Resenha-artigo
Por Lauro
Marques
“São Paulo não
é feia ou bonita. São Paulo é um monstro”. Gilles Lapouge dá uma das melhores
definições do Brasil e das cidades brasileiras em seu impagável “Dicionário dos
apaixonados pelo Brasil” (editora Amarilys, 2014).
A tradução
“Dicionário Amoroso” do título, como no francês original em que foi lançada a
obra, “Dictionaire amoureux du Brésil”, ficaria melhor. Sim, é amoroso e nos
deixa nus como índios cabralinos.
São Paulo, de
acordo com o verbete sobre as aglomerações urbanas locais, é uma “periferia
infinita”, onde procuramos e nunca encontramos as portas da cidade. Estamos
sempre “ao redor da cidade”. É o ápice da cidade portuguesa, “construída às
cegas, de qualquer jeito, em qualquer lugar”.
Por isso as
sinuosidades são mantidas em nossas vilas e cidades, cheias de declives, vales, ladeiras.
Por isso são belas, diz, amorosamente, Lapouge. Por isso, acrescento, não
pensamos em construir calçadas, ou vias e estradas funcionais ou abastecimento
hídrico planejado.
Por isso também
as ciclovias de São Paulo, destinadas em grande parte aos fantasmas e zumbis (*), que são seus
nem sempre ocultos habitantes.
Rejeitamos a
geometria voluntária da urbe espanhola (ademais, já existente na América
pré-hispânica, enquanto aqui ainda não conhecíamos a roda). À lógica,
preferimos a intuição.
Quem ousou
contrariar essa inclinação foi Niemeyer e sua Brasília utópica - uma utopia,
apesar da rima ser rica, estranha, no entanto.
Em lugar de
ângulos retos, a curva. (A primeira cidade utópica “mulher”, segundo Lapouge).
Em lugar de ruas e esquinas, “asas”, “blocos” e “setores”.
Uma
cidade-hieróglifo para ser vista do avião, como uma mensagem no deserto aos
deuses (deixada por um comunista!) e inabitável ao rés do chão.
Livro
inspirador, voltarei a ele outras vezes.
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(*) Véspera do
Natal, saída do túnel da Paulista em direção a Dr. Arnaldo. Sou pego em uma
cena de filme de Zumbi. Dentro do túnel, ocupando as laterais dos dois lados da
pista, numa semiescuridão, um grupo se amontoava (provavelmente viciados em
crack). A maioria homens, talvez não muito velhos, barbudos, cabeludos,
desgrenhados, famélicos, roupas em frangalhos e cobertos de sujeira. Corpos
enegrecidos, encolhidos, sentados um ao lado do outro, as mãos agarrando os
joelhos, olhando para frente. As cabeças meio inclinadas, em silêncio absoluto,
como se numa espécie de comunhão, sem fogo. Véspera de Ano-Novo, continuavam
lá. À passagem rápida dos carros, um deles se levantou, um pé tocando o
asfalto, antepondo a silhueta avermelhada contra a luz no final do túnel, que
agora me lembrava também uma caverna pré-histórica. Papelões voavam no meio da
pista.
Nota do autor: Talvez tenha carregado muito
nas tintas na descrição. Mas o quadro, quase um “presépio”, é exato e está
disponível a quem queira experimentar. Poderia tê-lo descrito numa linguagem
objetiva de jornalista, já que os nossos ainda não tiveram a oportunidade de
descrevê-lo. Se saiu nessa linguagem enviesada foi pela força que o evento me
impressionou.
"Poste-Escrito": Não sou inimigo das ciclovias, pelo contrário, utilizo e sou um apoiador. As ciclovias são uma boa ideia, mudaram a cara de São Paulo, oferecendo uma opção de lazer - e até em alguns casos, para uso por entregadores, ou de pessoas que moram em áreas mais urbanizadas da cidade, perto do trabalho e são jovens. Seu fracasso está associado ao próprio fracasso da cidade, de uma forma geral, como a falta de calçadas, avenidas mais largas e arborizadas, com recuo maior dos edificíos, o tecido caótico das ruas, etc.