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quinta-feira, 4 de agosto de 2011

DEZ MANEIRAS DE SE ENTRAR NUMA CASA


Em uma das dez (ou quiçá 12, mas só direi das dez) realidades possíveis, ele atravessou o jardim, sentindo o cheiro perfumado da noite, e foi abatido - assim que o seu pé direito tocou no batente da porta - por um tiro de espingarda, vindo da janela de cima. Numa segunda realidade, um cão da raça fila, enorme e negro, ficou observando-o, parado, por cerca de dois minutos, até que, num único salto, estraçalhou sua jugular. Numa terceira possibilidade, quando terminou de pular o muro, escutou três vezes o pio de uma coruja e tomou isso como um mau agouro, dando meia-volta e escalando para fora, de novo, o muro. Numa quarta e hipotética possibilidade, o celular tocou, quando estava para pular o muro da casa; era sua mãe e ele havia esquecido de desejar-lhe parabéns pelos 70 anos. Numa quinta hipótese, o alarme disparou e ele foi pego em seguida, após uma perseguição, no terceiro quarteirão. Numa sexta, colocou a mão no bolso e havia esquecido a arma. Numa sétima, estava sem bala. Numa oitava, escorregou e caiu, quebrando a clavícula. Quando acordou, alguém chutava-lhe a cara. Numa nona, ele teve que matar toda a família. Numa décima, a porta estava aberta, não havia ninguém em casa, as luzes todas acesas, o cofre vazio e, quando saiu, foi recebido a tiros pela polícia.

domingo, 19 de setembro de 2010

Mário de Sá-Carneiro: Impressões domingueiras


Leio Mário de Sá-Carneiro no domingo meio nublado, no parque da Água Branca. Um parque meio pobre e mal-cuidado, em reformas, com aves simplórias ciscando em meio aos pombos (que ao meu ver nem aves são), galinhas, galos e pavões. Paus-brasis dos mais altos que já vi -antes só conhecia mudas-, que me pareceram muito estranhos, e um resto de vegetação que para nós, citadinos, já nos basta para nos sentirmos em meio ao mato. Uma surpresa. Há quiosques com livros que você pode pegar e ler, depois devolver, sem ninguém para dar por isso. Um quiosque com livros de poesia! Poucos, uns 20 talvez, mas todos bons (lembro que vi Rimbaud, Lautréamont, Haroldo de Campos, Célan, José Paulo Paes), outro de literatura em geral. Fui lá no de poesia e peguei o Mário de Sá. Há mesas de leitura, como as de um restaurante, só que sem garçons, e quando fui lá estavam vazias. Uma musiquinha tocava ao fundo, uma canção infantil. Eu já o tinha lido, claro, mas naquele parque lúgubre, num domingo, após ter passado em frente a um baile da terceira idade, que ocorria a poucos metros ali mesmo dentro do parque, onde pairava um estranho desânimo, um “além-tédio" (1) de tudo -para um parque, com crianças!-, a sensação foi amplificada.

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Acrescento algo totalmente desnecessário a essa minha nota igualmente desnecessária, que não tem muito a ver com Sá-Carneiro mas com o "estado de ânimo" do parque naquele dia. O tal baile da terceiridade era uma das "atrações", comparável aos brinquedos para as crianças e os animais soltos, para os que de fora observávamos os velhinhos a entrar na casa - de onde saía uma animada música, contrastando com as figurinhas trêmulas que, rapidamente, e sem trocar muitas palavras, a espinha dobrada, entregavam determinada quantia ao homem, também de idade, usando um chapéu preto e camisa social, que fazia às vezes de porteiro e bilheteiro. Como a casa ficava numa parte baixa, as pessoas na parte alta do caminho que passava ao lado do salão de baile, paravam para olhar, algumas empurrando carrinhos de bebês, em roupas de "jogging", ou casais de meia-idade, por um momento sinceramente enternecidos com as imagens do passado (que para nós seria mais certo dizer futuro, mas que vemos como pertencentes a um tempo passado). Escutei uma garotinha dizer: "mas deve ser necessário ter uma certa idade", entre desejosa e precavida, de participar da "festa", que, como tudo mais no parque, tinha a aura de espectro.

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(1) - nome de um poema de MSC.

Nada me expira já, nada me vive ---/ Nem a tristeza nem as horas belas. /De as não ter e de nunca vir a tê-las, /Fartam-me até as coisas que não tive. //Como eu quisera, enfim de alma esquecida, /Dormir em paz num leito de hospital.../ Cansei dentro de mim, cansei a vida/ De tanto a divagar em luz irreal. //Outrora imaginei escalar os céus/ À força de ambição e nostalgia,/ E doente-de-Novo, fui-me Deus/ No grande rastro fulvo que me ardia.// Parti. Mas logo regressei à dor, /Pois tudo me ruiu.../ Tudo era igual: A quimera, cingida, era real,/ A própria maravilha tinha cor!// Ecoando-me em silêncio, a noite escura/ Baixou-me assim na queda sem remédio;/ Eu próprio me traguei na profundura,/ Me sequei todo, endureci de tédio.// E só me resta hoje uma alegria:/ É que, de tão iguais e tão vazios, /Os instantes me esvoam dia a dia/ Cada vez mais velozes, mais esguios...

Ver também o poema "Dispersão".

domingo, 5 de setembro de 2010

Há pouco, velozmente, no Metrô

Traffic, de riczribeiro

Desfizemos nossas roupas e saímos nós, vestidos de noite. Há pouco, velozmente, no Metrô, estáticos, espalhamos átomos pelo mundo afora. Um hálito quente, a língua úmida, a queimar-lhes a nuca. Dois velhos de boinas, conversam contentes, segurando livros. Uma moçoila, com ares de estudante, também de boina, quase que “posa”. Uma velha gorda com a sacola de supermercado, distraída, pensa (?). Somos todos desesperados... Somos todos... desesperados... E a mulher bela, na propaganda de desodorante, sorri. Enquanto isso, eu, no canto contrário, sentado, componho o poema com o olho, pois sei que, no momento seguinte, esquecerei tudo.

NOTAS À MARGEM

LER É VIVER


Minhocão, foto de Daniel Mitsuo


A frase em letras garrafais, numa faixa, sobre a porta de um pequeno sebo, surpreendeu-me da janela do ônibus, enquanto passava embaixo do elevado Costa e Silva, mais conhecido como minhocão, uma das sete desgraças do mundo contemporâneo (não há as sete maravilhas do mundo antigo? Eu proponho uma lista alternativa que seja encabeçada pelo minhocão).



Quer frase mais “Pessoana” do que essa? Ler é viver. E portanto, a maioria da população brasileira não vive, pois não lê. Não sei se quem pôs a faixa estava inteiramente consciente da crítica feroz que fazia à ignorância dos que, como eu, por ali cruzavam a rua, cumpridores da rotina diária, ruidosos ou em silêncio, a caminho de mais um dia na metrópole paulistana.





DIGNIDADE



Parei hoje para cumprimentar o vigilante que toma conta do prédio onde trabalho. Ele estava polindo as botas, sentado à cadeira do engraxate, que faz ponto na praça em frente do prédio. Fui dizer, apenas para ser simpático e ter algo para dizer, que eu também iria engraxar meus sapatos, um dia desses. Então ele me responde afirmando: “Já que vamos sair amanhã, resolvemos engraxar as botas”.



Confesso que de início não compreendi, o plural majestoso confundiu-me. Imaginei que ele, vaidoso, certamente planejava dar uma volta à noite, ou sair para uma festa ou quem sabe talvez um bar, após o trabalho, e queria por isso ver suas botas brilhando.



Como eu não havia entendido bem, fiquei surpreso quando ele me disse em seguida que este seria o seu último dia naquele emprego. Falei qualquer coisa para reanimá-lo e fui-me embora, sorrindo. Só agora, já em casa, quando tomo para mim mesmo essas notas solitárias, é que pude compreender a verdadeira dimensão do que ocorrera.



Ele chegara ao fim do contrato temporário de serviço como vigilante e o ato de polir as botas era uma maneira de demonstrar para si mesmo que ele era superior à sua própria desgraça. (Se as devolveu ou não, como imagino ser praxe nesses casos, é um mero detalhe que não afeta em nada a minha imaginação de sua superioridade).



Tinha razão portanto o plural majestoso, carregado de dignidade, daquele homem, que eu, para minha vergonha, na minha simplicidade, não pude perceber de imediato.

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Filme em preto e branco

Chove há quatro dias consecutivos na cidade, que respira aliviada depois de um período prolongado de muita estiagem e secura. Mas não é uma chuva intensa, maciça, e sim chega a ser delicada, porém insistente, generosa, ininterrupta, mas sem ser excessiva, cobrindo a cidade e os habitantes com uma camada líquida que deita e literalmente rola pelos ombros dos homens e pelas ruas acidentadas, ladeira abaixo, formando verdadeiras cascatas e rios nos asfaltos e paralelepípedos, correndo por entre carros e homens ― e não parando nem para um nem outro.

Há um trilha sonora intensa e maravilhosa que sufoca os barulhos dos carros e quase que muda se faz ouvir surpreendentemente por cima dos ruídos. Os movimentos dos passantes se tornam lentos e algumas vezes incômodos, como que convidando à reflexão. Diferentemente dos dias ensolarados, em que cada um vai para aonde quiser, na hora que bem entender, a passos rápidos, esportistas, aqui vemos os guarda-chuvas se abrirem e se fecharem formando verdadeiros círculos de veículos separados, isolando seus condutores em cabines únicas, na maioria de cor preta, individualizadas.

O dia inteiro pouco se viu de luz. Embora não estivesse tão escuro a ponto de se acenderem as lâmpadas dos postes, como sói ocorrer às vezes, quando somos pegos de surpresa e quase sempre nos causa uma sensação desagradável de angústia de não saber as horas nem onde estamos. Havia luz, mas filtrada pelas nuvens e pela poluição, chegava aqui em baixo esmaecida e opaca, só tornando o concreto ainda mais feio e cinza, como num filme em preto e branco, feito intencionalmente dessas cores, ao qual assistimos mornamente, com um misto de interesse e tédio, apenas para num determinado momento espetacular de epifania nos depararmos com o conhecimento de que é para nós a nossa própria vida.

Anywhere out of the world!



― É melhor você aparar os pelos do nariz antes de falar com o capitão ― disse George.

Marcelo não via nenhuma razão naquilo. Em que diabos poderia isso afinal afetar serem aceitos ou não?

George mostrou o recorte de jornal: Navio de bandeira holandesa contrata tripulação por período determinado. Destino: Porto de Roterdã, com paradas em África e Europa. Requisitos: ser maior de idade e gozar de boa saúde física além de disposição para trabalhar no mar. Diversos postos e renumeração equivalente. Procurar o capitão do navio no porto da cidade.

Por via das dúvidas, Marcelo apanhou a tesourinha que lhe ofereceu George e enquanto mirava-se no espelho do banheiro ouvia George na cozinha preparando um lanche. George morava sozinho e tentava impressionar Marcelo com sua independência. A mãe cozinhava e mandava a comida para ele em tupperwares que eram consumidos semanalmente. Também semanalmente as roupas voltavam limpas e passadas a ferro. Marcelo nunca tinha preparado nem o café. George cortou uma salsicha em dois e jogou junto com a manteiga na frigideira fazendo subir um cheiro agradável.

Com as narinas aparadas, Marcelo sentou-se no sofá. Escutava um CD de uma coletânea de músicas de Eduardo Duzek. George chegou com a vitamina de leite com toddy e banana e o sanduíche que ambos repartiram.

― Tem essa passagem pela África ― lembrou Marcelo, um pouco sério, enquanto dava a primeira mordida no pão.

― Moleza ― disse George. ― Depois, velho mundo, meu chapa! Na primeira chance a gente desce e chispa... Vamos fumar maconha em Amsterdã!

Os dois eram magros, haviam acabado de entrar na idade adulta, brancos e esticados. George usava óculos e andava sempre com uma carteira de cigarros no bolso. Os dois eram companheiros de porres. Nenhum dos dois nadava.

― Eu sei que tem vaga na cozinha. Por isso falei para cortar o pelo. Higiene, cara, é fundamental ― falava George, o “rei da culinária” e da higiene.

Aquele era o dia que os dois iriam juntos até o porto. Marcelo achava que oportunidades assim só aconteciam em filmes, nunca na vida real. Já se via suando no porão do navio ou lavando o convés ou esticando cordas. (Não sabia bem porque, mas ele achava que o trabalho num navio deveria envolver, em algum momento, inevitavelmente, esticar cordas. Ainda que ele não tivesse a menor idéia do que afinal isso significava.) Ele tinha lido Kerouac e Hemingway e Baudelaire e Rimbaud. E todos falavam em fuga, todos concordavam que partir era a melhor, senão a única, solução. Anywhere out of the world! “― Seja onde for! Contanto que seja fora desse mundo”, não era o que diziam Baudelaire e os românticos?

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

NO PASA NADA

A casa era uma combinação de vidro e concreto, com linhas retas, e uma sala com portas de vidro que terminava num quintal também de concreto com piscina. Lembrava uma pintura de David Hockney, com alguma coisa de decadente. Ervas daninhas cresciam no canteiro ao lado da piscina, cujo fundo estava bastante escurecido. Uma pequena ponte de madeira com os pregos saltando se equilibrava ou jazia ali no meio, com uma espreguiçadeira de plástico branco displicentemente colocada em cima.

Estava para ser vendida para uma empreiteira que iria demoli-la e construir um prédio de sabe-se lá quantos andares. Ficava numa posição elevada de onde se podia enxergar o horizonte recortado de edifícios cinzas longínquos e algumas poucas edificações mais próximas. Essas pareciam encenar um teatro diário do cotidiano, de formigas humanas movimentando-se, piscando, apagando e acendendo as luzes. Formas de vida como de outro planeta que, a não ser por isso, jamais entrariam em contato.

"Lembrava uma pintura de David Hockney, com alguma coisa de decadente."

Havia lido que cerca de 35 mil litros de esgoto eram despejados por segundo no rio que passava a alguns quilômetros dali. De vez em quando se podia sentir o cheiro pútrido que se levantava de outro rio ou esgoto mais perto. Podreira da cidade podre que apodrecia. Mas não pensava nisso enquanto observava o céu sentado enquanto bebericava vinho e tomava notas. Ele estava empenhado em acompanhar as evoluções e mudanças no espaço aéreo à sua frente como se fossem o resultado da mistura de cores da paleta do pintor mais enlouquecido, acometido de um excesso de melancolia, e esforçava-se para captá-las através da escrita.

Inutilmente, lia para si mesmo, não sem consternação, o resultado pífio em que comparava a lua nova, quando o céu “turvando-se e multiplicando-se em angustiantes profundidades púrpuras e azuis”, vinha “negar-lhe o esplendor”, aos olhos convulsivos (era o que representava para ele naquele momento) das vítimas do acidente ocorrido há poucos dias no Metrô ― cinco passageiros de um microônibus, além de dois pedestres, tragados por desmoronamento de uma cratera aberta nas obras às margens daquele rio fedorento.

Lembrou-se de sexta-feira, quando descera na estação Klabin e, sonolento, caminhara alguns metros. Os pulmões ardendo da poluição às 8 da manhã. (Respirar aqui equivale a fumar dois cigarros por dia, ele estava por dentro das estatísticas). Pensou na cidade, que envelhecia a passos rápidos. 453 anos de invasão jesuíta tinham dado nisso. Olhou os pombos importados da Europa arrastando-se doentes de tão gordos. Eles raspam o tacho da sarjeta. Um casal meio tonto em roupa de jogging passou por ele cambaleante. Vieram “carbonizar” um pouco, pensou. Sintonizou o rádio do celular num rock and roll e rolou em frente.

Súbito, levantou-se, tentando espantar a borboleta negra que zumbia acima de sua cabeça, endoidecida pela luz da lâmpada elétrica. Ei-la repousada agora na parede, não mais uma borboleta e sim uma barata imensa e com asas. Correu para dentro da casa em busca do veneno e voltou com dois sprays de marcas diferentes. No meio tempo, a miserável havia sumido. Um dia depois teve a impressão de ver seu cadáver boiando na piscina e vê-lo em seguida desaparecer entre o bico do pássaro gordo de barriga amarela e rosto mascarado que vigiava aquelas águas de cima da árvore-arbusto que se elevava bem mais de cinco metros do muro e projetava sua sombra, deixando cair as florações e folhas mortas que ficavam por ali boiando.

No topo da árvore ele já havia divisado mais de uma vez um casal de periquitos, que faziam um barulho infernal ao cair da tarde, de modo que se podia dizer que ali ele estava de fato numa reserva ecológica. O terraço era um lugar misterioso. Diga-se de passagem que um certo dia um mamoeiro havia brotado ali, no meio do concreto, sem que ninguém soubesse como. Essa árvore milagrosa, que ficava cada vez mais alta, dava pequenos mamõezinhos doces que eram devidamente estraçalhados pelos pássaros que vinham em bandos, avisados uns pelos outros, por seus gritos frenéticos, para a refeição.

Inutilmente, lia para si mesmo (...) o resultado pífio em que comparava a lua nova (...) aos olhos convulsivos (...) das vítimas do acidente ocorrido há poucos dias no Metrô”. 

Sempre admirara os pássaros, à exceção dos pombos, “ratos com asas”, na sua opinião, na mesma medida que detestava os cães. É preciso dizer que na casa havia dois. Ambos de nomes ridículos e humanizados. Um no entanto, já havia morrido. O outro, podia ser adorável de vez em quando, mas ainda assim era um cachorro, i.e., estorvo. Eles usavam o capim ao lado da piscina para fazer suas necessidades. Liberdades que lhes permitiam a dona da casa, assim como a ele, outras tantas.

Ele gostava muito mais dela do que da casa, que às vezes lhe parecia uma prisão com algumas regalias especiais. Ouviu sua voz chamando-o por cima do ombro, virou-se e pode mirá-la contra uma luz fraca, vinda do interior, a cabeleira loura destacando-se no fundo negro em que flutuavam alguns insetos. Olhou-o com um sorriso de quem gostaria de saber o que estava se passando ali naquele intervalo de tempo em que ele ficara quieto, apenas observando, enquanto começava a esfriar. Respondeu também mentalmente com um sorriso em castelhano de no pasa nada, efeito de uma imersão rápida naquele vinho espanhol chamado Memorandum. Quando seu pé tocou na precária ponte de madeira, a construção inteira desabou fazendo Tchibum.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Recordações em vermelho, preto e branco


Eu escutava, no escuro da garagem, o rádio do fusca estacionado (um fusca lamentavelmente verde-abacate), em Mossoró, anos oitenta, interior do Rio Grande do Norte. Sentado no banco da frente, no lado do condutor, só a luz interna acesa, enquanto brincava com a direção do carro, a porta meio aberta, ouvia o locutor declamar “GOOOOOOOOOOOL” ― vibrava ― “DOOOO FLAAAMEEENGOOOO!!!... Ao redor, o silêncio da noite estrelada e quente mossoroense, a rua sem carros e sem asfalto, visível pelas frestas das grades do portão branco de ferro que separava a rua da casa, onde, de vez em quando, eu jogava bola até ficar tarde e minha mãe me chamar para dentro.

Mas a maioria dos meus jogos se passava de casa para dentro. Nos jogos solitários que inventava, como o “futebol de mão”, em que, usando uma bola de gude e duas traves improvisadas em cima da mesa, uma mão jogava contra a outra (havia muitos empates). Ou o “futebol de parede”, que consistia em chutar a bola com força contra a parede da garagem e rebater sem dar dois toques e nas poucas vezes que jogava com meu irmão mais novo (que, no entanto, preferia a leitura dos romances de Stendhal ao nobre esporte inglês).

Eu morava a poucos passos do estádio de futebol, o “Nogueirão”, um campinho de terra amarronzada e uma árvore solitária pouco frondosa separavam minha casa do local onde ocorria, a intervalos sucessivos, o clássico Potiguar versus Baraúnas ― eu nunca tinha entrado lá. Só uma vez, em 1985, quando tinha 14 anos, meu pai me levou para assistir ao jogo amistoso do Flamengo contra o Baraúnas. Os jogadores do Fla com o uniforme branco, o que eu mais gostava, com o qual a equipe conquistou o campeonato mundial de interclubes, em 1981. Era o grupo de Zico, Adílio, Júnior, Tita, Leandro, Andrade, Raul... O melhor time que o Flamengo já montou e que colecionou vitórias naquela década.

Os jogadores do Baraúnas iam a pé ou de bicicleta treinar ― daquelas bicicletas Monark barra-forte, de pedreiro. Um time que nunca havia ganhado nenhum título fora de casa, surgido inicialmente como bloco carnavalesco, cujo nome foi inspirado no cacique “Baraúnas”, líder da tribo Monxorós, que habitava a região. (Como, aliás, está dito no hino do clube, o qual, obviamente, eu nunca havia escutado: “Baraúnas, tu és origem / Da história que fez tradição. / Foste chefe, na mata virgem, / De uma tribo desta região...”).

É claro, na época, eu não pensava que nada disso fosse contraditório. Na verdade eu (ou era meu pai) odiava Mossoró. Torcer contra o time da cidade era perfeitamente razoável. Eu mesmo não havia telefonado uma vez, a pedido do meu pai, para uma emissora, num programa de rádio que denunciava as mazelas da cidade e dito a frase: “Agora desminta a Folha de São Paulo!”? Tudo por causa de uma matéria publicada naquele jornal que havia revoltado o município. Falava, entre outras coisas, das bicicletas (na ocasião, o número desses veículos por habitante em Mossoró era comparável ao da China) e das carroças disputando lugar com os carros. Eu havia depois desligado, deixando atônito e enraivecido no outro lado da linha o apresentador, que ainda tentou retrucar, deixando solto um início de resposta, evidentemente não ouvido, “Nós...” e depois falou disso ao vivo no programa ido ao ar em seguida.

Aqui cabe uma explicação. Meu pai e a família dele eram paraibanos, e ele havia se mudado a contragosto para Mossoró. A cidade era extraordinariamente quente e seca ― apesar das praias a pouco mais de 40 km, para onde nós, sem que eu encontre agora nenhuma explicação além da que irei dar a seguir, não íamos nunca. Meu pai detestava praia, gostava das serras paraibanas, onde havia se criado, e era capaz de dirigir um dia inteiro (com um braço quebrado e engessado, como ele havia feito uma vez levando a mulher e os filhos) para chegar à Paraíba. Na casa dos avôs, meus quinze tios viviam em pé de guerra, porque uns eram vascaínos, outros botafoguenses e outros, ainda, eram flamenguistas “doentes” como meu pai e eu.

Meu pai me punha na frente da TV vestido com o uniforme do Flamengo, todos os cinco filhos, na verdade, inclusive as duas meninas, uniformizados em frente à TV. E quando não passava o jogo do Flamengo, a salvação era o rádio. Aliás, ele desligava o som da televisão porque não suportava os comentaristas e ligava o rádio, cujos profissionais eram muito mais competentes e informados, segundo ele. No rádio, uma jogada que parecia completamente sem graça virava um momento emocionante, todos os momentos eram culminantes na narração e quando a jogada acabava, entrava o locutor anunciando a hora ou um reclame do Ponto Frio Bonzão (um nome que me fazia pensar não no Rio de Janeiro, mas num lugar gelado e tão distante de Mossoró quanto a Lua, como o Pólo Norte) e outras lojas que eu não conhecia.

O Nogueirão era palco, também, quando não tinha jogo, de torneios de bingo (para cada dezena sorteada, o locutor anunciava: “Núuuumero dez!”. Ou vinte, trinta etc. E acrescentava à frase um “De rombo!” para indicar, talvez para quebrar a rotina monótona dos jogos de bingo, que o número proclamado continha um zero)... E corrida de jegue. Eu gostaria que meu pai tivesse me levado pelo menos uma vez a uma daquelas sensacionais corridas de jegue. Eu só havia escutado a música tocando nos alto-falantes, que continha uma lição jamais esquecida (recordo até hoje): “O burro é quem merece uma medalha/ O burro é quem trabalha/ O burro é quem dá duro...”. E foi então que Zico e companhia, com seu uniforme branco no qual havia bordado, acima do peito, orgulhosamente, uma estrela amarela de campeões do mundo na final contra o time do Liverpool, em Tóquio, pisaram o mesmo gramado que os jegues já haviam adubado tantas outras vezes.

Vinte e três anos depois e me esforço para recordar como foi a partida. Em vão. Só me lembro dos uniformes brancos, de como gostei de estar no estádio com meu pai, torcendo pelo Flamengo, na arquibancada, e do formato redondo do estádio de cimento armado. Lembro que, comparado à proximidade dos “closes” da televisão, os jogadores pareciam pequenos de onde eles estavam.
Lembro de ter olhado para fora do muro e visto minha casa, onde ficaram minha mãe e meus irmãos. Da noite cálida e do campo verde ― não sabia que era tão verde, ou será que imagino agora que era tão verde? ―, dos mosquitos ao redor das torres de iluminação ― e imediatamente me recordo da vez em que uma coruja se perdeu e veio cair tonta no quintal de minha casa, por causa das luzes do estádio de futebol.

Lembro que estranhei a falta de “replay” nos gols, de meu pai e eu vestidos com a camisa do time rubro-negro (em nenhum momento pensei que fosse um time “carioca”). Meu pai com um radinho, que ele tanto gostava, de alça e botão seletor para mudar de estação. A sensação que tenho é de uma nostalgia silenciosa, de volta ao passado, com todas as sensações tácteis e visuais, mas nenhuma lembrança fixa, nem auditiva ou olfativa, um mergulho com bolhas numa piscina de água muito quente e muito funda.

Sim, havia outros flamenguistas, uma horda estranha como eram eu e meu pai, e vieram de todas as partes, de seus lares também silenciosos, naquele dia no estádio, mas eu não os conhecia e não fiz nenhum contato com eles, nem o meu pai. O que minha memória reteve foi um espaço vago e teatralmente iluminado na arquibancada, ocupado por meu pai e eu somente.

O que lembro, como se fosse hoje, é do verde do campo de futebol, do branco com listras em vermelho e preto do uniforme do Flamengo, da sensação térmica de calor envolvendo todos, onde talvez soprasse de vez em quando uma brisa noturna vinda daquelas praias afastadas e dos insetos em volta das luzes das torres do estádio, confundindo as aves noturnas.

sábado, 15 de novembro de 2008

A morte exata do crítico medidor

Em seu escritório atapetado, cercado de livros por todos os lados, o crítico avaliava, com régua métrica, calibrada pelo Instituto Nacional de Metrologia, quantos centímetros de espessura possuía o texto do escritor X ou Y. Era seu lazer e sua vocação, para a qual havia dedicado grande parte de sua vida e carreira, ambas devotadas integralmente às letras.

Por escolha própria não havia contraído nenhum matrimônio, nem tido filho. Evitava mesmo a todo custo o contato com outras pessoas. A não ser os fortuitos e de breve permanência. A crítica literária era sua única e verdadeira paixão. Havia nascido para isso, para ser crítico. E era o que exercia com afinco, na sua solidão de celibatário aplicado, até mesmo nos piores momentos de sua vida, nem sempre alegre.

Havia começado seu trabalho de medição da escritura do texto dos autores com uma medida em palmos, mas, aos poucos, com sua fama crescente e na proporção em que se avolumavam os pedidos que lhe chegavam de todas as partes do globo, havia abandonado esse padrão, já há muito ultrapassado, em favor de um mais pertinente ao sistema métrico vigente.

O nível máximo de escritura que algum autor já havia alcançando na sua rígida escala pessoal havia sido de 40 centímetros ―e o mínimo, em torno de ¼ de um palmo, cinco centímetros. Era um crítico diligente e tenaz e vivia, literalmente, afundando-se em livros e leituras.

Nos últimos dias de sua vida, estivera a ponto de desenvolver um novo método revolucionário, que iria lhe permitir medir, além da espessura, também a massa ou ―dito em outras palavras,― o peso da escritura de determinado autor.

Para isso já havia feito diversos testes, com balanças de todos os tipos, analógicas e digitais, nacionais e importadas, chegando a delinear um projeto de um protótipo especialmente adaptado às suas exigências, desenhado por ele próprio, para o qual, entretanto, infelizmente ficaram faltando muitos desenvolvimentos que permaneceram inconclusos.

Sua estante, como alguém poderia esperar, era abastecida com uma multiplicidade sem fim de livros, que cresciam numa torrente até o pé-direito do escritório que chegava à altura máxima de sete metros. Aos mais espessos e pesados, assim medidos por ele, dedicava um lugar de honra no topo da estante, que estava ficando para lá de abarrotada.

Foi vítima de um acidente inusitado e infeliz, porém, conseqüente com sua atividade literária, enquanto cochilava sobre uma pilha de livros recém-medidos, o pescoço molemente apoiado sobre o último da pilha, quase que se oferecendo inconscientemente ao sacrifício. Num momento e zás! A estante inteira veio a desabar em cima dele, causando-lhe morte súbita por esmagamento e quebra do pescoço.

Hoje se encontra enterrado sob sete palmos de terra. De vez em quando, algum autor timidamente iniciante, sedento de julgamento, ainda vem depositar algum livro que acabou de dar à luz sobre sua lápide, por uma crença que ficou difundida principalmente entre os escritores mais jovens. Na vã esperança de que, do além onde se encontra, o nosso crítico possa ler e declarar a sua apreciação, a respeito da medida exata de sua escritura.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

A performance

Pedro e Marta haviam combinado de irem juntos à abertura, cercada de mistério, da instalação do artista que estava causando sensação naquele momento na cidade. Mas Pedro tivera um problema no trabalho àquela tarde e chegara muito atrasado ao casarão transformado em galeria e local para exposições e performances como aquela. Chovia e ele procurou em vão Marta na pequena multidão que deixava o local às pressas, molhada e espavorida. Como não a encontrou, resolveu juntar-se ao segundo grupo que já se formava na fila de entrada.

O casarão ficava numa parte elevada e tinha uma construção bizarra por causa do terreno desnivelado. Antes de chegar à porta principal passava-se por uma piscina ladeada por paredes altas, localizada na parte abaixo do casarão, e um muro lateral por onde subia uma escada de degraus largos, cercada de jardins.

Passando pela porta, chegava-se às muitas salas. Um recepcionista mudo entregou o programa a que se deveria assistir. Setas e placas apontavam a direção. O programa dividia-se em duas partes. Na primeira, em uma sala de cinema especialmente preparada era projetado um documentário fictício em preto-e-branco sobre vítimas da ditadura em um país latino-americano. Nos dois lados da sala havia máquinas, em torno de dez, metade em cada lado, que Pedro notou serem imitações de aparelhos mata-moscas eletrônicos de luz negra, que no início da sessão permaneciam apagados.

No final do filmete, falado em espanhol e português, que durou 15 minutos, os personagens principais reapareciam na tela e os que haviam sido torturados até à morte diziam seus nomes e iam lentamente desaparecendo da tela, quando, para cada menção, se acendia o mata-moscas fazendo o barulho característico de eletrocussão e um cheiro de carne queimada era exalado.

Em seguida, ia-se a outra sala onde um outro filme mostrava o próprio artista caracterizado de Little Richard cantando acompanhado por uma banda de músicos vestidos como gângsteres. No meio do show, a apresentação era interrompida e em seu lugar eram exibidas imagens do lado de fora. As imagens focavam as pessoas que tinham saído da sessão anterior deixando o local apressadamente, ao som de uma música marcial, descendo os degraus da escada atabalhoadamente, alguns corriam.




Canhões laser disparavam finos feixes de luz vermelha sobre as pessoas. Os feixes de laser eram seguidos de sons que imitavam balas sendo disparadas e barulhos de detonação e pessoas gritando. No meio daquela confusão, Pedro pôde distinguir Marta, num momento em que quase caiu e olhou para trás, a câmera aproximou seu rosto num close.

Por fim, as luzes se acenderam, a música terminou e era a vez dos que tinham assistido ao filme sair para a rua. Pedro tentou ligar para Marta, mas do outro lado do celular ninguém atendeu a ligação.

Chovia mais forte quando ele deixou o casarão, o que tornou a “escapada” ainda mais dramática. Pedro abriu o guarda-chuva preto iluminado por fora pelo canhão de luz vermelha em meio aos estampidos, silvos e gritos e forçou a passagem pelo grupo que ia mais à frente.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Bárbara e eu









(sinopse para um conto ou relato breve)




Nada demais. Apenas o fel e o mel do cotidiano. Nossos lençóis sendo dobrados pela manhã, marcando a alternância entre dia e noite. Suas saídas para lugar nenhum e as minhas andanças pelo bairro vazio, o relógio que não temos, esquecido. Um pouco lavar as louças (eu), varrer a casa (Bárbara), escutar música e adormecer nos seus braços ou não. Ficar só. Ler um conto de Cortázar ou Sciascia. Lembrar nosso mergulho na Ilha do Breu, nome sintomático, onde sintomaticamente desaparecemos do radar por dois dias seguidos. Bárbara sorri quando não chora. Fosse a vida um barco. Um mar calmo e nós dentro dele. “Pena que não é”, Bárbara sorri, quando não chora. E ali, esquecidos, os dias passam. Ali onde não estamos, Bárbara e eu. Apenas suspeitamos.

A bolsa de Bárbara. Signo da ausência de Bárbara. Seu nome ferino, sua natureza indômita. A história que me contou de como atravessou um túnel, a pé, na Sicília, para cortar caminho, no meio do campo, e seguiu junto à linha do trem, quando, durante a travessia, quase que morreu por alguns segundos. Teve que ficar colada contra a parede do túnel, na ponta dos pés, vendo o trem passar com toda a sua carga, lentamente, à sua frente, vagão por vagão, interminável e quente, e o apito se transformar em anos. “Saí do outro lado envelhecida”. E só por essa história já poderia amá-la.

Mas então novas brigas. Outro mergulho em outro breu, mais denso e viscoso e pútrido como sangue podre. Nossos conflitos infindáveis, o fel de que vos falei. Saio a levar para passear o cão de nossas rusgas, o que eu odeio, que mija e defeca pelas ruas e que de vez em quando me morde, furioso. Levo-o pela coleira apertada no pescoço, a saliva escorrendo pelo canto da boca, uiva. Eis que achei a imagem perfeita para as nossas desavenças, a de um cão sarnento, que levo para passear, e essa imagem me faz bem por alguns instantes. Paro para admirar um abacateiro, uma goiabeira que surge insuspeitada em meio à avenida. Puxo uma folha de amora e sopro entre os dentes, um assobio, e o cão vai embora. Bárbara sorri, quando não chora. E quando chora, o mundo inteiro desaba. E então ela fará tudo de novo outra vez, da mesma forma, e nós dois dando voltas em círculos como um relógio tonto. O gesto infantil do guri que relha e chora, quando lhe roubam a água do pocinho em frente ao oceano. Bárbara felimininamente sorri. O assobio da amora. Amarga. Arrasto o cão da angústia. O fel. E o mel. Morde os lábios. Chora. Bárbara.

Depois meiga, o rabinho balançando, as garras ainda compridas, a cabeça baixa a esconder a mandíbula portentosa, rostos femininos em monstros desde a pré-história, difícil resistir, nua crava a boca em meu peito, as unhas, sangrando, no rosto, seu colado no meu, o suor escorrendo de ambas as testas, rolamos agarrados um ao outro, num amplexo infernal, minha língua em sua língua, em suas costas, de lado, pernas, leoa, cabeleira loura, deitada, rugindo, o vôo dos pássaros, alma, nada, vazio, Deus, nada, abismos.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Diálogos - O encontro inadiável



― Desculpem interromper vossa conversa, senhores, mas tenho, neste exato momento, um encontro inadiável comigo mesmo!

Disse isso, deixando as palavras em suspenso, e partiu.

* * *

― Mas se não é o diabo em pessoa! Disse o amigo, vendo-o entrar pela porta do bar.

― Por favor, evite me chamar pelo meu nome verdadeiro! Sorriu, enquanto puxava uma cadeira e sentava.

― Que maus ventos o trazem de volta ao velho antro? Perguntou o amigo.

― Era exatamente o que eu estava me perguntando agora mesmo, quando saí do trabalho.

O bar chamava-se “El Chasco” e tinha sido freqüentado por ambos na juventude.

― Mas não imaginava encontrar com outra pessoa a não ser comigo mesmo!

― Vamos com calma a essa hora, que ainda estou na primeira tequilita, hombre!

Bueno.

Que dices?

Una tequila!

― E presto! Mas não perguntei, que bebes?

― Duas taças de vinho e uma boa refeição, como faziam os príncipes e não podiam os mendigos.

― Shakespeare?

― Ele também.

― Mas onde se enfiou aquele cagatintas do garçom?

O garçom se aproxima com uma bandeja, contendo dois copos e uma cerveja. Apesar de não ser exatamente um cagatintas, a palavra o impressionara.

― Ser ou não ser?

― Ser! Respondem em uníssono. O garçom enche seus copos com o líquido amarelo borbulhante.

― Não ser! Bebem de um gole.

O bar, um quadrado em forma de caixote, teto baixo, as paredes cobertas de caixas de ovo cinzas exalando a nicotina de vários cigarros antepassados, havia mudado de dono e de nome, para “El Cajón”. Ao centro da parede, pendia um quadro que parecia ter sido cuspido na tela, guache sobre cartolina, pelo autor: um rosto em forma de árvore ou uma árvore em forma de rosto, a psicologia da arte ainda não havia sido conclusória, de aspecto repulsivo e viscoso, lhes encarava.

― Esse cabrón continua aí.

― Sim, o trato foi que nada fosse removido.

― E “el gran cabrón”?

- Muerto, hace años. Um tiro pelas costas. Um fã de Warhol.

- Por supuesto.

Ao fundo, Herbie Hancock caprichava na melodia. Antigamente, eram os discos de rock, Tom Waits.

― Esse ainda toca. O dono gosta.

Pediram uma porção de pimentas, que mordiscaram sem prazer.

― Há coisas que só pioram com o tempo. De outro lado, temos a burrice (Nelson Rodrigues) e a música que são eternas.

― Na minha impressão, tudo melhora. Excetuando-se essas pimentas e a más memórias.

― Como as pimentas, não se pode simplesmente cuspir.

― Neste ponto, entra a tequila.

― Sim. Garçom!

* * *

Passaram-se minutos, talvez horas. O homem se levanta, assim como seu reflexo solitário, acompanhado pelo olhar complacente do garçom pelo espelho do bar, prestes a fechar. Estivera o tempo todo calado e pensativo e solitário olhando para o copo. Todo esse tempo não dissera uma só palavra, além do nome de umas três bebidas.