terça-feira, 25 de novembro de 2008
segunda-feira, 24 de novembro de 2008
Surpresa na percepção de obras de arte
Quando algo surpreendente ou sugestivo de alguma coisa que não podemos decifrar de imediato se interpõe diante de nós, atinge nossos sentidos na forma de um choque, de intensidade mais ou menos variada.
Algo que ocorre sempre quando estamos diante de uma obra de arte visual, por exemplo, uma pintura, uma vez que não podemos apreendê-la na totalidade absoluta, mas que excita nossa atenção, desafiando-nos a abarcá-la, ao menos em parte, através de nossa consideração sensível.
Sempre há esforço envolvido nisso, por menor que seja. A percepção de uma obra de arte visual não é algo cândido, mas sim que envolve de modo pré-determinado um certo grau de reação ou choque, necessário para haver de fato experiência.
Muitas outras coisas fazem isso. Na verdade, esse é o funcionamento normal da visão que temos de uma imagem qualquer, cuja visão, aliás, sempre se dá através de um percurso complexo.
E para além da ocorrência que experimentamos sempre alguma reação na percepção, e que uma imagem qualquer só pode ser vista à custa de uma exploração não inocente do olho sobre a superfície, uma obra de arte é, além disso, feita com o intuito de ser percebida, contemplada, experienciada, interpretada, de alguma forma.
Há em toda obra de arte legítima uma ânsia de comunicar algo, por mais inefável que seja. E para que um trabalho artístico comunique uma idéia qualquer, de forma a vir a se tornar compreensível, é necessário haver, em alguma medida, elaboração naquilo que é apresentado. Para que possa nos chamar a atenção e captar o interesse, é necessário que haja surpresa na percepção, cuja experiência disso ao final “nos recompense”.
Arnhein chamou isso de “desafio perceptivo”: “onde as pessoas se defrontam com uma situação exterior de tal modo que as suas capacidades de aprender, interpretar, elucidar, aperfeiçoar-se são mobilizadas”. Ele lembrou a “importância do desafio perceptivo” para nossas vidas e da necessidade de vencê-lo.
O que é necessário, segundo Arnheim, falando da obra de arte visual, “é a experiência de que, entre as coisas visíveis, haja algumas que possam, afinal de contas, ser compreendidas”.
A surpresa pode se dar até mesmo a partir do reconhecimento de um sentimento semelhante ao que já foi experienciado em uma ambientação diferente da que lhe era familiar. Isso pode ocorrer porque um sentimento jamais é exatamente igual a outro e novas idéias são sempre geradas, de acordo com novas associações de idéias provocadas por experiências de obras particulares.
Sempre resta algo de novo a descobrir em uma obra. Os seus sentidos e a capacidade de provocar em nós novas hipóteses são praticamente inesgotáveis; apesar de que podemos chegar a algumas crenças sobre alguns de seus efeitos, sendo isso inclusive o que irá nos ajudar na compreensão de outros efeitos possíveis.
Imagens de Manet. Olhares que nunca se cruzam e que observam o vazio extraquadro. “A ameixa”, “O balcão”, “Almoço no ateliê”, “Na praia”, “Na estufa”. Série de fotografias, da década de 90, de Sarah Jones, com “quarto” no título. “The sitting room”, “The dinning room”
Por exemplo, a semelhança com algo que já havíamos experienciado no passado, nos retratos de grupo de Manet, despertou nosso interesse, foi o que nos causou surpresa primeiramente, na fotografia de Sarah Jones.
Edouard Manet Na estufa, 1879 e Sarah Jones A sala de jantar, 1997
Isso fez com que nos demorássemos mais tempo na percepção da série que a fotógrafa britânica fez no final da década de 90, incluídas na coleção da Tate Galley, buscando entender o que estas nos “comunicavam”. Podemos dizer que Manet, os retratos de grupo do pintor em que os personagens são figurados em momentos de absorção mental e alheamento, em meio a cenas familiares, é parte do significado, do que é transmitido ou do que representam essas obras.
O artista geralmente trabalha no sentido de evitar a repetição, pela repetição pura e simples, mas ele pode, no entanto, acrescentar isso também à sua estratégia. A referência a obras do passado, recombinadas de modo interessante, de modo a continuar chamando a nossa atenção e ganharem assim uma outra “vida”, é uma tática bem sucedida na história da arte. O que é uma forma de fazer crescer a “idéia” dessas obras, reinterpretando-as em contextos diferentes.
sábado, 16 de agosto de 2008
Diferenças entre objetos esteticamente bons
No limite, não há nada que não seja esteticamente bom, já “provaram” os surrealistas e Duchamp. Na medida em que um fenômeno é ―seja um banco de madeira, uma roda de bicicleta, um urinol, ou um acontecimento, o qual poderia ser o “evento surrealista” (Boher 2001: 20)―, como um todo unificado, ele “deve ter alguma qualidade permeando sua totalidade” (Potter 1967: 46). Ele possui, nessa avaliação, “excelência estética”, o que foi chamado de “excelência ontológica” pelos escolásticos (Parker 1998: 50). A qualidade pode ser tal que nos nauseie, assuste, ou de qualquer outra maneira nos perturbe a ponto de nos afastar do humor próprio ao prazer estético, da disposição de simplesmente contemplar a materialização dessa qualidade em um objeto. Tal objeto “permanece igualmente esteticamente bom, embora as pessoas em nossas condições sejam incapazes de uma calma contemplação estética dele” (Peirce 1998: 201). O que significa simplesmente dizer que há uma certa autonomia do objeto, em relação à sua recepção, e que as qualidades que ele apresenta não são em si mesmas nem boas nem ruins. Pois, como frisa Peirce (2003): “toda abominação estética é meramente nossa insensibilidade resultando de obscurecimentos devidos às nossas próprias aberrações morais e intelectuais” Esse caráter livre, autônomo, de um objeto estético, é um aspecto inerente à sua conformação, que faz ele ser como ele é. Schiller definiu beleza como “nada mais do que liberdade no fenômeno” (Schiller 1995: 120).
Entretanto, dizer que todo fenômeno possuindo unidade interna é ontologicamente ou esteticamente bom, não significa dizer que não existam diferenças entre os fenômenos (Parker 1998: 50), o que não deixaria nenhum espaço para crítica. Especialmente, não deixaria espaço para a crítica de arte ― pois não teria muito sentido, ao nosso ver, criticar “os Alpes”, ou qualquer outra forma da natureza, a não ser que adotássemos algum ponto de vista de um esteticismo radical, à maneira de um Oscar Wilde, que via no sol poente, “um Turner muito secundário, um Turner do mau período” (Wilde 1992: 53).
Pelo contrário, cada fenômeno tem sua qualidade sui generis ― ainda que “possivelmente alguns podem ser melhores do que outros” (Peirce 2003: 229). A questão da excelência de algo só pode ser resolvida caso se faça referência a algum propósito que esse algo preencha. Numa obra de arte, seu propósito específico é provocar uma experiência estética. Para apreender a diferença entre fenômenos, no caso de uma obra de arte, de maneira evidente, bastaria comparar quaisquer duas pinturas, como no exemplo que iremos utilizar, Saturno de Goya e o de Rubens.
Saturno é o deus romano identificado a Cronos, um dos Titãs, na mitologia grega. De acordo com uma lenda, Cronos teria sido advertido de que um dos seus filhos o destronaria e passou então a engoli-los por ocasião de seu nascimento (Harvey 1987: 145). Saturno é também a encarnação do Tempo, para os romanos, e o Tempo devora todas as coisas, Tempus edax rerum. Na representação que fez Goya perceba-se como o fundo negro colabora para o sentimento de terror da figura, juntamente com a desproporcionalidade dos corpos representados, e como essa impressão é de certo modo deslocada de seu horror habitual, quando observada em detalhe a cabeça com a boca escancarada do gigante grisalho, o qual possui um certo ar típico, ao mesmo tempo trágico e cômico, das caricaturas ―“penetradas de humanidade” (Baudelaire 1995: 10)― de Goya. Comentando sobre Goya escreve Sylvester que a boca desempenha um papel na sua arte mais proeminente do que em qualquer outro grande artista.
Nesse mesmo quadro perceba-se ainda as diferentes qualidades (que são “idéias gerais”) ao percorrermos o corpo do Titã: a qualidade de repugnância das cicatrizes e manchas; o erotismo velado do corpo despedaçado da(o) filha(o) e da nudez do gigante escondida pela escuridão; a qualidade de rigidez dos músculos e veias intumescidas do braço; a força que ele imprime aos punhos e as contorções do ossos sob a carne nas costas; o vermelho vivo do sangue que dele escorre; a qualidade expressiva da boca (onde concentram-se, junto com a expressão dos olhos, as paixões das quais parece tomado o “monstro”), cuja sombra parece engolir tudo, algo que é reforçado pelo fundo negro da pintura.
Francisco Goya Saturno, 1821-1823 e Peter Paul Rubens Saturno devorando seu filho, 1639
Francisco Goya Saturno (detalhe da boca)
Parece ser assim, mas poderia parecer ser de outro modo? Sim, mas apenas em uma certa medida. Imagine o mesmo quadro com um fundo branco, ou azul, ou vermelho, ou... rosa. Imagine ―ou nem precisa imaginar, observe a versão de Rubens para o mesmo mito: na versão de Rubens (que Goya poderia ter visto em Madrid), “Saturno curva sua cabeça sobre o corpo, afunda seus dentes na carne e suga o sangue que jorra de seu filho que esperneia” (Sylverter s/d). Veja-se que nesse último caso o sangue jorra, e não escorre, Saturno afunda seus dentes e não escancara a boca ―, ainda por cima de velho, da qual mal se vêem os dentes, o lado cômico da figura― parecendo querer nos engolir junto com a pintura. (Outra obra de Goya, de um episódio do romance do século XVII El Lazarillo de Tormes, feita cerca de dez anos antes (1808-1812), é a contraparte cômica desse Saturno. Ela mostra um velho cego forçando o nariz dentro da boca do jovem Lazarillo para “cheirar” se ele tinha comido sua sopa.)
O fato de que parece ser assim é indicativo de que estamos falando do modo como experienciamos qualidades que são possíveis de serem experienciadas desses fenômenos, representados na pintura, cujas qualidades podemos abstrair ―prescindir― da existência material do quadro, que constitui o fenômeno que estamos observando. Não precisamos tocar na pintura, para, por assim dizer, sentirmos sob a pele os ossos. Fazemos isso porque uma qualidade disso ser assim foi corporificada na pintura. Não se pode, portanto, confundir, que estamos dizendo que são qualidades subjetivas, pois todas essas qualidades estão realmente lá como propriedades intrínsecas desses fenômenos, independentemente de alguém experienciá-las ou não. E a capacidade que tem uma obra, concluída em 1823, de continuar despertando em nós sentimentos e cognições, é a prova maior de que se trata de uma “realidade” “viva”, e “não é vestígio mudo, ruína, museu...” (Gadamer 1996: 27). Quando falamos do “ar tragicômico”, ou da expressividade do rosto, etc., estamos supondo que são qualidades que já existem na pintura. Elas existem, como possibilidade positiva definida, até mesmo antes de terem sido corporificadas pela mão do pintor.
BAUDELAIRE, Charles et.al. (1995). Os caprichos de Goya. São Paulo: Imaginário.
BOHER, Karl Heinz (2001). O ético no estético. Ética e estética (org. por ROSENFIELD, D.L). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
GADAMER, Hans-Georg (1996). Estetica y hermenéutica. Madrid: Tecnos.
HARVEY, Paul (1987). Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
PARKER, Kelly (1998). The continuity of Peirce’s thought. Vanderbilt University Press: Nasville.
POTTER, Vincent G. (1967). On norms and ideals. Amherst: The University of Massachusetts Press.
SCHILLER, Friedrich (1994). Sobre a educação estética numa série de cartas e outros textos. Lisboa: Imprensa Nacional -Casa da Moeda.
SCHILLER, Friedrich (1995). A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras.
SYLVESTER, David (s/d). About modern art: http://www.artchive.com./core.html.
WILDE, Oscar (1992). A decadência da mentira e outros ensaios. São Paulo: Imago.
PEIRCE, C. S. (1998). The essential Peirce 2. Nathan Houser et al. (eds.). The Peirce edition project. Bloomington, Indiana: Indiana University Press.
PEIRCE, C. S. (2003). Manuscrito 310.1-14. Conferências sobre o pragmatismo – Conferência V. Tradução, apresentação e notas de Lauro José Maia Marques. Cognitio – Revista de Filosofia, São Paulo, Vol. 4, nº 2, 227-231.
terça-feira, 21 de agosto de 2007
“Old Boys”, velhos problemas
“Se apontasse uma arma para um caixa do WalMart, levaria chumbo de dez fregueses ao mesmo tempo”, defende ele. Esquece, entre várias inconsistências, que antes de tudo a lei vale para todos, inclusive para os alunos esquisitões e não apenas para “professores e funcionários”, os tais “patos sentados” como ele chama no texto. A alternativa seria transformar a sala de aula numa trincheira de guerra com professores treinados pelo FBI e prontos a reagir ao primeiro sinal de “ameaça” à segurança.
Por falar em argumentos absurdos, também estapafúrdias e apressadas foram as comparações suscitadas por um post em um dos blogs do jornal “The New York Times” na Internet, sugerindo semelhanças entre cenas do filme “Old Boy” e as poses do garoto sul-coreano, que matou 32 pessoas da Universidade Técnica de Virgínia. Nas imagens ele aparece segurando faca, martelo e armas de fogo - entre elas uma pistola Glock de 9 mm comprada 36 dias antes numa loja em que o rapaz de 23 anos só precisou mostrar seu green card de imigrante legal, além de passar no “exame” do vendedor. Este relatou: “Ele era um garoto universitário simpático e bem vestido. Não vendemos uma arma se temos qualquer indicação de que a compra é suspeita”. Um pacote com 27 vídeos, além de fotografias e textos escritos, foi enviado pelo estudante no intervalo entre um crime outro à rede de televisão NBC.
Por que não comparar também essas imagens com Jack Nicholson segurando um machado em “O iluminado”? Ou Robert De Niro apontando uma arma para a cabeça em “Taxi Driver”? “Vocês tiveram 100 bilhões de chances de evitar este dia, mas decidiram derramar o meu sangue. Vocês me encurralaram e só me deixaram uma opção. A decisão foi de vocês. Agora vocês têm sangue em suas mãos e nunca vão conseguir limpá-las”, diz o assassino em um dos vídeos enviados, cujo texto poderia ter sido extraído de Stalone Cobra - “Vocês são a doença, eu sou a cura” - ou Dirty Harry - “Make my day”.
Em um outro vídeo, o garoto professa uma confusa versão do cristianismo redentor e se compara a Jesus Cristo: “Vocês vandalizaram meu coração, rasgaram minha alma e queimaram minha consciência. Vocês achavam que era um garoto patético que vocês estavam extinguindo. Graças a vocês, eu morri. Como Jesus Cristo, para inspirar gerações de pessoas fracas e indefesas.” Aqui o discurso poderia ter sido inspirado em um trecho da Bíblia - “Ah! filha de Babilônia, que vais ser assolada; feliz aquele que te retribuir consoante nos fizeste a nós. Feliz aquele que pegar teus pequeninos e esmagá-los contra a pedra” (Salmo 137) e “Suas crianças também deverão ser feitas em pedaços diante de seus olhos; suas casas serão destruídas, e suas esposas violadas” (Isaías 13:16) - ou até mesmo no messianismo água-com-açucar de “Matrix”.
O que dizer então de milhares de outras imagens e mensagens de violência de zilhões de filmes e programas de televisão, sem esquecer, é claro, de livros e HQs e letras de músicas, sem falar nos video-games? “Old Boy”, o filme do diretor sul-coreano Chan-wook Park, é apenas mais uma obra nessa lista. Sem dúvida perturbador e memorável em vários aspectos, o filme vale a pena pelas qualidades cinematográficas e visuais que lhe renderam o Grande Prêmio do Júri de Cannes. Baseado em um mangá japonês, conta a história de um homem que passa 15 anos preso em um quarto sem saber o motivo. Quando o deixam escapar, tem início uma série ultraviolenta de atos contra aqueles identificados como culpados. Alguns críticos, chegaram mesmo a identificar no roteiro uma “crítica aos valores da sociedade oriental”.
O que influenciou realmente a cabeça do garoto dificilmente saberemos. É sabido que recentemente havia mostrado sinais de perturbação, incluindo colocar fogo num quarto do dormitório e de ter sido denunciado à polícia por duas colegas que o acusaram de perseguição. Segundo disseram outros estudantes que o conheceram, ele era ridicularizado durante o ensino médio por causa do excesso de timidez e “jeito esquisito de falar”. O personagem da tragédia absurda que decidiu protagonizar para o mundo ver (vê-lo) foi sem dúvida influenciado pela cultura da violência a que ninguém pode mais fingir que está imune. Mas ninguém faz o que ele fez apenas para aparecer ou por pura vontade de imitar, a não ser que tenha um distúrbio mental muito sério. Junte a isso a facilidade de se obter e usar armas e você terá todos os ingredientes explosivos juntos.
Olavo de Carvalho acha que com professores armados em sala de aula, o problema todo estaria resolvido. No Brasil, da bala perdida e do Estado distante, país líder mundial em jovens entre 15 a 24 anos mortos por arma de fogo, ficaria ainda mais difícil de apontar quem seriam os verdadeiros culpados e onde estaria a solução.
sexta-feira, 29 de setembro de 2006
O canto de cisne da serpente
ECCE HOMO
Uma obra peculiar dentro da biografia de Nietzsche
http://www.jornalopcao.com.br/index.asp?secao=OpçãoCultural&subsecao=Suplementos&idjornal=204
Depois fiquei em dúvida com a expressão "dentro da biografia", no título. O mais correto seria "na biografia". Bom, fico feliz que haja repercussão.