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quinta-feira, 24 de maio de 2018

"O avesso da vida"- Philip Roth



A literatura é o avesso da vida. 
Mas o avesso no espelho, distorcido, do parque de diversões.
A diversão em Nathan Zuckerman (personagem principal do romance de Philip Roth, com o título desse post) está nisto: em distorcer, criar ficção a partir dos fatos de sua vida real.
Só que, ao final do romance, ficamos sem saber o que é real e o que é ficção/alucinação/imaginação do autor, dos vários livros dentro do livro/cabeça – “eu sou um teatro e nada mais” – do autor.
Os limites estavam borrados desde o princípio e é essencial que fiquem borrados.
Não existe um “narrador” fora da imaginação de Roth que não seja também fruto de sua imaginação (que, ao lermos, passa a ser também a nossa).
Roth, afinal, e Zuckerman são a mesma pessoa – os personagens “falam” com o autor do livro que está sendo escrito, eles “se lêem”.
O final é em aberto. Zuck é quem tem a última palavra – mesmo depois de morto.
Como em Ulisses, "mesmo a mais fina literatura permanece uma imitação paródica da vida".

sábado, 8 de março de 2014

O abismo de Pessoa



Mise en abîme. Procedimento que consiste em incrustar uma imagem dentro dela mesma, representar uma obra dentro de uma obra de um mesmo tipo, que remonta ao princípio dos fractais ou da recursividade na matemática.

Em literatura, o “pôr-se em abismo” é a técnica utilizada pelo escritor que escreve um romance sobre o escritor que escreve um romance, como no primeiro livro de André Gide: “Os Cadernos e as Poesias de André Walter”. Assim como em “Os Moedeiros Falsos”, obra da maturidade de Gide, o próprio romance está sendo escrito dentro da obra de mesmo nome em que é contado.

Indo um pouco além das definições enciclopédicas, de todos os artistas talvez o poeta seja o ser que mais está sempre a cada momento “colocando-se em abismo”. Isto é, ele está o tempo todo representando para si mesmo o ato de escrever o poema e a si mesmo nesse ato. Ele exercita o tempo todo aquilo que Octavio Paz chamou de “outridade” ―resumida na famosa frase de Rimbaud: “Je est un autre”, eu sou um outro, o “eu” é um outro.

Este “eu” de que falam tantos poemas sempre é um retrato de um outro, um “eu” que precisa ser representado na forma desse outro, e só aparece por meio da linguagem.

O “eu” é um outro, meu abismo é o seu abismo e ambos podemos nos reconhecer. Ou talvez nele venhamos a nos perder.

A “outridade” do poeta não é senão “colocação em abismo”, mise en abîme.

(Para ser inteiro é preciso ser outro. E nunca se pode ser inteiramente inteiro, sem ser outro. Donde, nunca se pode ser inteiro.)

O verdadeiro “eu” está em outra parte ou está em parte nenhuma ―o que é o mesmo que dizer que está em toda a parte.

O verdadeiro “eu” é uma ficção. Fernando Pessoa, o mais “abismal” dos poetas foi talvez quem melhor compreendeu isso, e que se declarou, pela voz do heterônimo (sempre pela voz do heterônimo) Bernardo Soares, um “espectador irônico” de si mesmo. E é também Bernardo Soares, no Livro do Desassossego, que se rebela contra o escritor Fernando Pessoa, que o escreve escrevendo contra a necessidade de se recompor, para que venha a existir, como linguagem, para nós, destruindo-se enquanto unidade autônoma aparente: “Tornei-me uma figura de livro, uma vida lida. O que sinto é (sem que o queira) sentido para se escrever que se sentiu. O que penso está logo em palavras, misturado com imagens que o desfazem, aberto em ritmos que são outra coisa qualquer. De tanto recompor-me destruí-me. De tanto pensar, sou já meus pensamentos mas não eu. Sondei-me e deixei cair a sonda; vivo a pensar se sou fundo ou não, sem outra sonda agora senão o meu próprio olhar que me mostra, claro a negro no espelho do poço alto, meu próprio rosto que me contempla a contemplá-lo”.

Mise en abîme infernal e vertiginoso em que criador e criatura se fundem e se separam num jogo de espelhos infinito, e a solução para o problema formulado nunca é dada.

terça-feira, 1 de outubro de 2013

TAL QUAL (PAUL VALÉRY)


Fragmentos (“esboços de pensamentos”) recolhidos ao acaso e traduzidos de “Tel Quel”, coletânea de escritos de Paul Valéry, Gallimard: 1943.

LITERATURA

Escrever é prever.

Descobrimos, relendo, a medida de nossa própria ignorância.

*

Muitos escritores consideram sua arte, não como algo em que necessitam se tornarem mestres ― sine qua non ― mas como um jogo de azar no qual podem arriscar a própria sorte. Eles confiam inteiramente na fortuna e dar-se-ão o valor que ela vier a lhes conferir. (Acrescentarão uma coisa ou outra).

Há portanto dois perigos, duas maneiras de se perder e afundar: adaptar-se completamente ao público; ser fiel demais ao próprio sistema.

*Uma obra é sólida quando ela resiste às substituições que o espírito de um leitor ativo e rebelde sempre tenta submeter às suas partes.

Jamais esquecer que uma criação é algo finito, acabado e material. O arbitrário vivo do leitor se bate contra o arbitrário morto da obra.

*

De um certo “ponto de vista”, que não raramente é o meu ― o que chamamos de uma bela obra pode parecer um terrível defeito do autor.

*

Freqüentemente julgo uma obra de arte ao pensar: é impossível que tenhas querido isto.

*

Um poeta é o mais utilitário dos seres. Preguiça, desespero, acidentes de linguagem, olhares particulares, ― tudo isso que o homem mais prático perde, rejeita, ignora, elimina, esquece, o poeta recolhe e por meio de sua arte acrescenta certo valor.

*

Quem diz: Obra, diz também: Sacrifícios.

A grande questão é decidir aquilo que vamos sacrificar: é preciso saber quem, quem, será comido.


*

Conheço a literatura por lhe haver interrogado de minha própria vontade. (E somente desse modo).

terça-feira, 26 de julho de 2011

Notas literárias_ Ulisses (em progresso)

  •  Lendo o prefácio do Ulisses. Algumas intuições comprovadas. Há uma "anatomização do corpo" em Ulisses, Joyce traçou um plano em que cada capítulo representava um órgão do corpo: fígado, genitais, coração, cérebro, etecetera. (Ver post anterior cadáver de leite). (O monólogo de Molly, por exemplo, é centrado na "carne"). 
  • Joyce afirmava que tomou emprestado os diálogos da fala de pessoas em Dublin e se orgulhava, como Shakespeare, de nunca ter criado uma trama.
  • Com Ulisses, Joyce chegou a um “ponto final do modernismo, em que uma cultura, tendo florescido, imediatamente anula sua própria agenda. No coração da cultura modernista está uma desconfiança na própria ideia de cultura”. Declan Kiberd, introdução de Ulisses, Penguin. 
  • "Mesmo a mais fina literatura permanece uma imitação paródica da vida".
  • "Feminilidade" de Bloom. 

quinta-feira, 21 de julho de 2011

O MURMÚRIO DO MUNDO_ Notas sobre poesia


Revista Bula, 4 de setembro de 2006

 
O MURMÚRIO DO MUNDO

O que eu admiro nos poetas, como já escrevi em outra ocasião, não é sua provável “riqueza interior”, mas sim a sua imensa generosidade. Os grandes criadores são também “esbanjadores” (Nietzs.). Encho minha taça para que ela transborde. Meus sentimentos pessoais, esses morrerão comigo, pois são incomunicáveis. Justamente por isso que um poema nunca é só uma questão de sentimento, e “construir um poema que contém unicamente poesia é impossível. Se uma obra contém apenas poesia, ela não é constituída; não é um poema” (Paul Valéry ).

“O poema não é nem uma descrição, nem uma expressão. Tampouco é uma pintura comovida da extensão do mundo. O poema é uma operação” (Alain Badiou, sobre Mallarmé).


SILENCIEMOS, POIS SIM, MAS NA LINGUAGEM

Ela caminha em minha direção, vinda de não sei onde, que a apanhei. Eu a pus para andar, soprei ar nos seus pulmões, dei-lhe um nome incógnito para protegê-la. Eu a falei.

Agora ela é sua. Trate-a bem.

_____________

Aos poetas do “subconsciente”, que acreditam poder haver poesia apenas dentro de suas mentes, de forma emudecida, egoística, “não trabalhada”, ou “bruta”, eu afirmo: a “linguagem fala” (Heidegger) porque o signo-objeto-mundo fala. Escutemos.

Agora, digam o que quiserem, mas falem. Sejam imperfeitos e corajosos, falem de imagens e de silêncio, desertos, securas, pedras quebradas, mas falem, criem o poema.

Ou eu não vou poder nunca saber quem (ou o que) são vocês.


A POESIA PRECISA SER COMUNICADA

Subconsciente, na definição do Houaiss “é o conjunto dos fatos ou vivências pouco conscientes, ou que estão fora do limiar da consciência atual, ou aos quais ela não pode ter acesso”. Isso constitui a “matéria bruta” para um tipo de fazer poético? (1)

Vejamos: o subsconsciente “brota” em alguns poemas, imagens oníricas podem ser “projeções” inconscientes (pensem na figura que acompanha uma determinada poeta, de um unicórnio cavalgando numa noite enluarada...). A poesia realmente é rica em revelar imagens que estavam lá no fundo de nossa consciência, esperando para vir à tona. Os surrealistas buscaram através da escrita automática e outros processos, dar vazão especialmente a esse tipo de imagem. É algo que está sempre no âmago de nossos processos criativos e conscientes – assunto para uma possível "psicologia da arte".


“POETA” SIGNIFICA “FAZEDOR” EM GREGO

Um poeta que eu li pouco, porque só conheci muito recentemente, mas gosto muito, pela forma sintética e a força de seus poemas, Samuel Menashe (2), diz que “caminha” um poema até que esteja pronto. Ele o pensa enquanto anda, constrói na própria cabeça antes mesmo de escrevê-lo. “Eu não sinto que estou escrevendo”, afirma, “– mas talvez esculpindo. Você sabe, ‘poeta’ significa ‘fazedor’ em grego. Algumas vezes eu me sinto como alguém trabalhando num problema algébrico, e prestes a chegar a uma conclusão, e esta tem de estar perfeitamente balanceada’” (3). A etapa de passar para o papel é a que eu considero a mais difícil; é aí que eu sinto que as palavras ganham vida própria, o acaso intervém, algo fora de nós, uma folha de árvore voando... e aquilo passa a fazer parte do poema.


Promised Land
Terra Prometida

At the edge
À beira de
Of a world
Um mundo
Beyond my eyes
Além dos meus olhos
Beautiful
Lindo
I
know Exile
Eu sei que o Exílio
Is always
Sempre é
Green with hope –
Verdesperançado –
The river
O rio
We cannot cross
Não atravessado flui
Flows forever
Incessantemente


 - Samuel Menashe (tradução: Lauro Marques)

(1) Sirvo-me aqui, como em outras partes, de questionamentos surgidos dentro do grupo de estudos virttual Razão-Poesia, do qual participei, formado, dentro outros, pelos professores Gustavo Castro e Florence Dravet, de Brasília.

(2) Samuel Menashe nasceu na cidade de Nova Iorque em 1925. Em 1943 se alistou e foi mandado para a Escola de Infantaria em Fort Benning, no Estado da Geórgia (EUA). Após treinamento na Inglaterra, sua divisão lutou na França, Bélgica (A Batalha do Bulge), e Alemanha. Em 1950 foi agraciado com o título de doutor pela Universidade de Sorbonne. Seu primeiro livro, The Many Named Beloved, foi publicado em Londres em 1961.
Fonte: Revista Rattapallax

(3) New York Times (Publicado em: 10 de outubro de 2003). 


sábado, 16 de julho de 2011

Um fragmento do Ulisses: Torres, cadáver de leite



Ulisses, James Joyce. Uma revolta muda, impotente, diante da morte, o transcorrer inexorável do tempo, cheirando a putrefação, em que “um dia são muitas vidas”, percorre o livro. Como na passagem a seguir, que faz uma referência cruzada ao zoroastrismo1 (a tradução é minha) :"Um cadáver é carne estragada. E queijo, o que é? Cadáver de leite. Li numa dessas Viagens à China que o chinês afirma que um homem branco cheira a cadáver. Muito melhor cremar. Os padres são mortalmente contra. (...) Câmara de gás. Ao pó voltarás. Ou enterre no mar. Onde fica essa Torre do Silêncio parse? Comido por pássaros. Terra, fogo, água."

A capa da edição da Penguin Books 2.

___


1- Os elementos eram sagrados para os seguidores desse antigo culto de persas zoroastristas: os parses (ainda existente no Irã, Iraque e Índia). Enterrar ou cremar significava corromper. Eles resolveram a situação depositando os corpos dos mortos no alto de torres, expostos ao sol, para serem consumidos pela ação do tempo, pássaros, etc.

2- Foto de uma "Martello Tower", fortaleza de alvenaria circular de defesa costeira, construída pelo Império Britânico durante o século XIX após as Guerras Napoleônicas. Joyce chegou a viver uma semana numa torre dessas, em 1904, quando tinha 22 anos, onde ele localizou o início do episódio 1 de Ulisses. "The tower was leased from the British War Office by Joyce's university friend Oliver St. John Gogarty, with the purpose of "Hellenising" Ireland. Joyce left after an incident in which Gogarty fired a gun in his direction.The opening scenes of Ulysses are set the morning after this incident. Gogarty is immortalised as "Stately, plump Buck Mulligan" (ver Wikipedia). Hoje transformada em museu do escritor, em Dublin. Foi uma livre associação que fiz baseado na semelhança entre essa estrutura e a Torre do Silêncio parse mencionada no fragmento.

terça-feira, 12 de julho de 2011

LATA DE SARDINHA VOL. 2- Fragmentos


É a mais pura verdade. Algo que não posso tocar, ver, ouvir, ou cheirar. Descobrir o significado dessas palavras.


***



Capa do livro “A invenção da solidão”, de Paul Auster. Uma lata de sardinha aberta em que se vê o fundo vazio. Imagem da solidão de A. Índice da ausência. A “maldição do pai ausente”.


***

Como na pintura Splash (“Tchibum”) de David Hockney. Também um emblema da ausência, do que não se vê.


***

Seguem-se várias citações de quadros retratando a ausência.



Nighthawks, “Notívagos”, de Edward Hopper, cuja tradução literal, em ornitologia, é de uma espécie de pássaro de hábitos noturnos.



Uma caixa registradora solitária na loja fechada, iluminada pela luz do café. Larga calçada, bancos vazios. Um casal que não se olha, um homem de costas, o paletó lembrando as asas recolhidas de pássaro... noturno... solidão.



O quarto vazio preenchido de Van Gogh.



A “Puberdade”, de Munch. Uma adolescente sentada à beira de uma cama. A sombra da morte, desde o nascimento, presente no despertar sexual da jovem trêmula.



“Mulher de azul”, de Veermer. Conforme um comentarista, citado por Auster: “A carta, o mapa, a gravidez da mulher, a cadeira vazia, a caixa aberta, a janela que não se vê – são todos índices ou emblemas naturais da ausência, do não visto, de outras mentes, vontades, tempos e lugares, do passado e do futuro, do nascimento e talvez da morte - em geral, de um mundo que se estende além dos limites da moldura, e de horizontes maiores, mais largos, que circundam e invadem a cena suspensa diante de nossos olhos. E no entanto é na plenitude e na auto-suficiência do momento presente que Veermer insiste – com tamanha convicção que sua capacidade de orientar e incluir se reveste de um valor metafísico”.



Imagens de Manet. Olhares que nunca se cruzam e que observam o vazio extraquadro. “A ameixa”, “O balcão”, “Almoço no ateliê”, “Na praia”, “Na estufa”.



Série de fotografias, da década de 90, de Sarah Jones, com “quarto” no título. “The sitting room”, “The dinning room”. Adolescente sentada, vestida numa espécie de pijama branco, cabeça caída, da qual só se vê os cabelos lisos alongando-se sobre o braço, recostada na altura dos olhos, deixando entrever um pedacinho da nuca, na mesa extremamente polida, tendo ao fundo um biombo japonês.


***

A "plenitude e a auto-suficiência do momento presente”.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

O homem tolo/ El hombre tonto

Foto "Páteo noturno_sepia", de Lauro Marques
O homem tolo construiu castelos de gelo no verão, onde pensou em morar por muitos anos e rimou palavras a esmo para surdos-mudos e analfabetos, numa língua morta e desconhecida desde então.



O homem tolo saiu à noite com uma lanterna apagada procurando pela escuridão e só encontrou-se a si mesmo.



Esse homem tolo abriu as janelas de sua alma numa rua deserta e, no lugar de inspirar, expirou ali mesmo.

El hombre tonto construyó castillos de hielo en verano, donde pensó vivir por muchos años e hizo rimas con palabras al azar para sordomudos y analfabetos en una lengua muerta y ya para siempre desconocida.

El hombre tonto salíó de noche con una linterna apagada en busca de la oscuridad y sólo se encontró a sí mismo.

Este hombre tonto abrió las ventanas de su alma en una calle desierta y, en lugar de inspirar, expiró allí mismo.






De: "Sumário de Incertezas/Resumen de Incertidumbres"", Lauro Marques. Editora Confraria do Vento, 2010

Gracías a Jorge Paolantonio por correcciones a la versíon en español.

quinta-feira, 26 de maio de 2011

A Vida Breve


I
Há livros que não deveríamos ler. Que querem dissipar suas sombras tristes sobre nós, através de nós, tornando-nos seus personagens. Livros assim escravizam. Talvez Onetti fosse louco, assim como todos os grandes escritores (Joyce, Céline, Becket). E talvez escrever seja uma forma de ir adiante. Levantar-se, preparar o café com ovos mexidos, limpar-se, tomar banho, abotoar o paletó e dirigir-se até o escritório. Enquanto sente-se avolumar ao redor as ondas surdas do caos.
 II
A "Vida breve", de Onetti, é também cruel . Me fez lembrar de Céline. Personagens esquisitos, desesperados, a morte rondando ao lado, inquieta. E de vez em quando, frases como essa, entre parêntesis, que iluminam o texto como um clarão de cemitério: "(Alguém pisa, estrangeiro, as folhas caídas no bosque; damos sepultura, sem pompa, à última rosa desse verão chuvoso.)". Enquanto gotas, reais, de chuva lavam a janela do apartamento onde digito isso e uma mulher grita, na casa da rua embaixo, pela terceira vez com o cachorro (que insiste em latir).
 III
Achado escrito à mão num marcador dentro do livro "A vida breve", de Juan Onetti: "Gosto dos livros porque são solidões portáteis". (A frase, talvez seja necessário acrescentar, é minha).
IV
No fim do romance "A Vida Breve", os personagens, que, diga-se de passagem, são produtos da fantasia criados por outro personagem, Juan María Brausen, estão fugindo da polícia. Fantasiados, "excessivamente escondidos no Carnaval", sem roupas para trocar e sem nenhuma perspectiva, sem dinheiro nem documentos, deixados para trás na fuga, sem ter mais para onde correr, eles sabem que quando acabar esse que é o último dia de folia, eles não vão conseguir passar mais despercebidos. É a hora em que está amanhecendo em Buenos Aires e eles estão sentados numa praça enquanto brindam à má sorte com copos vazios e a um homem muito velho que "alimentava-se de minúsculos mistérios sem importância. Na hora da morte acreditou que se salvaria dizendo estar com sono".

segunda-feira, 4 de abril de 2011

"E ele olha através da canção"

"E ele olha através da canção". Porque uma linha de Guenádi Aigui vale mais que mil poemas, caprichosamente elaborados, miméticos, narrativos, perfeitamente "conscientes de si", enfadonhos, acomodados, loucos para serem "expressos". "As notícias farfalham nas matas". "Campo e pedra." "O calar-se". "Pedra".

sexta-feira, 4 de março de 2011

Amuleto, Roberto Bolaño

"Metempsicosis. La poesía no desaparecerá. Su no-poder se hará visible de otra manera."
Uma das "profecias" de R. Bolaño, em "Amuleto", novela do autor, escrita em 1999, como um capítulo extraído de "Os Detetives Selvagens" que ganhou vida própria.

(Outra "profecia" é que "César Vallejo será leído em los túneles en el año 2045". Esta última eu já tratei de concretizar, pois já li, muitas vezes, César Vallejo em túneis.)

Faz parte dos delírios da personagem Auxilio Lacouture(*), escondida num banheiro da UNAM, durante uma invasão do Exército, em 1968, na Cidade do México.

Por trás, há o tema da morte - da poesia, dos poetas (seres perseguidos, fantasmagóricos, e às vezes ridículos, que gostariam de se imaginar heróicos), sua lenta e angustiada aparição e desaparição no mundo. E da memória. Da poesia como uma forma que resiste ao tempo: ela reencarnará, os poetas (ou suas obras), alguns, continuarão.

(*) Relendo essa nota, pensei que o sobrenome "La couture", que siginifica "costura", em francês, talvez seja uma chave, pode ser lido como "La culture", cultura.
"Y ese canto es nuestro amuleto"

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Notas soltas - Poesia

A poesia não tem recuos e avanços. Ela – é, permanece. Depois de retirar sua atuação “social”, é impossível deixá-la sem a plenitude vital e humana, do aprofundamento, de ser autônoma. E então? –Ela pode evidentemente aprofundar-se também naquelas esferas em que o sono atua com tamanha intensidade. “Ousar” permanecer no sono, enriquecer-se em seu domínio, comunicar-se com ele – nisto, se quiserem, é lenta certeza da poesia em si mesma – ela não necessita que lhe façam “indicações”, que lhe “permitam” e que a controlem (também é assim, e em concordância, o seu leitor).


Será que a poesia perde ou adquire algo em tais condições? Seria desejável deixar isso como uma pergunta formulada. O mais importante: ela sobrevive. Expulse-a pela porta, ela se esgueira pela janela.

Guenádi Aigui. Sono e poesia.


Deixe-me colocar-lhe uma questão, senhor Breton. Todos conhecemos a noite e os dois lados que todas as noites têm: a noite dentro de casa e a noite fora de casa. Ou seja: há a tranquilidade e o esperado e há, ainda, o medo e a estranheza. Claro que se poderá sempre dizer que a poesia não se encontra nem em um lado nem no outro: a noite tem dois lados e a poesia é a porta da casa no momento em que é aberta e o escuro cobre a relva e o céu. Mas quando alguém tem medo, deve correr para casa; e quando sente tédio, deve correr para a parte de fora da noite. E a poesia, que parece uma coisa parada, resolve, ao mesmo tempo, o tédio e o medo; o que é bom e dois, sendo uma única, a poesia.

 Gonçalo M. Tavares. O Senhor Breton e a entrevista.

domingo, 19 de setembro de 2010

Mário de Sá-Carneiro: Impressões domingueiras


Leio Mário de Sá-Carneiro no domingo meio nublado, no parque da Água Branca. Um parque meio pobre e mal-cuidado, em reformas, com aves simplórias ciscando em meio aos pombos (que ao meu ver nem aves são), galinhas, galos e pavões. Paus-brasis dos mais altos que já vi -antes só conhecia mudas-, que me pareceram muito estranhos, e um resto de vegetação que para nós, citadinos, já nos basta para nos sentirmos em meio ao mato. Uma surpresa. Há quiosques com livros que você pode pegar e ler, depois devolver, sem ninguém para dar por isso. Um quiosque com livros de poesia! Poucos, uns 20 talvez, mas todos bons (lembro que vi Rimbaud, Lautréamont, Haroldo de Campos, Célan, José Paulo Paes), outro de literatura em geral. Fui lá no de poesia e peguei o Mário de Sá. Há mesas de leitura, como as de um restaurante, só que sem garçons, e quando fui lá estavam vazias. Uma musiquinha tocava ao fundo, uma canção infantil. Eu já o tinha lido, claro, mas naquele parque lúgubre, num domingo, após ter passado em frente a um baile da terceira idade, que ocorria a poucos metros ali mesmo dentro do parque, onde pairava um estranho desânimo, um “além-tédio" (1) de tudo -para um parque, com crianças!-, a sensação foi amplificada.

*
*
*

Acrescento algo totalmente desnecessário a essa minha nota igualmente desnecessária, que não tem muito a ver com Sá-Carneiro mas com o "estado de ânimo" do parque naquele dia. O tal baile da terceiridade era uma das "atrações", comparável aos brinquedos para as crianças e os animais soltos, para os que de fora observávamos os velhinhos a entrar na casa - de onde saía uma animada música, contrastando com as figurinhas trêmulas que, rapidamente, e sem trocar muitas palavras, a espinha dobrada, entregavam determinada quantia ao homem, também de idade, usando um chapéu preto e camisa social, que fazia às vezes de porteiro e bilheteiro. Como a casa ficava numa parte baixa, as pessoas na parte alta do caminho que passava ao lado do salão de baile, paravam para olhar, algumas empurrando carrinhos de bebês, em roupas de "jogging", ou casais de meia-idade, por um momento sinceramente enternecidos com as imagens do passado (que para nós seria mais certo dizer futuro, mas que vemos como pertencentes a um tempo passado). Escutei uma garotinha dizer: "mas deve ser necessário ter uma certa idade", entre desejosa e precavida, de participar da "festa", que, como tudo mais no parque, tinha a aura de espectro.

__________

(1) - nome de um poema de MSC.

Nada me expira já, nada me vive ---/ Nem a tristeza nem as horas belas. /De as não ter e de nunca vir a tê-las, /Fartam-me até as coisas que não tive. //Como eu quisera, enfim de alma esquecida, /Dormir em paz num leito de hospital.../ Cansei dentro de mim, cansei a vida/ De tanto a divagar em luz irreal. //Outrora imaginei escalar os céus/ À força de ambição e nostalgia,/ E doente-de-Novo, fui-me Deus/ No grande rastro fulvo que me ardia.// Parti. Mas logo regressei à dor, /Pois tudo me ruiu.../ Tudo era igual: A quimera, cingida, era real,/ A própria maravilha tinha cor!// Ecoando-me em silêncio, a noite escura/ Baixou-me assim na queda sem remédio;/ Eu próprio me traguei na profundura,/ Me sequei todo, endureci de tédio.// E só me resta hoje uma alegria:/ É que, de tão iguais e tão vazios, /Os instantes me esvoam dia a dia/ Cada vez mais velozes, mais esguios...

Ver também o poema "Dispersão".

terça-feira, 7 de setembro de 2010

O homem tolo - poema, antecedido de comentário à leitura de Ulisses

Sábado 14 de janeiro de 2006


Limpo a poeira do Ulisses, traduzido por Antônio Houaiss. Poeira não. São grossas camadas pretas de poluição, gordura, e ácaro. Joyce diria: "Necrófago! Mascador de cadáveres!".

Leio a edição carcomida pelas traças, que traçaram umas curvas (algumas bem elegantes) por todo o livro. Com a caneta, sublinhando as frases que eu gosto. (Ou do estilo). E são muitas.

"Diz Maeterlink: Se Sócrates deixar sua casa hoje, encontrará o sábio sentado à sua soleira. Se Judas sair esta noite, é para Judas que seus passos tenderão. Cada vida são muitos dias, dia após dia. Caminhamos através de nós mesmos, encontrando ladrões, fantasmas, gigantes, velhos, jovens, esposas, viúvas, irmãos do amor. Mas sempre encontrando-nos a nós mesmos."

E de fato, a passagem remeteu-me para algo que escrevi antes. Eis que reencontro. O anti-Zaratustra. O sem força. O poeta, o bobo. O bufão que interrompe, através da parábase, o discurso do sábio. O último dos homens, talvez. Eu. Incipt commedia!


O HOMEM TOLO


O homem tolo construiu castelos de gelo

no verão, onde pensou em morar

por muitos anos

e rimou palavras a esmo

para surdos-mudos e

analfabetos

numa língua morta e

desconhecida

desde então.



O homem tolo saiu à noite com uma lanterna

apagada

procurando pela escuridão

e só encontrou a si mesmo.



Esse homem tolo

abriu as janelas de sua alma

numa rua deserta e no lugar de inspirar,

expirou ali mesmo.


sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Hamlet e as ervas daninhas


Que mundo este! Oh! É um jardim inculto em que crescem as ervas bravas!



Ler com a “chave” do soneto 94 (*). Hamlet é uma erva daninha que cresce num maltratado jardim de lírios (a Dinamarca, o casal real, este mundo!), os quais, infectados por um tipo de mal (traição e assassinato do rei), fedem mais do que as ervas, quando apodrecem.



A vil erva vai turvar-lhes (ultrapassar-lhes) a compostura (dignidade).



Não fuga à vida, mas preparação para a morte.

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(*)

Soneto 94

Eles que podem magoar, mas não, / não fazem coisas neles evidentes, / que movem outros e em si mesmos são / de pedra, imóveis, frios, reticentes, / herdam graças do céu, poupam primores / da Natura a desgaste e decadência, / de suas faces donos e senhores. / Outros são servos só dessa excelência. / Embora para si viva e pereça, / a flor do verão ao verão traz a doçura, / mas basta que se infecte e adoeça, / vil erva vai turvar-lhe a compostura. / Se há feitos que os mais doces mais azedem, / os lírios podres mais que as ervas fedem.



“Sonetos Completos de William Shakespeare”. Tradução de Vasco Graça Moura

sábado, 19 de junho de 2010

COOL MEMORIES

Baudrillard escreve nos anos 80 um livro em forma de diário chamado Cool Memories. Traduzo da tradução em espanhol:



“Cada pensamento é o último, cada anotação o traço do final, cada idéia não faz mais do que aparecer e desaparecer, igualmente a este planeta feito de auroras e crepúsculos sucessivos. Múltiplas parcelas de uma continuidade hipotética que não existe e que só se pode recuperar em filigrana, depois da morte.”



Para que uma idéia não cintile e desapareça no ar, é preciso que ela seja retida. Cada pensamento é o último. O escritor tem a consciência vívida da morte e que suas idéias comporão no futuro o retrato, máscara mortuária múltipla de si mesmo, dos seus muitos “eus”.

“TAL QUAL” – PAUL VALÉRY (TRADUÇÃO)*

*Tradução Lauro Marques. Em luto pela morte de Saramago
Extraído de “TAL QUAL” – PAUL VALÉRY



Literatura

A obra e sua duração



Todo grande homem entretém a ilusão que poderá prescrever alguma coisa ao futuro; é o que chamamos durar.



Mas o tempo é um rebelde, – e se alguém parece lhe resistir, se uma obra conserva-se à tona e flutua e não é propriamente deglutida – veremos sempre que é uma obra muito diferente daquela que seu autor acreditou ter deixado.



A obra dura na medida em que é capaz de parecer completamente diferente do que seu autor a havia realizado.



Ela dura por se haver transformado, e porque era capaz de mil transformações e interpretações.



Ou melhor, porque ela comporta uma qualidade independente de seu autor, não criada por ele, mas por sua época ou nação, e a qual adquire valor pela mudança de época ou nação.”

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Paludes

29.1.05 ÍNDICE DAS FRASES MAIS NOTÁVEIS DE PALUDES, DE ANDRÉ GIDE

Pág. 11 ― Disse: Ah! você está trabalhando?

Pág. 107 ― Precisamos carregar até o fim todas as idéias que suscitamos.

Pág. 28 ― Bom para Paludes.

Pág. (*)
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(*) Para respeitar a idiossincrasia de cada um, deixamos a cada leitor a tarefa de completar esta página.

sábado, 29 de agosto de 2009

O antiblogger?

Escrever somente quando necessário.

Como Paul Valéry, que acordava no meio da noite assaltado pela urgência de uma frase ou pensamento e assim preencheu cadernos e mais cadernos absolutamente desnecessários. E aqui me contradigo, pois, em literatura, como na vida, como saber quando e o que é de fato necessário?

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"Poste-escrito": sobre isso e sobre a "necessidade do sentimento", ler (valeria a pena meditar?) minha tradução do texto Pequeno Café, de Valéry.

domingo, 26 de abril de 2009

O filho eterno


Em O Filho Eterno, de Cristovão Tezza, não há tanta crueldade, ao contrário do que afirma o crítico da Veja, cujo comentário vem estampado na contracapa do premiado livro do escritor nascido em Lages-SC. Não dá para equipará-lo a Céline ou Onetti, nesse quesito, por exemplo. Talvez porque os personagens do livro sejam reais - principalmente seu filho, alvo da "crueldade" por ser portador da síndrome de Down, que ele não se reprime às vezes de qualificar como 'idiota", para em seguida demonstrar uma infinita paciência (eu não diria "compreensão", mais uma tolerância diante do inevitável). O que o crítico da Veja queria era quem sabe um outro "Marley e eu". E o romance (no que até onde hoje em dia se chama de romance) não oferece nenhum guia de auto-ajuda. Ele está tão perdido quanto nós. É um escritor, e isso basta. Em alguns momentos me lembra um John Fante, tentando ir em frente com seus escritos e hesitante diante da acolhida que têm. O Brasil, a dificuldade de se viver num país como o nosso, aparece como pano de fundo, nas lembranças do autor. Imigração e trabalho subalterno no exterior, a casa comprada com juros extorsivos embutidos num plano picareta do Governo, o medo diante da polícia, que dariam um segundo romance. O livro termina em um ponto que poderia ter sido outro qualquer. A ficção imita ou antes acompanha a vida dele e seu filho, impedido de chegar à idade adulta (que o pai, como ele próprio faz questão de sublinhar, por sua vez, reluta em alcançar) , daí o "eterno" do título.