segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

NO PASA NADA

A casa era uma combinação de vidro e concreto, com linhas retas, e uma sala com portas de vidro que terminava num quintal também de concreto com piscina. Lembrava uma pintura de David Hockney, com alguma coisa de decadente. Ervas daninhas cresciam no canteiro ao lado da piscina, cujo fundo estava bastante escurecido. Uma pequena ponte de madeira com os pregos saltando se equilibrava ou jazia ali no meio, com uma espreguiçadeira de plástico branco displicentemente colocada em cima.

Estava para ser vendida para uma empreiteira que iria demoli-la e construir um prédio de sabe-se lá quantos andares. Ficava numa posição elevada de onde se podia enxergar o horizonte recortado de edifícios cinzas longínquos e algumas poucas edificações mais próximas. Essas pareciam encenar um teatro diário do cotidiano, de formigas humanas movimentando-se, piscando, apagando e acendendo as luzes. Formas de vida como de outro planeta que, a não ser por isso, jamais entrariam em contato.

"Lembrava uma pintura de David Hockney, com alguma coisa de decadente."

Havia lido que cerca de 35 mil litros de esgoto eram despejados por segundo no rio que passava a alguns quilômetros dali. De vez em quando se podia sentir o cheiro pútrido que se levantava de outro rio ou esgoto mais perto. Podreira da cidade podre que apodrecia. Mas não pensava nisso enquanto observava o céu sentado enquanto bebericava vinho e tomava notas. Ele estava empenhado em acompanhar as evoluções e mudanças no espaço aéreo à sua frente como se fossem o resultado da mistura de cores da paleta do pintor mais enlouquecido, acometido de um excesso de melancolia, e esforçava-se para captá-las através da escrita.

Inutilmente, lia para si mesmo, não sem consternação, o resultado pífio em que comparava a lua nova, quando o céu “turvando-se e multiplicando-se em angustiantes profundidades púrpuras e azuis”, vinha “negar-lhe o esplendor”, aos olhos convulsivos (era o que representava para ele naquele momento) das vítimas do acidente ocorrido há poucos dias no Metrô ― cinco passageiros de um microônibus, além de dois pedestres, tragados por desmoronamento de uma cratera aberta nas obras às margens daquele rio fedorento.

Lembrou-se de sexta-feira, quando descera na estação Klabin e, sonolento, caminhara alguns metros. Os pulmões ardendo da poluição às 8 da manhã. (Respirar aqui equivale a fumar dois cigarros por dia, ele estava por dentro das estatísticas). Pensou na cidade, que envelhecia a passos rápidos. 453 anos de invasão jesuíta tinham dado nisso. Olhou os pombos importados da Europa arrastando-se doentes de tão gordos. Eles raspam o tacho da sarjeta. Um casal meio tonto em roupa de jogging passou por ele cambaleante. Vieram “carbonizar” um pouco, pensou. Sintonizou o rádio do celular num rock and roll e rolou em frente.

Súbito, levantou-se, tentando espantar a borboleta negra que zumbia acima de sua cabeça, endoidecida pela luz da lâmpada elétrica. Ei-la repousada agora na parede, não mais uma borboleta e sim uma barata imensa e com asas. Correu para dentro da casa em busca do veneno e voltou com dois sprays de marcas diferentes. No meio tempo, a miserável havia sumido. Um dia depois teve a impressão de ver seu cadáver boiando na piscina e vê-lo em seguida desaparecer entre o bico do pássaro gordo de barriga amarela e rosto mascarado que vigiava aquelas águas de cima da árvore-arbusto que se elevava bem mais de cinco metros do muro e projetava sua sombra, deixando cair as florações e folhas mortas que ficavam por ali boiando.

No topo da árvore ele já havia divisado mais de uma vez um casal de periquitos, que faziam um barulho infernal ao cair da tarde, de modo que se podia dizer que ali ele estava de fato numa reserva ecológica. O terraço era um lugar misterioso. Diga-se de passagem que um certo dia um mamoeiro havia brotado ali, no meio do concreto, sem que ninguém soubesse como. Essa árvore milagrosa, que ficava cada vez mais alta, dava pequenos mamõezinhos doces que eram devidamente estraçalhados pelos pássaros que vinham em bandos, avisados uns pelos outros, por seus gritos frenéticos, para a refeição.

Inutilmente, lia para si mesmo (...) o resultado pífio em que comparava a lua nova (...) aos olhos convulsivos (...) das vítimas do acidente ocorrido há poucos dias no Metrô”. 

Sempre admirara os pássaros, à exceção dos pombos, “ratos com asas”, na sua opinião, na mesma medida que detestava os cães. É preciso dizer que na casa havia dois. Ambos de nomes ridículos e humanizados. Um no entanto, já havia morrido. O outro, podia ser adorável de vez em quando, mas ainda assim era um cachorro, i.e., estorvo. Eles usavam o capim ao lado da piscina para fazer suas necessidades. Liberdades que lhes permitiam a dona da casa, assim como a ele, outras tantas.

Ele gostava muito mais dela do que da casa, que às vezes lhe parecia uma prisão com algumas regalias especiais. Ouviu sua voz chamando-o por cima do ombro, virou-se e pode mirá-la contra uma luz fraca, vinda do interior, a cabeleira loura destacando-se no fundo negro em que flutuavam alguns insetos. Olhou-o com um sorriso de quem gostaria de saber o que estava se passando ali naquele intervalo de tempo em que ele ficara quieto, apenas observando, enquanto começava a esfriar. Respondeu também mentalmente com um sorriso em castelhano de no pasa nada, efeito de uma imersão rápida naquele vinho espanhol chamado Memorandum. Quando seu pé tocou na precária ponte de madeira, a construção inteira desabou fazendo Tchibum.

4 comentários:

medusa que costura insanidades disse...

Tchibum!!!!!!!!Muito bom teu conto Lauro.................o personagem é interessantissimo.........gostaria de conhece-lo e ler mais o que ele escreve
passagens marcantes,descritivo sem ser maçante, e a segunda imagem caiu como luva
boa produção,adorei
passa no meu blog,tem novidade lá
beijos
rita

Anônimo disse...

valeu garoto!....

bjs

gustavo...

Lauro Marques disse...

Obrigado Rita mais uma vez. É, fica melhor ilustrado.
Bjs

Lauro Marques disse...

Gus, vc recebeu meu texto. E o panfleto, saiu?