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sexta-feira, 23 de junho de 2017

Pequeno Café

Paul Valéry
Extraído de "Rhumbs" - "Tel Quel", 1941-1943
Tradução Lauro Marques


Pequeno café obscuro, solidário, secreto, paraíso de pureza e de pensamentos.

Asilo espelhado de pedra oca, de uma palidez bela, fazes bem ao viajante, forno de sombra e de frescor, abóbada de berço muito suave...

Há somente eu dentro dessa gruta. Eu e os “Débats” sobre uma mesa de fundo.

Um gênio em roupas escuras, grosseiramente pintado de barba quase azulada... Ele se entedia tanto de sua solidão! Pega um banco para mim. Ele me traria qualquer coisa. Compreendo que vive num mundo imaginário.

Sinto-me um cliente abstrato, essência de cliente.

Vem, e embalsama o ar! ― Fumo e perfume, amargo chocolate a evocar biscoitos tostados!...

Daqui a pouco, após muitos cigarros, desejaremos pedir a esse vago pensador gordo e mal barbeado, um desses glace au citron* que queimam de frio os lábios e a língua...

Livre enfim dos museus!

As coleções, contrárias ao espírito; o harém para o amor.

Estamos cansados das disputas dessas damas sultanas. A soma de todas essas belezas é absurda, fatigante. Uma reunião de objetos excepcionais, uma multidão de singulares só pode agradar aos marchands, seduzir os insensíveis que se julgam sensíveis, e as pessoas crédulas. Um olho espiritual não veria nenhum visitante nas galerias, mas adjetivos errantes. Ao fim de tudo, o objetivo dos artistas, o único objetivo, se reduz a obter um epíteto...

Este chocolate tem um gosto severo que convém a este lugar vazio e agrada a meu humor. Uma colherada, ― um pensamento ― uma baforada, ― um gole de água gelada, ― e esta sequência de julgamentos:

Os museus são odiosos para os artistas.

Eles os adentram somente para sofrer, ou espionar, roubar segredos militares.

Se sentem prazer, é devido à atrocidade de seus desprezos.

Pintar os horríveis sofrimentos da inveja artista.

Michelangelo, houvesse ousado, teria envenenado.

Ciúmes que ele tem de Leonardo. O que isso implica.

Lionardo** não era cioso a não ser de suas idéias.

Um homem de talento, diante de mim maravilhado, ao tomar conhecimento da morte ou da demência, ― não sei mais, ― de um escritor mais conhecido e mais recompensado que ele, permite-se dizer vivamente: Tanto melhor... É chegada a minha vez.

Ousamos escrever as histórias das letras ou da arte sem dizer uma palavra de coisas como tais, sem aprofundar. A arte é tão quanto o amor. A arte e o amor são criminosos em potência, ― ou não existem.

Tudo que vem dos deuses causa o inferno nos homens.

Este café é deveras delicioso. Vemos daqui o calor vibrante sobre as pedras da rua. Eu passo a mão acariciando a carafe*** gelada. ― Uma trintena de moscas suspensas por seu movimento no espaço criam um sistema planetário e um movimento estatístico indiferente.

Aqui o espírito abatido pelas obras-primas ama a existência, se enleva, e avalia. Tudo que os homens fizeram, fazem e farão, soa para ele como esse barulho local e circunscrito do formigamento alado de trinta insetos. O corpo soergue imperceptivelmente os ombros. O próprio soerguimento, que condena os humanos, é bastante mal recebido. É impossível para a justiça que há em mim, não ver a necessidade de meu sentimento.

― As flores da florista aninhada sob a grande porta do palácio que está à frente dispensam as mensagens e os devaneios de amor. O que não ocorrerá jamais, o que não pode ser, embalsama, tem um perfume.

Eu desenho figuras geométricas no mármore do guéridon**** onde a ponta do lápis é tão feliz, tão livre.

― E de que me serve a necessidade de meu sentimento? Ela te serve muito, meu amigo.

Ela faz desse sentimento o que ele é,― o que são todos os sentimentos. Todo sentimento é o saldo de uma conta da qual o detalhe se perdeu. Impossível se obter uma declaração desses débitos e desses créditos. Encontraríamos aí operações que remontam ao ano mil; outras ao macaco ou ao castor. O pecado original é uma integral, sem dúvida.

Vamos, distrações, frescores, espírito, cessem de dominar!

Um pouco mais de fumaça com gelo; inalemos no ar o odor dos limões amorosos. Paguemos e partamos.


___________
*(N. do T.) Como no original. Valéry grafou Lionardo. Lion=leão, em francês. Em português seria então Leãonardo.
**(N. do T.) Creme gelado ou sorbet de limão.
***(N. do T.) Garrafa, em árabe, no original.
****(N. do T.) Uma pequena mesa de centro, geralmente circular ou oval. Peça do mobiliário francês.

Esta tradução é dedicada a Monica, que ama os lugares, as coisas e as sensações estéticas.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

“Tal Qual” – Paul Valéry

Tradução: Lauro Marques




Literatura

Os livros têm os mesmos inimigos que os homens; o fogo, a umidade, as feras, o tempo; e seu próprio conteúdo.

*

O pensamento tem dois sexos; fecunda-se e fica grávido de si mesmo.

*

Preâmbulo.

A existência da poesia é essencialmente negável; do que podemos extrair as tentações próximas da arrogância. - Sobre esse ponto, ela se assemelha ao próprio Deus.

Podemos estar surdos quanto a ela, cegos quanto a Ele - as consequências são insensíveis.

Mas isso que todo mundo pode negar e que queremos que haja - se torna o centro e o símbolo poderoso de nossa razão de sermos nós.

*

Um poema deve ser uma festa do Intelecto. Ele não pode ser outra coisa.

Festa: é um jogo, e no entanto, solene, regrado, significativo; imagem daquilo que não temos de ordinário, do estado em que os esforços são ritmos, recuperados.

Celebramos algo quando o realizamos ou o representamos no seu estado mais puro ou mais belo.

Aqui, a faculdade da linguagem, e seu fenômeno contrário, a compreensão, a identidade das coisas que ela separa. Descartamos suas misérias, suas fraquezas, seu cotidiano. Nós organizamos todo o possível da linguagem.

Terminada a festa, nada deve restar. Cinzas, guirlandas pisadas.

*

Para o poeta:
A orelha fala,
A boca escuta;
É a inteligência, a vigília, que infantiliza e sonha
É o sono que vê claro;
É a imagem e o fantasma que observam,
É a falta e a lacuna que criam.

*

A maioria dos homens têm da poesia uma idéia tão vaga que essa imprecisão mesma de sua idéia é para eles a definição da poesia.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Valéry sobre política

Dois extratos de Paul Valéry (o verdadeiro e único) traduzidos por mim:

"A atitude da indignação habitual, sinal de uma grande pobreza de espírito.
A 'política' aí constrange seus apoiadores. Vemos seu espírito se empobrecer dia após dia,de justa cólera a justa cólera.
Cada partido tem seu programa de indignação, seus reflexos convencionais.

***

Todo partido profetiza. Toda a política seria alterada se o fato único de prometer e de  predizer fosse por todo o mundo considerado como insuportável e inconveniente."

terça-feira, 1 de outubro de 2013

TAL QUAL (PAUL VALÉRY)


Fragmentos (“esboços de pensamentos”) recolhidos ao acaso e traduzidos de “Tel Quel”, coletânea de escritos de Paul Valéry, Gallimard: 1943.

LITERATURA

Escrever é prever.

Descobrimos, relendo, a medida de nossa própria ignorância.

*

Muitos escritores consideram sua arte, não como algo em que necessitam se tornarem mestres ― sine qua non ― mas como um jogo de azar no qual podem arriscar a própria sorte. Eles confiam inteiramente na fortuna e dar-se-ão o valor que ela vier a lhes conferir. (Acrescentarão uma coisa ou outra).

Há portanto dois perigos, duas maneiras de se perder e afundar: adaptar-se completamente ao público; ser fiel demais ao próprio sistema.

*Uma obra é sólida quando ela resiste às substituições que o espírito de um leitor ativo e rebelde sempre tenta submeter às suas partes.

Jamais esquecer que uma criação é algo finito, acabado e material. O arbitrário vivo do leitor se bate contra o arbitrário morto da obra.

*

De um certo “ponto de vista”, que não raramente é o meu ― o que chamamos de uma bela obra pode parecer um terrível defeito do autor.

*

Freqüentemente julgo uma obra de arte ao pensar: é impossível que tenhas querido isto.

*

Um poeta é o mais utilitário dos seres. Preguiça, desespero, acidentes de linguagem, olhares particulares, ― tudo isso que o homem mais prático perde, rejeita, ignora, elimina, esquece, o poeta recolhe e por meio de sua arte acrescenta certo valor.

*

Quem diz: Obra, diz também: Sacrifícios.

A grande questão é decidir aquilo que vamos sacrificar: é preciso saber quem, quem, será comido.


*

Conheço a literatura por lhe haver interrogado de minha própria vontade. (E somente desse modo).

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Variações sobre a identidade



Traduções e notas

Tradução (1) "Os cadernos e as poesias de André Walter" - André Gide.
25 de abril

Não compreenderão este livro, os que procuram pela felicidade. A alma não está satisfeita; ela adormece nas felicidades. É o repouso, não a vigília! É preciso velar. A alma ativa, eis o desejável ― e que encontre sua felicidade, de nenhum modo na FELICIDADE, mas no sentimento de sua atividade violenta. ― Portanto a dor mais que o júbilo, pois ela torna a alma mais viva; quando a alma não prosterna, as vontades se lhe exasperam: sofremos, mas o orgulho de viver poderosamente afasta as fraquezas. A vida intensa, eis a soberba: eu não trocaria a minha vida por a de nenhum outro, eu aqui vivi várias vidas, e a real foi a menos importante.

Intensificar a vida e guardar a alma vigilante: então ela não mais se lamentará, indolente, mas lhe agradará a própria nobreza.

* * *
O autor -André Gide- assinala o ano de 25 de abril de 1889 para este trecho. Data em que, no romance, publicado em 1891, o personagem escreve no seu diário. O fragmento faz parte do Caderno Branco, uma das seções (a outra é o Caderno Negro) em que se subdivide o romance de estréia de Gide intitulado "Os cadernos e poesias de André Walter".

Em nota, o editor da versão original em francês, Claude Martin, assinala que a frase que encerra o primeiro parágrafo contém uma “idéia essencial à Gide, que está na própria raiz de sua criação romanesca, nutrida das ‘direções infinitas de sua vida possível’, ao mesmo tempo que ‘o romancista fictício criou seus personagens com a linha única de sua vida real’, seguindo uma fórmula de Albert Thibaudet e suas Reflexões sobre o romance, Paris: Gallimard, 1938, p 12] retomada por Gide no final de seu Diário dos Moedeiros Falsos [Paris NRF, 1927, p 113] , um dia após ter colocado o ponto final no seu romance”.

No diário de Édouard, personagem do romance de Gide em Os Moedeiros Falsos, Círculo do Livro: tradução de Celina Portocarrero, p. 62, este também escreve: “Nunca sou senão aquilo que acredito ser ― e isso varia sem cessar, de modo que frequentemente, se eu não estivesse aqui para aproximá-los, meu ser da manhã não reconheceria o da tarde. Nada pode ser mais diferente de mim do que eu mesmo.”E, continuando: Nada para mim tem realidade, senão poética (e atribuo a essa palavra seu sentido pleno) ― a começar por mim mesmo. Parece-me às vezes que não existo realmente, mas que simplesmente imagino que sou. Aquilo em que mais custo a crer é em minha própria realidade.”

Tradução (2). "Coisas inauditas". Paul Valéry
Variações sobre Descartes
  Às vezes eu penso; e às vezes, eu sou.

*

Se um ser não pudesse viver uma outra vida diferente da sua, ele não poderia viver a própria vida.

Pois a sua vida não é feita senão de uma infinidade de acidentes, cada um dos quais podendo pertencer a uma outra vida.

*
Si mesmo
 Quanto mais uma consciência é “consciente” mais sua personalidade, mais suas opiniões, seus atos, suas características, seus sentimentos lhe parecem estranhos, ― estrangeiros. Ela tenderia então a dispor do que ela tem de mais próprio e pessoal como coisas exteriores e acidentais.

Decerto é preciso que eu tenha opiniões; hábitos, um nome, afetos, repulsões, tanto quanto a parede de meu quarto tenha uma certa cor. Tudo isso não é mais meu do que a luz pertence a essa cor. Ela poderia iluminar o que quer que fosse.

― Como te chamas?

― Eu não sei...

Tua idade?... Eu não sei...Onde nasceste? Não sei...Profissão? Não sei... Está bem: Tu és eu mesmo.
Traduções de Lauro Marques

sábado, 19 de junho de 2010

“TAL QUAL” – PAUL VALÉRY (TRADUÇÃO)*

*Tradução Lauro Marques. Em luto pela morte de Saramago
Extraído de “TAL QUAL” – PAUL VALÉRY



Literatura

A obra e sua duração



Todo grande homem entretém a ilusão que poderá prescrever alguma coisa ao futuro; é o que chamamos durar.



Mas o tempo é um rebelde, – e se alguém parece lhe resistir, se uma obra conserva-se à tona e flutua e não é propriamente deglutida – veremos sempre que é uma obra muito diferente daquela que seu autor acreditou ter deixado.



A obra dura na medida em que é capaz de parecer completamente diferente do que seu autor a havia realizado.



Ela dura por se haver transformado, e porque era capaz de mil transformações e interpretações.



Ou melhor, porque ela comporta uma qualidade independente de seu autor, não criada por ele, mas por sua época ou nação, e a qual adquire valor pela mudança de época ou nação.”

sábado, 29 de agosto de 2009

O antiblogger?

Escrever somente quando necessário.

Como Paul Valéry, que acordava no meio da noite assaltado pela urgência de uma frase ou pensamento e assim preencheu cadernos e mais cadernos absolutamente desnecessários. E aqui me contradigo, pois, em literatura, como na vida, como saber quando e o que é de fato necessário?

* * *

"Poste-escrito": sobre isso e sobre a "necessidade do sentimento", ler (valeria a pena meditar?) minha tradução do texto Pequeno Café, de Valéry.

sábado, 3 de janeiro de 2009

Paul Valéry

Frase de Paul Valéry, que me apanhei relendo pouco tempo antes dos fogos explodirem, na virada do ano: "Temos de entrar em nós próprios armados até os dentes." De Monsieur Teste.

segunda-feira, 10 de abril de 2006

TEL QUEL/ TAL QUAL - Guénadi Aigui

Paul Valéry (Tradução: Lauro Marques)

Construir um poema que contém unicamente poesia é impossível. Se uma obra contém apenas poesia, ela não é constituída; não é um poema.

***


Todas as partes de um poema devem "trabalhar".

***



As partes de uma obra devem estar ligadas umas com as outras por mais de um fio.

___


E eis que encontro o exemplo mais perfeito e i(ni)mitável de (para mim) poesia:


Guénadi Aigui
A RENÉ CHAR

..CAMPO: NO FORTE DO
INVERNO


Fogueira-deus! - é o campo aberto que se deixa atravessar totalmente por tudo (os marcos de estrada e o vento e os pontos distantes dos moinhos: parecem afastar-se - não em vigília - deste mundo:

oh! tudo são fagulhas -
que não dilaceram a chama da
fogueira não-universal)
- sem vestígios de nada,
fogueira-deus
que, não universal, brilha.

(Tradução de Boris Schnaiderman)


"O poema é uma operação" - Alain Badiou.

Mais poemas de Guénadi Aigui na Confraria do Vento

sábado, 19 de novembro de 2005

Tal Qual – Paul Valéry

Literatura
A OBRA E SUA DURAÇÃO

Todo grande homem entretém a ilusão que poderá prescrever alguma coisa ao futuro; é o que chamamos durar.

Mas o tempo é um rebelde, – e se alguém parece lhe resistir, se uma obra ondeia e flutua e não é propriamente engolida – veremos sempre que é uma obra muito diferente daquela que seu autor creu ter deixado.

A obra dura na medida em que é capaz de parecer completamente diferente do que seu autor a havia realizado.

Ela dura por se haver transformado, e porque era capaz de mil transformações e interpretações [N.T. ver “Receita Literária” minha, sobre Rimbaud, na Revista Bula 16/11/05 ].

Ou melhor, porque ela comporta uma qualidade independente de seu autor, não criada por ele, mas por sua época ou nação, e a qual adquire valor pela mudança de época ou nação.


Tradução Lauro Marques