Mise en abîme. Procedimento que consiste em incrustar uma imagem dentro dela mesma, representar uma obra dentro de uma obra de um mesmo tipo, que remonta ao princípio dos fractais ou da recursividade na matemática.
Em literatura, o “pôr-se em abismo” é a técnica utilizada pelo escritor que escreve um romance sobre o escritor que escreve um romance, como no primeiro livro de André Gide: “Os Cadernos e as Poesias de André Walter”. Assim como em “Os Moedeiros Falsos”, obra da maturidade de Gide, o próprio romance está sendo escrito dentro da obra de mesmo nome em que é contado.
Indo um pouco além das definições enciclopédicas, de todos os artistas talvez o poeta seja o ser que mais está sempre a cada momento “colocando-se em abismo”. Isto é, ele está o tempo todo representando para si mesmo o ato de escrever o poema e a si mesmo nesse ato. Ele exercita o tempo todo aquilo que Octavio Paz chamou de “outridade” ―resumida na famosa frase de Rimbaud: “Je est un autre”, eu sou um outro, o “eu” é um outro.
Este “eu” de que falam tantos poemas sempre é um retrato de um outro, um “eu” que precisa ser representado na forma desse outro, e só aparece por meio da linguagem.
O “eu” é um outro, meu abismo é o seu abismo e ambos podemos nos reconhecer. Ou talvez nele venhamos a nos perder.
A “outridade” do poeta não é senão “colocação em abismo”, mise en abîme.
(Para ser inteiro é preciso ser outro. E nunca se pode ser inteiramente inteiro, sem ser outro. Donde, nunca se pode ser inteiro.)
O verdadeiro “eu” está em outra parte ou está em parte nenhuma ―o que é o mesmo que dizer que está em toda a parte.
O verdadeiro “eu” é uma ficção. Fernando Pessoa, o mais “abismal” dos poetas foi talvez quem melhor compreendeu isso, e que se declarou, pela voz do heterônimo (sempre pela voz do heterônimo) Bernardo Soares, um “espectador irônico” de si mesmo. E é também Bernardo Soares, no Livro do Desassossego, que se rebela contra o escritor Fernando Pessoa, que o escreve escrevendo contra a necessidade de se recompor, para que venha a existir, como linguagem, para nós, destruindo-se enquanto unidade autônoma aparente: “Tornei-me uma figura de livro, uma vida lida. O que sinto é (sem que o queira) sentido para se escrever que se sentiu. O que penso está logo em palavras, misturado com imagens que o desfazem, aberto em ritmos que são outra coisa qualquer. De tanto recompor-me destruí-me. De tanto pensar, sou já meus pensamentos mas não eu. Sondei-me e deixei cair a sonda; vivo a pensar se sou fundo ou não, sem outra sonda agora senão o meu próprio olhar que me mostra, claro a negro no espelho do poço alto, meu próprio rosto que me contempla a contemplá-lo”.
Mise en abîme infernal e vertiginoso em que criador e criatura se fundem e se separam num jogo de espelhos infinito, e a solução para o problema formulado nunca é dada.
Em literatura, o “pôr-se em abismo” é a técnica utilizada pelo escritor que escreve um romance sobre o escritor que escreve um romance, como no primeiro livro de André Gide: “Os Cadernos e as Poesias de André Walter”. Assim como em “Os Moedeiros Falsos”, obra da maturidade de Gide, o próprio romance está sendo escrito dentro da obra de mesmo nome em que é contado.
Indo um pouco além das definições enciclopédicas, de todos os artistas talvez o poeta seja o ser que mais está sempre a cada momento “colocando-se em abismo”. Isto é, ele está o tempo todo representando para si mesmo o ato de escrever o poema e a si mesmo nesse ato. Ele exercita o tempo todo aquilo que Octavio Paz chamou de “outridade” ―resumida na famosa frase de Rimbaud: “Je est un autre”, eu sou um outro, o “eu” é um outro.
Este “eu” de que falam tantos poemas sempre é um retrato de um outro, um “eu” que precisa ser representado na forma desse outro, e só aparece por meio da linguagem.
O “eu” é um outro, meu abismo é o seu abismo e ambos podemos nos reconhecer. Ou talvez nele venhamos a nos perder.
A “outridade” do poeta não é senão “colocação em abismo”, mise en abîme.
(Para ser inteiro é preciso ser outro. E nunca se pode ser inteiramente inteiro, sem ser outro. Donde, nunca se pode ser inteiro.)
O verdadeiro “eu” está em outra parte ou está em parte nenhuma ―o que é o mesmo que dizer que está em toda a parte.
O verdadeiro “eu” é uma ficção. Fernando Pessoa, o mais “abismal” dos poetas foi talvez quem melhor compreendeu isso, e que se declarou, pela voz do heterônimo (sempre pela voz do heterônimo) Bernardo Soares, um “espectador irônico” de si mesmo. E é também Bernardo Soares, no Livro do Desassossego, que se rebela contra o escritor Fernando Pessoa, que o escreve escrevendo contra a necessidade de se recompor, para que venha a existir, como linguagem, para nós, destruindo-se enquanto unidade autônoma aparente: “Tornei-me uma figura de livro, uma vida lida. O que sinto é (sem que o queira) sentido para se escrever que se sentiu. O que penso está logo em palavras, misturado com imagens que o desfazem, aberto em ritmos que são outra coisa qualquer. De tanto recompor-me destruí-me. De tanto pensar, sou já meus pensamentos mas não eu. Sondei-me e deixei cair a sonda; vivo a pensar se sou fundo ou não, sem outra sonda agora senão o meu próprio olhar que me mostra, claro a negro no espelho do poço alto, meu próprio rosto que me contempla a contemplá-lo”.
Mise en abîme infernal e vertiginoso em que criador e criatura se fundem e se separam num jogo de espelhos infinito, e a solução para o problema formulado nunca é dada.