Mostrando postagens com marcador Estética. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Estética. Mostrar todas as postagens

domingo, 24 de julho de 2011

Notas de Estética

BIOPOEÍSIS



Poeta bom é poeta morto. Sempre penso nisso quando ouço falar de fulano de tal, o maior poeta vivo. Mesmo correndo o risco, ouso afirmar que, para nós, Fernando Pessoa ainda é o mais importante. Pegue um volume qualquer das obras dele, dificilmente achará pessoas mais vivas na rua. (O trocadilho é completamente intencional). Outro vivíssimo, para mim, é Nietzsche. Dizem que foi mau poeta. Não concordo. Acho que é um poeta lúcido. Talvez lúcido demais. Sua poesia deve ser lida como um complemento de sua filosofia, inexoravelmente atada. Talvez por isso sua Qualidade deva ser apreciada de outro ponto, que não o poético, apenas. Sua poesia deita raízes profundas, mas a poesia, essa flor exótica, tem necessidade ao mesmo tempo de sombra e luz. Ela não pode ser deixada muito tempo no escuro, senão perde o viço, e não pode viver por muito tempo também sob a luz. A poesia tem necessidade de mudança. Como qualquer outra coisa viva.



O PROBLEMA DA ARTE (1)



Dizer “satisfatório” não basta, é preciso dizer satisfatório para qual fim? E aí entramos no problema da arte. Melhor do que dizer que a arte não tem fim, é dizer que o fim da arte é ela própria. Ora, estamos supondo que toda arte é “verdadeira”, ou que toda verdadeira arte é verdadeira. Todo verdadeiro poema é um argumento significativo. Se a vida da ciência é o desejo de aprender, ninguém mais sabedor disso do que o artista. O artista sempre acha que falhou, que ele pode melhorar. “Minha melhor obra é a última”. O artista é o eterno insatisfeito. E permita-me discordar de que a arte não precisa ter coerência ou comprometimentos quaisquer a não ser imaginar, o que quer que seja.



Não surrealista, não! Mesmo o poema mais doido


deve ter, como na prosa, alguma base firme no senso comum.”

– W. H. Auden, Poemas curtos II.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

NOTAS DE ESTÉTICA


Revista Bula,
16 de novembro de 2005
Por Lauro Marques


POÉTICA DA INDETERMINAÇÃO

O livro Poetics of Indeterminancy - Rimbaud to Cage, de 1981, da crítica literária Marjorie Perloff, considerada uma das mais importantes em atuação nos Estados Unidos, teve seus direitos de publicação no Brasil adquiridos pela Azougue Editorial [www.azougue.com.br]. A tradução do livro ficará a cargo do poeta Caio Meira.

Eu assisti a um encontro com a crítica ano passado, na livraria da Vila Madalena, em São Paulo, promovido pela Revista Sibila de poesia. No encontro ela falou, entre outras coisas, que uma das maneiras de definir o porquê de algo "ser arte" seria uma pretensa “dificuldade na compreensão”.

Mesmo sem ter lido ainda o livro, e sem querer entrar no mérito desse último argumento, o qual sem dúvida nenhuma exige maiores explicações, por aí desconfio que a “indeterminação” que ela está propondo, de um poema, como O barco ébrio, ou Vogais, ou o clássico Uma temporada no inferno, todos de Rimbaud, seja apenas em função do alto grau de complexidade alcançado por essas obras, e não por uma impossibilidade absoluta de se lhes atribuir qualquer significado válido que seja (o que, ao meu ver, seria um contra-senso total).

Mas talvez a indeterminação a que se refere a autora venha exatamente da riqueza de interpretações possíveis oferecidas por uma mesma obra de arte.

DUCHAMP

Num pós-escrito de 1981, à segunda edição do livro, originalmente escrito em 58, Aesthetics - Problems in the philosophy of criticism, Monroe Beardsley pondera sobre o que chama de “os notórios quebra-cabeças como os ‘ready-mades’ de Duchamp e os objet trouvés”, os quais ele afirma ver “funcionando como declarações sobre arte, no lugar de obras de arte propriamente”. Duchamp (apud Affonso Romano de Sant’Anna, Desconstruir Duchamp 2003: 92) mesmo autoriza essa interpretação, em carta reveladora ao dadaísta Hans Richter, em 1961: “Joguei o urinol na cara deles como um desafio e agora eles o admiram por sua beleza estética”.

Porém não seríamos tão radicais a ponto de afirmar que não haveria nada de estético nesses objetos, que, afinal, adquiriram um valor em nossa cultura, a ponto de excitar o interesse, e a experiência estética deles, além de servirem de inspiração para quase todo tipo de produto artístico no século XX, de pintura a instalações. No caso da obra de arte poder ser considerada do ponto de vista da representação, como acreditamos que realmente possa ser, é factível pensar nesses “quebra-cabeças”, como os ironiza Beardsley, funcionando de várias maneiras dentro de uma semiose artística: como partes de uma obra em que um artista se refere implícita ou explicitamente a Duchamp (e à proposta/desafio de que “tudo é arte”, e portanto “qualquer coisa pode contar como arte”), ou como estando no lugar de uma teoria sobre arte, etc. De modo que não há na verdade, se formos parar para pensar bem, nenhum quebra-cabeça.

CAOS E ORDEM NA ARTE

Obras de arte parecem emergir do caos para uma certa ordem. Nesse sentido é que elas podem ser ditas “uma cooperativa compilação semioticamente considerada de signos” – de acordo com Joseph Ransdell, no ensaio intitulado The semiotical conception of the artwork, publicado no “Caderno do First Advanced Seminar on Peirce’s Philosophy and Semiotics”, Centro de Estudos Peirceanos, COS-PUCSP, 2002: 21. Um processo em que o produtor e os elementos que compõem a obra cooperam um com o outro, para um resultado “final”.

Uma exceção à regra poderia ser feita para algum tipo de arte que seria em tese melhor considerada como exibindo uma multiplicidade de partes desordenadas, ou mesmo emergindo da unidade para o caos absoluto. Mas isso é impossível ―pois alguma unidade, por mais aleatória que fosse, acabaria por se sobrepor à totalidade de partes desordenadas. Se a resultante disso seria “esteticamente boa” é outro caso.

É curioso constatar algo que ocorre nas bienais de arte, onde, por mais “caótica” que seja a proposta do artista, é sempre possível demarcar em que ponto começa e termina determinada obra. Por exemplo, seja pelo uso do material, ou por uma cor, etc, que acabam formando verdadeiras ilhas dentro dos espaços desse tipo de exposição. Sem falar nas “salas especiais”, onde o conceito de unidade já fica pressuposto. Falar da “caoticidade” da obra, por sinal, já é um traço distintivo de que alguma coisa foi alcançada, e não se trata de um caos absoluto, ou um puro nada, mas de uma escolha deliberada do artista. “A diversidade absoluta de um caos não poderia receber a ocasião de nenhuma ação e, por conseguinte, de nenhum pensamento” (Gaston Bachelard, Ensaio sobre o conhecimento aproximado, 2005). Mesmo no fato de um hapenning “acontecendo”, em várias partes, ao mesmo tempo, é pressuposto haver unidade. O que não abole o acaso.

Talvez por isso que o pintor britânico, nascido em Dublin, Francis Bacon, numa entrevista a Michel Archimbaud, a qual viria a ser a última que concedeu, tenha preferido comparar seu trabalho ao de um químico, no lugar de uma alquimia:

Não, é preferivelmente de química que se deve falar: é o fenômeno natural das substâncias que se misturam para originar outras substâncias. Não há mistério, se por mistério entendermos qualquer coisa que seria de um outro mundo. Tudo se passa aqui, debaixo de nossos olhos. O ateliê do artista, não é aquele do alquimista, que procura a pedra filosofal, alguma coisa que não existe em nosso mundo, ele seria muito mais o laboratório de um químico, o que não nos impede de imaginar que aí aparecem fenômenos inesperados, muito ao contrário”. (Entretiens avec Michel Archimbaud, 1996: 73).

domingo, 11 de julho de 2010

MINIMUM RES (COISA MÍNIMA)

AFORISMO SEM NENHUM PRÉ-JUÍZO (para Valdivino Braz)

Em terra de cego, quem tem um olho só é semi-ótico.



ARTE É INTERPRETAÇÃO

Uma obra de arte é um signo. Como tal já é interpretação, antes mesmo de ser interpretada. Ela representa algo para um intérprete futuro. Esse intérprete futuro é virtual.

Signo de quê? Do objeto que “aparece” por meio da mediação que a obra de arte faz entre o objeto ―que não é individual, mas múltiplo, o universo “criado” pelo artista, algo que é “dado”, ou seja, “aparece” por meio dela― e um intérprete futuro. O primeiro intérprete desse signo assim “criado” sendo o próprio artista.

É interpretação, de algo anterior a ela, desde a origem, seja na forma de pintura, partitura, livro, filme, já é uma interpretação. Como se dá essa interpretação é que vai definir se ela é arte. É olhando para o produto “criado” que podemos emitir algum tipo de julgamento. Claro, há muita subjetividade envolvida nesse julgamento, mas ele não pode ser somente subjetivo.

OBJETIVIDADE DA ARTE

Há uma objetividade na obra de arte que está na origem desta como um signo (algo que não vive numa esfera à parte, mas está sempre “grávido” de mundo, de um objeto). Uma pintura não deixa de ser arte quando se apagam as luzes do museu e não há ninguém mais para admirá-la. Ela “contém” algo.

Assim como uma pintura, uma partitura é um sistema de signos, que vai ser lido, “interpretado” por alguém. Obviamente ninguém “tira” Mozart de qualquer partitura Então há um ponto de partida para a música ―uma “ontologia da arte”― que vai ser executada depois, e isso é fixado por quem escreveu a partitura, uma pessoa, mil, não importa. O que importa é o produto.

ARTE É PROCESSO

A vida dos signos é “comunicar idéias”. Como um signo, uma obra de arte está sempre apta a uma interpretação. Essa interpretação é um signo mais desenvolvido, não no sentido de algo melhor, mas de que foi gerado pelo primeiro. A execução da música é um signo mais desenvolvido de uma partitura. Há arte em ambos, arte é processo. Está sempre em processo. Como tal não é “acabada” nunca.
DIGRESSÃO: NEM TUDO É ARTE, MAS TUDO PODE SER INTERPRETADO

Mesmo a arte conceitual precisa de objetos. Duchamp é o caso paradigmático. Affonso Romano de Sant'anna disse que não havia o que ver na última vez que Duchamp foi exposto em São Paulo. Segundo alguns críticos, os “objetos” de Duchamp não são obras de arte, mas reflexões sobre o fazer artístico.

No entanto, essas reflexões não existem apenas na cabeça de Duchamp. Elas ganharam uma forma, que não é ―nunca é― destituída de conteúdo. Algumas pessoas confundem as coisas e passam admirar somente as formas do urinol, sua “beleza estética”. Um artista que visitou a exposição confessou ao jornal que ficou emocionado porque fez girar com a mão a roda da bicicleta ―uma “cópia” da “original”, que foi jogada no lixo pela irmã de Duchamp, que, obviamente, “não entendia” nada de arte.

Dissemos que arte é interpretação. Mas qualquer coisa pode ser interpretada. Um banco de madeira não é simplesmente um banco de madeira. Ele inclui, no próprio processo de fabricação, a forma humana. Tem uma determinada altura, que é a altura que uma pessoa normal poderia se utilizar para sentar. Em alguns casos, pode ter um encosto para os pés. A forma é determinada pela função.

Do mesmo modo, uma roda de bicicleta. Nenhuma forma é destituída de conteúdo. As rodas da bicicleta têm uma função, são feitas para cumprir essa função, que é fazer com que a bicicleta se mantenha em pé e se movimente.

Duchamp pega esses dois elementos que não coexistem (na verdade são antípodas) e cria, reinterpreta, a partir de um conceito, que já é o surrealismo, um novo objeto, que é um “mix” de ambos: um banco de madeira, feito para sentar, que se move! (Ao fazer isso, ele “recria” a bicicleta, de cabeça para baixo, devolvendo uma característica de estranhamento ao que é considerado “normal”).

O “produto final” é também uma idéia ―mais do que nunca um signo, imaterial. Paradoxalmente, essa idéia precisa, como dissemos, de uma forma para se expressar. Não por acaso, os curadores das exposições ganharam destaque. São eles os responsáveis pela organização dessa forma, o que já fazem os museus. Os museus, as exposições, “reinterpretam” as obras, que já são interpretações. A arte morre ―é a tese de Hegel― para se tornar “filosofia da arte”. A História, no entanto, continua.

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Espaço intraquadro

O espaço interno é imaginário -está "dentro" e fora do campo de visão do espectador.


segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Surpresa na percepção de obras de arte

(fragmento de Teoria Estética)

Quando algo surpreendente ou sugestivo de alguma coisa que não podemos decifrar de imediato se interpõe diante de nós, atinge nossos sentidos na forma de um choque, de intensidade mais ou menos variada.

Algo que ocorre sempre quando estamos diante de uma obra de arte visual, por exemplo, uma pintura, uma vez que não podemos apreendê-la na totalidade absoluta, mas que excita nossa atenção, desafiando-nos a abarcá-la, ao menos em parte, através de nossa consideração sensível.

Sempre há esforço envolvido nisso, por menor que seja. A percepção de uma obra de arte visual não é algo cândido, mas sim que envolve de modo pré-determinado um certo grau de reação ou choque, necessário para haver de fato experiência.

Muitas outras coisas fazem isso. Na verdade, esse é o funcionamento normal da visão que temos de uma imagem qualquer, cuja visão, aliás, sempre se dá através de um percurso complexo.

E para além da ocorrência que experimentamos sempre alguma reação na percepção, e que uma imagem qualquer só pode ser vista à custa de uma exploração não inocente do olho sobre a superfície, uma obra de arte é, além disso, feita com o intuito de ser percebida, contemplada, experienciada, interpretada, de alguma forma.

Há em toda obra de arte legítima uma ânsia de comunicar algo, por mais inefável que seja. E para que um trabalho artístico comunique uma idéia qualquer, de forma a vir a se tornar compreensível, é necessário haver, em alguma medida, elaboração naquilo que é apresentado. Para que possa nos chamar a atenção e captar o interesse, é necessário que haja surpresa na percepção, cuja experiência disso ao final “nos recompense”.

Arnhein chamou isso de “desafio perceptivo”: “onde as pessoas se defrontam com uma situação exterior de tal modo que as suas capacidades de aprender, interpretar, elucidar, aperfeiçoar-se são mobilizadas”. Ele lembrou a “importância do desafio perceptivo” para nossas vidas e da necessidade de vencê-lo.

O que é necessário, segundo Arnheim, falando da obra de arte visual, “é a experiência de que, entre as coisas visíveis, haja algumas que possam, afinal de contas, ser compreendidas”.

A surpresa pode se dar até mesmo a partir do reconhecimento de um sentimento semelhante ao que já foi experienciado em uma ambientação diferente da que lhe era familiar. Isso pode ocorrer porque um sentimento jamais é exatamente igual a outro e novas idéias são sempre geradas, de acordo com novas associações de idéias provocadas por experiências de obras particulares.

Sempre resta algo de novo a descobrir em uma obra. Os seus sentidos e a capacidade de provocar em nós novas hipóteses são praticamente inesgotáveis; apesar de que podemos chegar a algumas crenças sobre alguns de seus efeitos, sendo isso inclusive o que irá nos ajudar na compreensão de outros efeitos possíveis.

Imagens de Manet. Olhares que nunca se cruzam e que observam o vazio extraquadro. “A ameixa”, “O balcão”, “Almoço no ateliê”, “Na praia”, “Na estufa”. Série de fotografias, da década de 90, de Sarah Jones, com “quarto” no título. “The sitting room”, “The dinning room”

Por exemplo, a semelhança com algo que já havíamos experienciado no passado, nos retratos de grupo de Manet, despertou nosso interesse, foi o que nos causou surpresa primeiramente, na fotografia de Sarah Jones.



Edouard Manet Na estufa, 1879 e Sarah Jones A sala de jantar, 1997




Isso fez com que nos demorássemos mais tempo na percepção da série que a fotógrafa britânica fez no final da década de 90, incluídas na coleção da Tate Galley, buscando entender o que estas nos “comunicavam”. Podemos dizer que Manet, os retratos de grupo do pintor em que os personagens são figurados em momentos de absorção mental e alheamento, em meio a cenas familiares, é parte do significado, do que é transmitido ou do que representam essas obras.

O artista geralmente trabalha no sentido de evitar a repetição, pela repetição pura e simples, mas ele pode, no entanto, acrescentar isso também à sua estratégia. A referência a obras do passado, recombinadas de modo interessante, de modo a continuar chamando a nossa atenção e ganharem assim uma outra “vida”, é uma tática bem sucedida na história da arte. O que é uma forma de fazer crescer a “idéia” dessas obras, reinterpretando-as em contextos diferentes.

sábado, 16 de agosto de 2008

Diferenças entre objetos esteticamente bons

(fragmento de Teoria Estética)

No limite, não há nada que não seja esteticamente bom, já “provaram” os surrealistas e Duchamp. Na medida em que um fenômeno é ―seja um banco de madeira, uma roda de bicicleta, um urinol, ou um acontecimento, o qual poderia ser o “evento surrealista” (Boher 2001: 20)―, como um todo unificado, ele “deve ter alguma qualidade permeando sua totalidade” (Potter 1967: 46). Ele possui, nessa avaliação, “excelência estética”, o que foi chamado de “excelência ontológica” pelos escolásticos (Parker 1998: 50). A qualidade pode ser tal que nos nauseie, assuste, ou de qualquer outra maneira nos perturbe a ponto de nos afastar do humor próprio ao prazer estético, da disposição de simplesmente contemplar a materialização dessa qualidade em um objeto. Tal objeto “permanece igualmente esteticamente bom, embora as pessoas em nossas condições sejam incapazes de uma calma contemplação estética dele” (Peirce 1998: 201). O que significa simplesmente dizer que há uma certa autonomia do objeto, em relação à sua recepção, e que as qualidades que ele apresenta não são em si mesmas nem boas nem ruins. Pois, como frisa Peirce (2003): “toda abominação estética é meramente nossa insensibilidade resultando de obscurecimentos devidos às nossas próprias aberrações morais e intelectuais” Esse caráter livre, autônomo, de um objeto estético, é um aspecto inerente à sua conformação, que faz ele ser como ele é. Schiller definiu beleza como “nada mais do que liberdade no fenômeno” (Schiller 1995: 120).

Entretanto, dizer que todo fenômeno possuindo unidade interna é ontologicamente ou esteticamente bom, não significa dizer que não existam diferenças entre os fenômenos (Parker 1998: 50), o que não deixaria nenhum espaço para crítica. Especialmente, não deixaria espaço para a crítica de arte ― pois não teria muito sentido, ao nosso ver, criticar “os Alpes”, ou qualquer outra forma da natureza, a não ser que adotássemos algum ponto de vista de um esteticismo radical, à maneira de um Oscar Wilde, que via no sol poente, “um Turner muito secundário, um Turner do mau período” (Wilde 1992: 53).

Pelo contrário, cada fenômeno tem sua qualidade sui generis ― ainda que “possivelmente alguns podem ser melhores do que outros” (Peirce 2003: 229). A questão da excelência de algo só pode ser resolvida caso se faça referência a algum propósito que esse algo preencha. Numa obra de arte, seu propósito específico é provocar uma experiência estética. Para apreender a diferença entre fenômenos, no caso de uma obra de arte, de maneira evidente, bastaria comparar quaisquer duas pinturas, como no exemplo que iremos utilizar, Saturno de Goya e o de Rubens.

Saturno é o deus romano identificado a Cronos, um dos Titãs, na mitologia grega. De acordo com uma lenda, Cronos teria sido advertido de que um dos seus filhos o destronaria e passou então a engoli-los por ocasião de seu nascimento (Harvey 1987: 145). Saturno é também a encarnação do Tempo, para os romanos, e o Tempo devora todas as coisas, Tempus edax rerum. Na representação que fez Goya perceba-se como o fundo negro colabora para o sentimento de terror da figura, juntamente com a desproporcionalidade dos corpos representados, e como essa impressão é de certo modo deslocada de seu horror habitual, quando observada em detalhe a cabeça com a boca escancarada do gigante grisalho, o qual possui um certo ar típico, ao mesmo tempo trágico e cômico, das caricaturas ―“penetradas de humanidade” (Baudelaire 1995: 10)― de Goya. Comentando sobre Goya escreve Sylvester que a boca desempenha um papel na sua arte mais proeminente do que em qualquer outro grande artista.

Nesse mesmo quadro perceba-se ainda as diferentes qualidades (que são “idéias gerais”) ao percorrermos o corpo do Titã: a qualidade de repugnância das cicatrizes e manchas; o erotismo velado do corpo despedaçado da(o) filha(o) e da nudez do gigante escondida pela escuridão; a qualidade de rigidez dos músculos e veias intumescidas do braço; a força que ele imprime aos punhos e as contorções do ossos sob a carne nas costas; o vermelho vivo do sangue que dele escorre; a qualidade expressiva da boca (onde concentram-se, junto com a expressão dos olhos, as paixões das quais parece tomado o “monstro”), cuja sombra parece engolir tudo, algo que é reforçado pelo fundo negro da pintura.




Francisco Goya Saturno, 1821-1823 e Peter Paul Rubens Saturno devorando seu filho, 1639



Francisco Goya Saturno (detalhe da boca)

Parece ser assim, mas poderia parecer ser de outro modo? Sim, mas apenas em uma certa medida. Imagine o mesmo quadro com um fundo branco, ou azul, ou vermelho, ou... rosa. Imagine ―ou nem precisa imaginar, observe a versão de Rubens para o mesmo mito: na versão de Rubens (que Goya poderia ter visto em Madrid), “Saturno curva sua cabeça sobre o corpo, afunda seus dentes na carne e suga o sangue que jorra de seu filho que esperneia” (Sylverter s/d). Veja-se que nesse último caso o sangue jorra, e não escorre, Saturno afunda seus dentes e não escancara a boca ―, ainda por cima de velho, da qual mal se vêem os dentes, o lado cômico da figura― parecendo querer nos engolir junto com a pintura. (Outra obra de Goya, de um episódio do romance do século XVII El Lazarillo de Tormes, feita cerca de dez anos antes (1808-1812), é a contraparte cômica desse Saturno. Ela mostra um velho cego forçando o nariz dentro da boca do jovem Lazarillo para “cheirar” se ele tinha comido sua sopa.)

O fato de que parece ser assim é indicativo de que estamos falando do modo como experienciamos qualidades que são possíveis de serem experienciadas desses fenômenos, representados na pintura, cujas qualidades podemos abstrair ―prescindir― da existência material do quadro, que constitui o fenômeno que estamos observando. Não precisamos tocar na pintura, para, por assim dizer, sentirmos sob a pele os ossos. Fazemos isso porque uma qualidade disso ser assim foi corporificada na pintura. Não se pode, portanto, confundir, que estamos dizendo que são qualidades subjetivas, pois todas essas qualidades estão realmente lá como propriedades intrínsecas desses fenômenos, independentemente de alguém experienciá-las ou não. E a capacidade que tem uma obra, concluída em 1823, de continuar despertando em nós sentimentos e cognições, é a prova maior de que se trata de uma “realidade” “viva”, e “não é vestígio mudo, ruína, museu...” (Gadamer 1996: 27). Quando falamos do “ar tragicômico”, ou da expressividade do rosto, etc., estamos supondo que são qualidades que já existem na pintura. Elas existem, como possibilidade positiva definida, até mesmo antes de terem sido corporificadas pela mão do pintor.

BAUDELAIRE, Charles et.al. (1995). Os caprichos de Goya. São Paulo: Imaginário.
BOHER, Karl Heinz (2001). O ético no estético. Ética e estética (org. por ROSENFIELD, D.L). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
GADAMER, Hans-Georg (1996). Estetica y hermenéutica. Madrid: Tecnos.
HARVEY, Paul (1987). Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
PARKER, Kelly (1998). The continuity of Peirce’s thought. Vanderbilt University Press: Nasville.
POTTER, Vincent G. (1967). On norms and ideals. Amherst: The University of Massachusetts Press.
SCHILLER, Friedrich (1994). Sobre a educação estética numa série de cartas e outros textos. Lisboa: Imprensa Nacional -Casa da Moeda.
SCHILLER, Friedrich (1995). A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras.
SYLVESTER, David (s/d). About modern art: http://www.artchive.com./core.html.
WILDE, Oscar (1992). A decadência da mentira e outros ensaios. São Paulo: Imago.
PEIRCE, C. S. (1998). The essential Peirce 2. Nathan Houser et al. (eds.). The Peirce edition project. Bloomington, Indiana: Indiana University Press.
PEIRCE, C. S. (2003). Manuscrito 310.1-14. Conferências sobre o pragmatismo – Conferência V. Tradução, apresentação e notas de Lauro José Maia Marques. Cognitio – Revista de Filosofia, São Paulo, Vol. 4, nº 2, 227-231.

sábado, 28 de janeiro de 2006

Notas de ETHICS AND AESTHETICS: REPLIES TO DICKIE, STECKER, AND LIVINGSTON
de Noël Carroll
British Journal of Aesthetics, Vol. 46, No. 1, January 2006

Moralismo moderado (MM) (defendido por Carrol):
em parte a doutrina de que uma mancha (ou uma mácula) ética em uma OA (obra de arte) pode ser também responsável por um defeito estético.

Diferente de:

Eticismo (E): é a primeira doutrina levada mais longe. Uma mancha ética sempre constitui um defeito estético.

Autonomismo moderado (AM): a proposição de que ainda que um defeito moral possa contar como uma mácula artística em uma OA, isto nunca resulta numa mácula estética (em que o valor estético com respeito a OAs é uma subcategoria à parte do valor artístico).

Como Carrol interpreta a perspectiva de Dickie, este rejeita tanto E quanto MM, ao passo que abraçaria alguma forma de AM.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

Baudrillard falando sobre seu novo livro "A Conspiração da arte":

Arte era uma forma, e então tornou-se gradualmente não mais uma forma, mas um valor, um valor estético, e desse modo fomos da arte para a estética - é algo muito, muito diferente. E à medida que a arte se torna estética ela se junta à realidade, ela se junta à banalidade da realidade. Pelo motivo que toda realidade se torna estética, também, é uma confusão total entre arte e realidade, e o resultado dessa confusão é hiperrealidade. Mas, nesse sentido, não mais uma diferença radical entre arte e realismo. E isso é o próprio fim da arte. Como forma.

São temas caros ao autor, "banalidade", "transfiguração", "perda da diferença", "hiperrealidade", "fim da arte".

A arte se torna estética, isto é, ela se torna filosofia. Não estaria aí Baudrillard negando o potencial filosófico da arte? Arte é forma. Mas é também reflexão. Reflexão pela forma. O problema é quando ela deixa de ser forma para ser só reflexão. Quando se torna na maioria das vezes má filosofia.

Por outro lado é impossível separar o valor estético daquilo que é uma obra de arte. Obras de arte são objetos que possuem valor estético. Quando dizemos de uma obra que "ela é boa", boa para ser perseguida, alcançada, imitada, aí está seu valor estético e normativo.

Uma obra se torna menos banal quando adquire maior valor estético. Não o contrário. A realidade é banal. Mas pode vir a se tornar estética. Arte é a transfiguração do banal em algo digno de ser apreciado.