Sumário de incertezas, de Lauro Marques. Editora Confraria do Vento, R$ 19
Luciano Rosa *
Curioso (ou sintomático) o verso que abre o livro de estreia do poeta Lauro Marques: “Para mim basta”. O que soaria como senha de despedida ou indício do fim é, em "Sumário de incertezas" (Confraria do Vento), via de acesso a um universo lírico instigante, perturbador às vezes, desvelado no singular “passeio pelo paraíso ou/ Inferno/ de delícias” proposto ao leitor. Pórtico desse percurso, o poema “Intro” prenuncia o tom geral do livro: “O belo não me agrada mais”, “Entrego a ti as tuas fadas” e “Deixa-me morrer em paz/ Com meus demônios!” são versos que, articulados com a renúncia da linha inicial, sinalizam uma poética elaborada não com os artifícios consabidos e consagrados da beleza dúctil, de contornos harmoniosos, mas forjada a partir do material duro extraído do desamparo que intermedeia o contato do poeta com o mundo desolado que o abriga.
Desse embate surge uma poesia tangida por certa “alma em pânico”, a vagar por “entre prantos”, “panos sujos [e] pântanos”, “encharcada de tédio,/ que sofre muito para chegar/ num ponto qualquer”. No trajeto de quem “habituado [está] a pisar em espinhos”, a paisagem que se descortina, “à noite gris/ no meio de/ lugar nenhum”, pode ser “um descampado de natureza morta” ou “a paisagem ocre” sob “um céu sem vida”, em que “nuvens são nações de ódio”. “Nada é minha/ morada/ Tudo é só pó”, afirma o poeta em “Pária”, cujo último verso – “Nunca alcancei o outro lado” – bem simboliza a errância e a incompletude que frequentemente lhe orientam a pena.
Aparentemente infértil, tal cenário é altamente fecundo às incertezas que a poesia de Lauro Marques se propõe sumariar. “Com que tinta escreverei agora/ que o tinteiro esvaziou?/ Com a tinta da dúvida que/ essa não seca nunca!”, pergunta e sentencia o poeta em “Dúvida”. É com essa tinta perene que se grava o “impreciso canto,/ Nem formidável/ Nem novo”, mas inusitadamente belo, de Sumário de incertezas, cuja hesitação fundamental parece centrada na própria poesia e, por conseguinte, naquele que a traz à luz. Escrevendo “para poder escapar/ da mediocridade”, o poeta se questiona: “Mas, ai de mim, se o poema/ também resulta – medíocre?”. A consciência do risco essencial de seu ofício reaparece alegorizada num aforismo do general Bonaparte, mote do poema “Napoleão”: “Do sublime ao ridículo/ há apenas um passo”. Hábil em esquivar-se aos perigos dessa fronteira ínfima e oscilante, Marques manifesta notável capacidade de conjugar delicada sensibilidade com alta potência lírica, combinação que resulta em fulgurações poéticas de fina beleza. É o que se vê, por exemplo, em poemas como “Agora”, “Pensamento” e “Elegia (outono)”.
Interessado não apenas em compendiar dúvidas, "Sumário de incertezas" é também profícuo inventário de perdas e interdições: um “salto que nós nunca demos”, uma “estrada/ que nunca/ pisei”, “um porto/ que já não alcanço”, uns “olhos que não dão mirada” e outras denegações são despojos que servem de matéria a uma poética em boa parte brotada da inviabilidade. Impelida por uma “ânsia/ de chegar/ a nenhum lugar”, a lírica de Lauro Marques parece gestada num “intervalo infinito” em que tudo é “olvido e névoa”. “E apesar disso tudo/ (ou talvez por isso)”, essa poesia – “ao mesmo tempo sublime, banal e verdadeira” – aciona sugestivo repertório imagético, responsável em grande medida pelo vigor dos poemas.
"Sumário de incertezas" configura-se ainda como uma espécie de súmula de referências a delinear a filiação intelectual de Marques, que a certa altura assevera: “A poesia é um longo e interminável diálogo entre poetas, no qual se entra como num rio caudaloso”. A correnteza dos ingleses – Shakespeare, D. H. Lawrence, William Blake, Malcolm Lowry – aparece com força, muito embora outros afluentes – Ungaretti, Rilke, Pound, Rimbaud – mostrem-se também influentes. Do colóquio com as artes plásticas nasce “Tríptico de Bacon” (sobre “Três estudos para figuras na base de uma crucificação”, de Francis Bacon), um dos momentos altos do livro. A intensa interlocução do poeta com seus pares e com criadores de outras artes revela um lastro cultural que em nada se confunde com a fátua afetação muita vez camuflada sob o brilho falso da erudição de almanaque. No caso de Marques, são sinais que ajudam a mapear-lhe a linhagem poética e tornam mais claro seu pensamento lírico.
Se “Arte é o que vale a pena” (como lemos em “A parte”), "Sumário de incertezas" é, indubitavelmente, boa aposta de leitura. No contato com essa poesia ora aflita, ora “leve/ como uma cerveja weiss” – “pluma temerosa a fender o espaço” –, a pena é muitíssimo bem recompensada. E a qualidade dos poemas “é a parte/ que cabe a cada leitor descobrir”.
LUCIANO ROSA é doutorando em Letras pela UFRJ, pesquisador da literatura brasileira do século XX, organizador do volume "Anos 40" da coleção Roteiro da Poesia Brasileira e os "Melhores Contos de Aurélio Buarque de Holanda", ambos da editora Global.