio narrado por uma monja americana em seu diário e que daria segundo ele um belo início de filme. Em seguida tem-se uma narrativa também curta baseada nesse episódio.

Um homem encontra uma mulher andando sozinha à noite, muito grave, e resolve segui-la e então abordá-la. Após uma breve troca de palavras, ela o leva quase sem querer para uma igreja onde os dois se separam, por vontade dela, evitando-o por meio de um gesto e indo sentar-se à distância, completamente absorta numa espécie de transe místico. Ela lhe parece “um impermeável vazio, o corpo jogado fora. Este corpo de lama, diz Santa Teresa”.

Ao fim da missa, ele a perde de vista, mas resolve procurá-la na rua onde a havia visto sair de uma porta de casa para a noite antes. Encontra-a e no meio de hesitações trava uma batalha impossível de ser ganha que corresponde à luta travada entre uma fogueira teimando em arder e os primeiros flocos de neve: “Tem a impressão de nunca ter experimentado um desejo tão intenso de possuir uma mulher. Mas é um desejo diferente, que tem algo de meigo e respeitoso. É ridículo, pensa. E no entanto hesita na voz e não pode fazer nada contra isso, enquanto diz:
― Posso te ver amanhã?

Ela continua sorrindo nos poucos segundos de silêncio que precedem sua resposta. E sua voz não deixa transparecer nenhuma emoção quando fala.

― Amanhã vou entrar num convento de clausura.”

“Que início fantástico de filme!”, exclama Antonioni. Mas é um filme que para nós, ― plagiando-lhe ―, feliz ou infelizmente, acaba aqui.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

DUAS LIÇÕES DE POESIA: UM FILÓSOFO FRANCÊS E UM POETA RUSSO


“O poema não é nem uma descrição, nem uma expressão. Tampouco é uma pintura comovida da extensão do mundo. O poema é uma operação [...]. A regra é simples: envolver-se com o poema, não para saber do que fala, mas para pensar no que nele acontece. [...] O sentido se adquire com o mover do poema, em sua disposição [...]; o que o produz é uma Idéia.”

Alain Badiou escreve essas palavras, no seu “Pequeno manual de inestética”, a respeito de Mallarmé. Mas se trata também de tentar responder afinal o que seria de fato qualquer poema. (E como se deveria lê-lo). Poderia por exemplo ser aplicado integralmente a Guenádi Aigui, poeta de língua russa, nascido em 1934 numa aldeia Tchuvasse (um povo descendente dos hunos, estabelecido à margem do Rio Volga), e falecido recentemente.

Tenho conhecimento de apenas duas traduções para o português de Aigui. A primeira foi feita por Boris Schnaiderman, em colaboração com Haroldo de Campos, incluída numa antologia chamada Poesia russa moderna, da editora Perspectiva. A segunda saiu na revista eletrônica Confraria do Vento nº 4, em tradução, inédita em livro, de George Yurievitch Ribeiro. É deste a versão a seguir, em três partes, a qual darei uma breve interpretação (o que significa simplesmente experienciar, i.e., “entrar” num poema, ser POR ELE pensado):
Silêncio


1
no invisível crepúsculo
de saudade pulverizada
conheço o inútil como os pobres conhecem a última roupa
e trastes antigos
e sei que essa inutilidade
é justamente a de que o país necessita de mim
segura como um acordo sigiloso:
silêncio como vida
e por toda minha vida


A poesia não é pintura. Seria melhor dizer, não é uma representação exata da realidade, uma vez que o pintor nunca pinta as coisas como ele realmente as vê. O poema principia por evocar o invisível, começa por anunciar o silêncio de que trata, ou antes em que ocorre, e que é também um poema: pintura sem cor ou imagem. Inútil e conhecido, como a última roupa do pobre, a qual este se agarra (e que o protege da nudez absoluta), seguro como um acordo sigiloso (mudo), por toda a vida.


2
No entanto, calar – é tributo, e para si – é silêncio.


No segundo movimento, que não é de todo contrário, apenas mais ambíguo do que o primeiro, o poema se apresenta como riqueza, a qual se concede para si próprio (em contraponto ao que se oferece a um país, na primeira estrofe). Há uma pausa e a própria brevidade reforça o caráter necessário desse silêncio, em que “se faz” (se dá, se autoconcede) o poema.


3
acostumar-se a tal silêncio
que é como coração inaudível em ato
como aquilo que é vida
feito certo espaço dela
e no aquilo eu sou – como Poesia é
e eu sei
que meu trabalho é difícil e é por si só
como no cemitério da cidade
é a insônia do zelador.


Finalmente o poema se aproxima do bater inaudível (a não ser no silêncio) do coração, em funcionamento. Algo vital, que ocupa um pequeno espaço, difícil, para o qual é preciso acostumar-se, que tem uma qualidade própria, e permanece vivo e desperto, mesmo quando todas as outras coisas dormem.