Mostrando postagens com marcador Crítica. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Crítica. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 27 de maio de 2016

O avesso e o direito

CAMUS


Esta "Madonna" de Giotto tinha um sorriso maroto


Há muito o que se aprender com livros de estreia de grandes escritores. Não é diferente em relação a O avesso e o direito, de Albert Camus. O livro foi publicado, na Argélia, em 1937, quando o autor d’O estrangeiro tinha apenas 22 anos. Primeira lição: um escritor tem de tomar notas. Não necessariamente escritas. Podem ser também mentais. Ele tem de registrar tudo o que acontece à sua volta. Tudo é matéria do pensamento. Os eventos só são desimportantes para aqueles que também são.

A segunda (ou terceira?) lição é aprender a conviver com os contrários e extrair deles sua soma. O amor de viver nasce do desespero de viver. No que nos aflige está também o prazeroso. É preciso não ter pressa para poder contemplar, na paisagem que se descortina diante de nossos olhos, quase sempre cegos, o avesso e o direito das coisas. Duas faces de uma só medalha.

Uma frase do livro me remeteu para algo que escrevi anteriormente a respeito da qualidade estética no olhar oblíquo dos retratos de grupo de Manet. No penúltimo ensaio, “Amor pela vida”, Camus fala nos “olhos sem olhar dos Apolos dóricos ou nos personagens ardentes e imobilizados de Giotto”. E acrescenta em nota: “É com o surgimento do sorriso e do olhar que começam a decadência da escultura grega e a dispersão da arte italiana. Como se a beleza deixasse de existir onde começava o espírito.”

- Novamente, é preciso não ter pressa. Vemos bem em que a frase atraiçoa o autor. Há, sem dúvida beleza de sobra nos personagens “ardentes” e “imobilizados”, mas nem por isso menos "espiritualizados" de Giotto, que por sinal também podiam sorrir, como na Madonna com um sorriso maroto que ilustra esse post. Por outro lado lembremos que a estatuária grega era repleta de cores, e portanto "ardente", e que só para nós agora ela aparece branca, "espiritualizada", destituída de olhos.

Um exemplo de um torso "carnavalesco".


C'HI

Os chineses têm uma palavra, "C'hi", que significa, entre outras coisas “beleza estática”. O termo só me ocorreu hoje, no momento em que escrevo isto, para descrever, infelizmente ainda de modo muito imperfeito, o que sentia um dia atrás, da sacada desse quarto na montanha, a mais de mil metros de altitude. Enquanto finalizava a leitura de Camus, e observava as dobras do tecido azul, lembrando um manto, da roupa de verão de minha mulher, estendida ao sol do meio-dia, sobre o parapeito de madeira, tendo ao fundo, entrecortado, o verde vibrante das colinas.

Santo Antônio do Pinhal, 4 de janeiro de 2006, atualizado em 16/6/2016

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Um poema de Gelman e uma tentativa de tradução crítica

O poeta e o tradutor na arena da poesia

El tajo

La poesía no hace
que algo suceda, dijo W. H. Auden.
Apenas sobrevive, dijo.
No dijo por qué. Sobrevive como
sobrevive la imposibilidad.
Es decir, nuestro amor,
o el bisonte que hace cruces en la arena
olvidado de sus dientes de leche.
Es bello eso. Significa
que el frío de conocerse
puede tener otro destino.
Lo que nadie dijo
está bajo las máscaras
que la verdad necesita.
Mis ganas de dar besos y palabras
son un cuarto muy grande donde
se sienta absurdamente el corazón.
Es decir, sobrevive.
En el tajo de sus corrientes extrañas.

Juan Gelman


Uma tentativa de tradução:

O talho

A poesia não faz
com que algo suceda, disse W. H. Auden.
Apenas sobrevive, disse.
Não disse por quê. Sobrevive como
sobrevive a impossibilidade.
Quer dizer, nosso amor,
ou o bisonte que recruza a arena
esquecido de seus dentes de leite.
É belo isso. Significa
que o frio de conhecer-se
pode ter outro destino.
O que ninguém disse
está sob as máscaras
que a verdade necessita.
Minhas ganas de dar beijos e palavras
são um quarto muito grande onde
assenta-se absurdamente o coração.
Quer dizer, sobrevive.
No talho de suas correntes estranhas.

Lauro Marques

O poema é riquíssimo em analogias semiocultas ou caladas (que ninguém disse).
 
"Talho" aqui é sulco (como o rastro de um rio de "correntes estranhas") e ferida, rasgo (a imagem evocada pelo bisonte/touro).

O bisonte "faz cruzes", cruza, ou perambula pela areia (arena) esquecido de seus "dentes de leite" (de sua juventude/fragilidade), que tanto pode ser uma demonstração de coragem - não podemos resistir aqui a sublinhar a sugestão implícita de 'hace cruces"/"hace muertes" -, como de desorientação, embotamento ou desconhecimento de si.

O coração se senta e assenta-se num quarto muito grande onde se sente o coração.

Assenta-se absurdamente (a imagem é de inadequação, desconforto ou desproporção). Ou, dito de outra forma: o coração é pequeno demais para conter os desejos do poeta, que apesar disso, sobrevive, como a poesia e o touro na arena e a impossibilidade do amor.  

domingo, 11 de julho de 2010

MINIMUM RES (COISA MÍNIMA)

AFORISMO SEM NENHUM PRÉ-JUÍZO (para Valdivino Braz)

Em terra de cego, quem tem um olho só é semi-ótico.



ARTE É INTERPRETAÇÃO

Uma obra de arte é um signo. Como tal já é interpretação, antes mesmo de ser interpretada. Ela representa algo para um intérprete futuro. Esse intérprete futuro é virtual.

Signo de quê? Do objeto que “aparece” por meio da mediação que a obra de arte faz entre o objeto ―que não é individual, mas múltiplo, o universo “criado” pelo artista, algo que é “dado”, ou seja, “aparece” por meio dela― e um intérprete futuro. O primeiro intérprete desse signo assim “criado” sendo o próprio artista.

É interpretação, de algo anterior a ela, desde a origem, seja na forma de pintura, partitura, livro, filme, já é uma interpretação. Como se dá essa interpretação é que vai definir se ela é arte. É olhando para o produto “criado” que podemos emitir algum tipo de julgamento. Claro, há muita subjetividade envolvida nesse julgamento, mas ele não pode ser somente subjetivo.

OBJETIVIDADE DA ARTE

Há uma objetividade na obra de arte que está na origem desta como um signo (algo que não vive numa esfera à parte, mas está sempre “grávido” de mundo, de um objeto). Uma pintura não deixa de ser arte quando se apagam as luzes do museu e não há ninguém mais para admirá-la. Ela “contém” algo.

Assim como uma pintura, uma partitura é um sistema de signos, que vai ser lido, “interpretado” por alguém. Obviamente ninguém “tira” Mozart de qualquer partitura Então há um ponto de partida para a música ―uma “ontologia da arte”― que vai ser executada depois, e isso é fixado por quem escreveu a partitura, uma pessoa, mil, não importa. O que importa é o produto.

ARTE É PROCESSO

A vida dos signos é “comunicar idéias”. Como um signo, uma obra de arte está sempre apta a uma interpretação. Essa interpretação é um signo mais desenvolvido, não no sentido de algo melhor, mas de que foi gerado pelo primeiro. A execução da música é um signo mais desenvolvido de uma partitura. Há arte em ambos, arte é processo. Está sempre em processo. Como tal não é “acabada” nunca.
DIGRESSÃO: NEM TUDO É ARTE, MAS TUDO PODE SER INTERPRETADO

Mesmo a arte conceitual precisa de objetos. Duchamp é o caso paradigmático. Affonso Romano de Sant'anna disse que não havia o que ver na última vez que Duchamp foi exposto em São Paulo. Segundo alguns críticos, os “objetos” de Duchamp não são obras de arte, mas reflexões sobre o fazer artístico.

No entanto, essas reflexões não existem apenas na cabeça de Duchamp. Elas ganharam uma forma, que não é ―nunca é― destituída de conteúdo. Algumas pessoas confundem as coisas e passam admirar somente as formas do urinol, sua “beleza estética”. Um artista que visitou a exposição confessou ao jornal que ficou emocionado porque fez girar com a mão a roda da bicicleta ―uma “cópia” da “original”, que foi jogada no lixo pela irmã de Duchamp, que, obviamente, “não entendia” nada de arte.

Dissemos que arte é interpretação. Mas qualquer coisa pode ser interpretada. Um banco de madeira não é simplesmente um banco de madeira. Ele inclui, no próprio processo de fabricação, a forma humana. Tem uma determinada altura, que é a altura que uma pessoa normal poderia se utilizar para sentar. Em alguns casos, pode ter um encosto para os pés. A forma é determinada pela função.

Do mesmo modo, uma roda de bicicleta. Nenhuma forma é destituída de conteúdo. As rodas da bicicleta têm uma função, são feitas para cumprir essa função, que é fazer com que a bicicleta se mantenha em pé e se movimente.

Duchamp pega esses dois elementos que não coexistem (na verdade são antípodas) e cria, reinterpreta, a partir de um conceito, que já é o surrealismo, um novo objeto, que é um “mix” de ambos: um banco de madeira, feito para sentar, que se move! (Ao fazer isso, ele “recria” a bicicleta, de cabeça para baixo, devolvendo uma característica de estranhamento ao que é considerado “normal”).

O “produto final” é também uma idéia ―mais do que nunca um signo, imaterial. Paradoxalmente, essa idéia precisa, como dissemos, de uma forma para se expressar. Não por acaso, os curadores das exposições ganharam destaque. São eles os responsáveis pela organização dessa forma, o que já fazem os museus. Os museus, as exposições, “reinterpretam” as obras, que já são interpretações. A arte morre ―é a tese de Hegel― para se tornar “filosofia da arte”. A História, no entanto, continua.

domingo, 18 de abril de 2010

Revista celuzlose

Quarto número da revista digital, com boa navegação (dá para ler na tela com facilidade), tem textos inéditos de vários poetas contemporâneos brasileiros e alguns estrangeiros, poesia visual, contos, além  de um caderno crítico.

Contém ainda um excerto do segundo volume (a sair) elaborado em torno da pergunta "O que é poesia?" feita a vários autores.  Publicado na revista como um adendo à apresentação do primeiro volume, é importante ler o depoimento de Márcio-André. Segundo vaticina Márcio, mais do que nunca o que todos -fazedores de poemas ou não- desejam ser é o seu próprio poeta, "como fuga ao desencanto que se abate
em todas as instâncias da realidade institucionalizante".

Isso acaba levando a um beco sem saída, em que todos escrevem e poucos leem poesia. Porém será que de fato todos fazem poesia? Será que devemos chamar qualquer coisa de poesia? Ou será mera fuga à realidade institucionalizante? O que é poesia?

Revista Celuzlose

É preciso separar o joio do trigo. Poesia é profissão? Outra pergunta que surge na entrevista de Carlos Felipe Moisés, também na revista. Muitos fazem poesia, mas quantos podem ser chamados poetas?

E no entanto, quanto prazer quando descobrimos um poeta de verdade! Foi o que aconteceu comigo, quando "descobri", tardiamente, Juan Gelman e achei que deveria ler imediatamente toda sua obra publicada.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Spleen e Ideal




Porventura posso eu ter roçado de leve a curiosidade do hipotético leitor destas mal-ajambradas linhas, quando evoquei um poema de Baudelaire, ao tratar das garrafas PET que um ser bem intencionado e auspicioso, sob a égide de arte conceitual ou “de protesto”, mandou plantar às margens nada plácidas do rio-esgoto Tietê, que bem podia se chamar Anhanguera ou diabo ou Hades ― ou o principal dos seus rios, na mitologia grega: Stix, “a repugnante”, um dos espíritos fluviais (as filhas de Oceanôs).

Faz pouco tempo, foi ontem, o meu sogro, atualmente com 62 anos, praticava remo no Tietê-Stix, um pouco antes as pessoas nadavam. Houve um tempo, dizem, que se pescava. Esse rio estupendo nasce no interior do Estado de São Paulo, quilômetros antes da Capital, miraculosamente, com águas quase puras.

O poema chama-se Spleen. Recitava para mim em voz baixa, dirigindo devagar. Voltava de uma estada no campo, longe nas serras. Chovia, pouco, uma casca fina e gelatinosa, quase sólida, envolvia as janelas do carro e alguns seres humanos dignos de pena se arrastavam às margens da rodovia. A noite se elevava projetando sombras nos edifícios ao longe e nos casebres dos crentes filhos de Deus empilhados em volta, ameaçadora e cinzenta, escorregadia como um muco, escorrendo à medida que eu adentrava, rumo à luz, a cidade-cemitério, armada de cimento e os seus cheiros, tão adoráveis ao olfato de um cão, intraduzíveis.

Transcrevo, na tradução de Ivo Barroso, que é a que está à mão, o poema de Baudelaire:

Quando o céu plúmbeo e baixo pesa como uma tampa
Sobre o espírito exposto aos tédios e aos açoites,
E, ungindo toda a curva do horizonte, estampa
Um dia mais escuro e triste do que as noites;

Quando a terra se torna em calabouço horrendo,
Onde a Esperança, qual morcego espavorido,
Sua asa tímida nos muros vai batendo
E a cabeça roçando o teto apodrecido;

Quando a chuva, a escorrer as tranças fugidias,
Imita as grades de uma lúgubre cadeia,
E a muda multidão das aranhas sombrias
Estende em nosso cérebro uma espessa teia,

Os sinos dobram, de repente, furibundos
E lançam contra o céu um uivo horripilante,
Como os espíritos sem pátria e vagabundos
Que se põem a gemer com voz recalcitrante.

― Sem música ou tambor, desfila lentamente
Em minha alma uma esguia e fúnebre carreta;
Chora a Esperança, e a Angústia, atroz e prepotente,
Finca em meu crânio penso uma bandeira preta.


* * *

As garrafas PET infláveis, feitas de vinil, serão ao cabo de alguns meses de “exposição”, desmontadas e submetidas a um processo de higienização e em seguida transformadas em duas mil mochilas a serem doadas a estudantes. A higienização é necessária, por causa das bactérias, fungos, vírus e sabe-se mais o quê a que ficarão expostas. Não seria melhor doar de uma vez o material, o qual, devido à ausência de uma coleta seletiva do lixo, de uma forma ou de outra voltará ao rio? Ou tratar os 32 mil litros de esgoto despejados ali por segundo (solução custosa para a qual seriam necessários investimentos muito maiores)?

Não, pois essa não é a lógica do espetáculo. Primeiro é preciso submeter ao fogo, para somente após, vencida essa primeira etapa de existência simbólica, ritual, estender a mão num gesto de generosidade que não passa de uma desculpa esfarrapada para aliviar a consciência da culpa e legitimar a inutilidade, a não ser para o próprio espetáculo, e as “boas intenções” do ato.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Perambulamos pela noite, consumidos pelo fogo

A foto tem inegável "beleza plástica"

“Nenhuma sensatez em cima, nenhuma ordem embaixo”. Assim termina o filme-ensaio-manifesto cujo nome cifrado é um palíndromo latim (pode ser lido da esquerda para direita e vice-e-versa) de Guy Debord. No filme, de 1978, Debord narra: “Nada expressa melhor o atual encurralamento e inquietude que esse velho ditado que por si só diz tudo, montando carta por carta como um labirinto inevitável, unindo perfeitamente a forma e o conteúdo da perdição: In girum imus nocte et consumimur igni. Perambulamos pela noite, consumidos pelo fogo”.

Presente nesse filme, como comenta Luiz Zanin Oricchio, em artigo no jornal O Estado de São Paulo, está a “idéia de espetáculo como a forma moderna da alienação, tendo caráter tautológico por sua própria natureza ('O espetáculo não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo')”. Tanto a frase final, quanto o palíndromo e as idéias de Debord servem para pensar a respeito da sequência de 20 esculturas infláveis no formato de grandes garrafas PET (acesas durante a noite) que o artista Eduardo Srur instalou nas duas bordas do Rio Tietê - o Stix paulistano.

Em 21 de maio de 2007 escrevi em um breve texto intitulado “Sobre Estética e cosméticos - anotações para uma possível crítica do boudouir”:

Um artista em São Paulo joga centenas de pérolas (não valiosas) no Rio Tietê, como forma de protestar contra a poluição do rio. O gesto, que poucas pessoas presenciam, gera uma reportagem nos principais jornais, onde somos informados que 32 mil litros de esgoto não tratado são lançados por segundo (!) no rio. Não há uma “obra de arte” específica, um objeto, só um gesto, que é uma tentativa de introduzir elementos esteticamente expressivos numa atitude política. (Assim como seria o terrorismo para Habermas).

Ao mesmo tempo é uma forma de capitalizar a atenção para o autor da iniciativa. Quem sabe ele não será chamado pelo Estado no futuro para fazer uma “intervenção” em uma área pública, ou seu nome não seja cogitado para a próxima Bienal que discutirá, pela ducentésima vez, a relação entre a arte e cidade? A “transgressão” está mais do que institucionalizada. Foi preciso primeiramente o consentimento do poder governante (e o patrocínio deste) para a realização do ato, cujos efeitos na resolução do problema além disso são bastante duvidosos.


Debord sabe, como Heráclito, citado no filme, que “não se pode entrar no mesmo rio duas vezes, nem duas vezes tocar a mesma substância perecível”. Quase um ano depois, inacreditáveis 32 mil litros de porcaria pura continuam sendo despejados por segundo no rio-lama, ou quem sabe, até esse número aumentou. O ex-rio está mais podre e fétido do que nunca. Mas a instalação, “obras lúdicas e provocativas”, “um empreendimento coletivo” - nas palavras do humilde autor da façanha ao jornal - “exigiu meses de pesquisa técnica e participação de diversos profissionais e órgãos públicos”.

“Não, deixe-nos atravessar o rio e descansar debaixo da sombra dessas árvores” (Debord).

Levando a alienação e o aspecto lúdico ao extremo, a TV Cultura, demonstrando mais uma vez o mau gosto estético da emissora, noticiou o evento (“culturalizou” o evento?) colocando o áudio de Trem das Onze (ou foi Sampa?), música-símbolo da capital paulista, sobre as imagens das PET acesas formando um “contraponto às luzes vermelhas dos carros” (palavras do locutor, extasiado diante de tanta beleza) que passavam, também eles engarrafados. Perdidos num labirinto de espelhos, dando voltas pela noite, e sendo consumidos pelo fogo autodesejante do espetáculo televisivo.

Não precisa nem perguntar a quem interessa o show. Certamente não é ao cidadão paulistano, acostumado com a feiúra da cidade, que pode se contemplar no espelho sem luzes do rio imundo e pensar no fracasso da incivilização que ajudou a fomentar. (Entrar na cidade pela avenida depois de uma temporada longe no campo, tem a dimensão de uma tragédia com todas as cores de um poema de Baudelaire sobre o Spleen, é experimentar o apocalipse acontecendo).

Sairia mais barato se tivesse partido do próprio Estado a idéia brilhante, digna de uma Marta Suplicy nos seus melhores dias de “projeto belezura”, mas com certeza seria criticado. Aí entra o “artista” com o seu discurso qualificante perfeitamente adaptado às exigências dos donos do poder e à estrutura do jogo. Se, em lugar das inocentes e pueris PET, fossem imensas fezes iluminadas, o efeito seria outro, a jogada teria alguma audácia, como quando o publicitário da Benetton instalou, a pedido do mandatário local, um desentupidor gigante em Veneza para “afugentar os turistas” - ainda que continuássemos no reino do cinismo. E não da arte, gostaria de acrescentar, se esse nome não estivesse sido já tão maltratado a ponto de perder de vez, se é que possuiu algum dia, o caráter de revolta.

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

O TOALETE OU HAMLET


Comecei a comentar o texto de Stanley Fish, traduzido na Revista Bula, “As Humanidades nos salvarão?”, mal tinha terminado de ler. O que segue é um apanhado, com alguns acréscimos, do que comecei a rascunhar na ocasião, na própria seção de comentários da revista.

Concordo que o estudo das Humanidades não salva ninguém. Ponto. Aliás, é muito mais condenar, ao desemprego, por exemplo, do que salvar. No nosso País, então nem se fala. Só que Fish pensa demais como americano, confortavelmente instalado num posto de prestígio de uma universidade de um País tremendamente rico, e não só culturamente. (Ele é professor emérito de Humanidades na Davidson-Kahn Distinguished University e decano do College of Liberal Arts and Sciences da Universidade de Illinois em Chicago.)

Imagine um mundo sem arte. Imagine o Afeganistão dos talibãs ou a América fanática de Bush que nega Darwin (coisa que dificilmente alguém letrado defenderia). Ou o Brasil com seu povo explorado e feliz, se achando um habitante do Paraíso. Eis aí os “efeitos concretos” experienciáveis de um mundo sem acesso às Humanidades.

Nesse texto não acho que ele esteja questionando apenas a utilidade “prática” das interpretações de textos literários, ainda que esse possa ter sido seu alvo inicial, mas coloca em xeque o próprio valor desse estudo. E por extensão das artes. É o velho argumento, com uma roupagem nova, de que é melhor investir na cura de doenças do que em teatro, livros, ou no estudo das artes. (À primeira vista fica difícil de negar que não seja assim). A questão toda gira em torno do financiamento do departamento de Artes e Humanidades. Ao que parece, para Fish, os integrantes desse departamento não têm o direito de reclamar da ausência de financiamento. Afinal não há como justificar tal financiamento, as Humanidades não servem para nada, elas não produzem efeitos “palpáveis”, a não ser proporcionar prazer aos seus apreciadores. Elas não servem a um bem maior, mas são seu próprio bem.

Em um artigo chamado “Verdade e Toaletes: Pragmatismo e as Práticas da Vida”, Fish diz também que “pontos de vista filosóficos são independentes dos pontos de vista de uma pessoa (e logo de suas práticas) em qualquer outro domínio da vida diferente do domínio muito específico e refinado do fazer filosófico”. O mesmo, segundo ele, se dá com o estudo das Artes e Humanidades em geral. Não nos torna mais nobres ou pessoas melhores, mas mais habilitados a responder sobre esses campos específicos, quando solicitados. E Fish ainda afirma, nesse mesmo artigo publicado como uma reflexão sobre a coletânea “O revival do pragmatismo”, de 1999: “A tese de que toaletes são mais essenciais à vida do que a filosofia me parece auto-evidente”. No fundo ele tem razão,o estudo da arte e humanidades não salva a vida de ninguém, mas saneamento básico, e a existência de banheiros, sim.

A minha total discordância é quando ele afirma que as Humanidades, o estudo ou ensino ou a prática disso, “não podem produzir efeitos concretos”, e só podem ter sua existência justificada, “em relação ao prazer que dão àqueles que as apreciam.” Ele está obviamente minimizando o impacto da Cultura na sociedade, e reduzindo tudo a uma questão hedonista. Para ficar num caso bem conhecido, lembremos que Hitler utilizou argumentos estéticos (de raça “pura”) para propor varrer os judeus da Alemanha. Não só para o “bem”, mas para o “mal”, uma esfera influencia a outra. Essa pretensa autonomia dos saberes que ele pretende não existe.

Levada ao extremo a opinião de Fish, nem deveria haver ensino de filosofia ou humanidades em geral em países pobres como o Brasil. Realmente não há como justificar o financiamento dessa área em relação a outras muito mais “rentáveis”. É justamente por propor um distanciamento entre as diferentes áreas do saber, que Fish só consegue justificar a existência da área em que atua recorrendo à noção gasta de prazer.

A milésima interpretação de Hamlet é tão “útil” à sociedade quanto foi a primeira e quanto será a milésima primeira. Não se pode medir a produção acadêmica desse modo. Hamlet continuará sendo lido e estudado enquanto houver pessoas dispostas a lê-lo e ensiná-lo ― e fazem isso porque o julgam merecedor de tal ato, como algo importante em suas vidas.

terça-feira, 29 de maio de 2007

Sobre estética e cosméticos: anotações para uma possível crítica do “boudoir”

“Estética e cosméticos são para o boudoir. Busco a verdade. Pura verdade para um homem puro.” James Joyce, em Ulisses.


A partir do livro “A Ideologia da Estética” de Terry Eagleton




Um artista em São Paulo joga centenas de pérolas (não valiosas) no Rio Tietê, como forma de protestar contra a poluição do rio. O gesto, que poucas pessoas presenciam, gera uma reportagem nos principais jornais, na qual somos informados que 32 mil litros de esgoto não tratado são lançados por segundo (!) no rio. Não há uma “obra de arte” específica, um objeto, só um gesto, que é uma tentativa de introduzir elementos esteticamente expressivos numa atitude política. (Assim como seria o terrorismo para Habermas).

Ao mesmo tempo é uma forma de capitalizar a atenção para o autor da iniciativa. Quem sabe ele não será chamado pelo Estado no futuro para fazer uma “intervenção” em uma área pública, ou seu nome não seja cogitado para a próxima Bienal que discutirá, pela ducentésima vez, a relação entre a arte e cidade? A “transgressão” está mais do que institucionalizada. Foi preciso primeiramente o consentimento do poder governante para a realização do ato, cujos efeitos na resolução do problema além disso são bastante duvidosos.

Do Romantismo ao Modernismo, afirma Terry Eagleton, em “A Ideologia da Estética”, a arte busca tornar vantajosa para si a autonomia que ganhou com sua condição de mercadoria - livre das funções sociais tradicionais no interior da Igreja, do tribunal ou do Estado, ganhando a liberdade autônoma da mercadoria. Ela passa a existir para qualquer um que a possa apreciar e que tenha dinheiro para comprá-la. Numa tentativa de escapar a essa nova condição, a vanguarda revolucionária proclama que o problema da arte é a própria arte: “Abaixo com as bibliotecas e os museus”; “não há obras de arte, só gestos, happenings, manifestações, provocações”, declara. Comporta-se assim como “crianças rebeldes tentando chocar seus pouco escandalizáveis progenitores”, segundo Eagleton.

No momento atual, apesar de a produção artística representar um papel cada vez menos significativo na ordem social - após esta ter marginalizado o prazer, reificado a razão e esvaziado inteiramente a moral - adverte Eagleton, a estética propõe colocar novamente as três regiões do estético, ético e cognitivo em contato umas com as outras. Ela fará isso articulando os três discursos, engolindo os outros dois. Tudo agora deve se tornar “estético” - que não se confunde mais com o belo, mas que diz respeito a tudo aquilo que apela à intuição, ao sensível, ao corpo. Até o feio, o repugnante, tem sua legião de admiradores, chegando a ponto de existirem espetáculos em que o artista se automutila diante da platéia, ou as pinturas feitas com o próprio sangue (se for HIV+, “melhor” ainda), animais conservados em formol e expostos cortados ao meio ou ainda a exibição de cadáveres em museus.

A estética se assenhoreia de seus territórios vizinhos, modelando-os a partir de si, com muito pouca atenção por sua especificidade discursiva. No seu caráter autotélico, de fim em si mesmo, guarda ainda uma perturbadora afinidade com a idéia do mal. “O mal não é só uma questão de imoralidade, mas um prazer ativo e sádico com a miséria humana e a destruição; e que, aparentemente entrega-se à destrutividade como um fim em si mesmo”, afirma Eagleton.

Não há portanto porque assumirmos como positiva essa predominância da estética sobre os outros discursos. Assim como, por um outro prisma, não deve haver também nenhuma virtude “automática” numa arte que abrace os temas da experiência comum. No capitalismo de consumo, com a cultura totalmente estetizada, é de se perguntar até onde vai a função crítica de manifestações como essa do artista que protestava contra a poluição do Rio Tietê.

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Cuspidelas para o alto: pseudo-escrito



“Talvez eu nem sequer seja escritor”, escreve, “mas apenas alguém que rabisca de vez em quando garranchos ininteligíveis em seu caderno”.

Pegou um trecho qualquer e leu: “Quando o vento veio irritar, enrugando, a superfície da água...”. O texto não tinha início nem fim.

Mais adiante, achou essas anotações encabeçadas por um título curioso, e, é claro, não plenamente desenvolvido e também deixado incompleto: “Da culinária dos nômades: lições de sobrevivência”. Cito um trecho:

“Comida do nordestino. Foi feita para viajar. Um pedaço de rapadura e a carne salgada e seca ao sol duram meses. Nisso temos em comum com os povos nômades (...) O sertão não é deserto. Talvez nem mesmo o deserto seja tão deserto assim para quem vive nele. Logo saberá descobrir-lhe os oásis.”

“Há desertos nas cidades grandes que são mais desertos que...”.

Parou neste ponto, perigosamente perto de um lugar-comum.

Depois, essas anotações sobre a Beleza:

“A beleza não existe. Ponto. O artista deve ser obrigado a inventá-la. Uma das formas de inventar a beleza é mostrando seu extremo oposto. O feio. O feio existe. Logo, a beleza pode ser imaginada...”

Pensou ter encontrado uma “palavra-valise”, mas, enganou-se. A valise não continha nada.



Etílicos e suicidas

“Melhor/ morrer de vodca/ que de tédio!”, escreve Maiakovski num poema dedicado a Sierguei Iessiênin, que se suicidou num quarto de hotel, em Leningrado, em 28 de dezembro de 1925, aos 30 anos. Cortou os pulsos e escreveu com o próprio sangue estas duas estrofes na parede (tradução de Augusto de Campos):

Até logo, até logo, companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.

Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer, nesta vida, não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo.

No mesmo poema, já citado, em que responde lindamente a essas linhas, Maiakovski quase que admoesta o amigo: “Nesta vida / morrer não é difícil./ O difícil /é a vida e seu ofício.” (Tradução de Haroldo de Campos). Ele que, no entanto, cinco anos depois, em 1930, quando tinha 37 anos, também se suicidou, com um tiro no peito, imitando a si mesmo num dos seus poemas famosos.

Em “A flauta vértebra!” (1915), ele afirma: “Seria melhor talvez / pôr o ponto final de um balaço” (Trad. De Haroldo de Campos).

Quem morreu mesmo de vodca, dizem, foi Paulo Leminsky. E é Carlos Heitor Cony, num prefácio às “Novelas Nada Exemplares”, do também curitibano Dalton Trevisan, quem diz: “Um moço em Curitiba só tem um remédio: afogar-se. Como não há mar, um tonel de rum serve”.

Ultimas notícias

Extra! Extra! Deu entrada no Hospital da Poesia, recentemente, mais um poeta, vítima do trocadilhismo - doença medieval que reaparece de tempos em tempos entre nós. A vítima foi internada, suspeita-se, devido à ingestão conjunta de uma “Mc-rima” com um “Rilke-Shake”.

sábado, 28 de janeiro de 2006

Notas de ETHICS AND AESTHETICS: REPLIES TO DICKIE, STECKER, AND LIVINGSTON
de Noël Carroll
British Journal of Aesthetics, Vol. 46, No. 1, January 2006

Moralismo moderado (MM) (defendido por Carrol):
em parte a doutrina de que uma mancha (ou uma mácula) ética em uma OA (obra de arte) pode ser também responsável por um defeito estético.

Diferente de:

Eticismo (E): é a primeira doutrina levada mais longe. Uma mancha ética sempre constitui um defeito estético.

Autonomismo moderado (AM): a proposição de que ainda que um defeito moral possa contar como uma mácula artística em uma OA, isto nunca resulta numa mácula estética (em que o valor estético com respeito a OAs é uma subcategoria à parte do valor artístico).

Como Carrol interpreta a perspectiva de Dickie, este rejeita tanto E quanto MM, ao passo que abraçaria alguma forma de AM.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2006

Estética Darwinista (editado 19/1/06: negrito)

Artigo de Denis Dutton clique - editor do website Arts and Letters Daily, verdadeiro tesouro para quem busca informação de qualidade na internet (e não tem problema para ler em inglês). O melhor é que ele é também professor de filosofia da arte na Universidade de Canterbury na Nova Zelândia.

Para o professor, que está escrevendo um livro sobre "Estética Darwinista", frequentar obras de arte não é uma atividade tão "inútil" quanto se pensa. Aqueles que dentre nossos ancestrais aprenderam a derivar prazer da "prática" ficcional (dos conflitos e perigos) para a vida real obtiveram na verdade um salto evolutivo: eles estavam mais preparados para lidar com o mundo real quando se depararam com ele.

Apesar de eu querer concordar com a tese, pergunto se a uma estética darwinista não seria necessário acrescentar uma ética que lhe acompanhe. Aquela parte da ação, da escolha, no mundo real. Há sempre a possibilidade de optarmos pela tragédia. Nesse sentido, não se pode dizer que "aprendemos" a lidar melhor com os conflitos com a tragédia grega, ou Shakespeare, se ao que parece estamos condenados a repeti-los em nossas vidas (quando ferimos alguém que nos ama e que amamos, por exemplo). Por outro lado, eles nos fornecem exemplos sobre os quais podemos refletir longa e profundamente.Tornamo-nos melhor? Não sei dizer. Mas com certeza tornamo-nos outros.

Talvez o ponto seja esse mesmo: a "outridade" a que somos submetidos por meio da arte nos transforma, de um modo, em todos os sentidos (as palavras aqui fazem eco umas com as outras) perceptível. Aristóteles, não por acaso o filósofo grego que primeiro pensou a catarse na arte, escreve o postulado de que a alma é potencialmente as coisas que percebe e sente. Se você não percebe e sente, é sua alma que se apequena.

A complexidade introduzida por uma audição, ou leitura, ou contemplação de uma obra artística visual, tem efeitos naquele que experimenta - sobre o modo de pensar, individual e coletivo, sentir, maneiras de agir no mundo. Independentemente de bem e de mal. Este é outro problema, que a filosofia da arte não cansa de discutir e que a arte não cessa de propor.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2006

Baudrillard falando sobre seu novo livro "A Conspiração da arte":

Arte era uma forma, e então tornou-se gradualmente não mais uma forma, mas um valor, um valor estético, e desse modo fomos da arte para a estética - é algo muito, muito diferente. E à medida que a arte se torna estética ela se junta à realidade, ela se junta à banalidade da realidade. Pelo motivo que toda realidade se torna estética, também, é uma confusão total entre arte e realidade, e o resultado dessa confusão é hiperrealidade. Mas, nesse sentido, não mais uma diferença radical entre arte e realismo. E isso é o próprio fim da arte. Como forma.

São temas caros ao autor, "banalidade", "transfiguração", "perda da diferença", "hiperrealidade", "fim da arte".

A arte se torna estética, isto é, ela se torna filosofia. Não estaria aí Baudrillard negando o potencial filosófico da arte? Arte é forma. Mas é também reflexão. Reflexão pela forma. O problema é quando ela deixa de ser forma para ser só reflexão. Quando se torna na maioria das vezes má filosofia.

Por outro lado é impossível separar o valor estético daquilo que é uma obra de arte. Obras de arte são objetos que possuem valor estético. Quando dizemos de uma obra que "ela é boa", boa para ser perseguida, alcançada, imitada, aí está seu valor estético e normativo.

Uma obra se torna menos banal quando adquire maior valor estético. Não o contrário. A realidade é banal. Mas pode vir a se tornar estética. Arte é a transfiguração do banal em algo digno de ser apreciado.