terça-feira, 21 de agosto de 2007

“Old Boys”, velhos problemas




O argumento defendido por Olavo de Carvalho em um artigo republicado na Revista Bula, sobre o maior massacre já cometido em uma universidade norte-americana, é tão absurdo quanto a tese de “mártir do anticonsumismo” aplicada ao autor do crime e ridicularizada por ele no mesmo texto. Segundo Olavo, o morticínio é resultado de uma lei que proíbe o porte de armas dentro de universidades nos Estados Unidos.

“Se apontasse uma arma para um caixa do WalMart, levaria chumbo de dez fregueses ao mesmo tempo”, defende ele. Esquece, entre várias inconsistências, que antes de tudo a lei vale para todos, inclusive para os alunos esquisitões e não apenas para “professores e funcionários”, os tais “patos sentados” como ele chama no texto. A alternativa seria transformar a sala de aula numa trincheira de guerra com professores treinados pelo FBI e prontos a reagir ao primeiro sinal de “ameaça” à segurança.

Por falar em argumentos absurdos, também estapafúrdias e apressadas foram as comparações suscitadas por um post em um dos blogs do jornal “The New York Times” na Internet, sugerindo semelhanças entre cenas do filme “Old Boy” e as poses do garoto sul-coreano, que matou 32 pessoas da Universidade Técnica de Virgínia. Nas imagens ele aparece segurando faca, martelo e armas de fogo - entre elas uma pistola Glock de 9 mm comprada 36 dias antes numa loja em que o rapaz de 23 anos só precisou mostrar seu green card de imigrante legal, além de passar no “exame” do vendedor. Este relatou: “Ele era um garoto universitário simpático e bem vestido. Não vendemos uma arma se temos qualquer indicação de que a compra é suspeita”. Um pacote com 27 vídeos, além de fotografias e textos escritos, foi enviado pelo estudante no intervalo entre um crime outro à rede de televisão NBC.

Por que não comparar também essas imagens com Jack Nicholson segurando um machado em “O iluminado”? Ou Robert De Niro apontando uma arma para a cabeça em “Taxi Driver”? “Vocês tiveram 100 bilhões de chances de evitar este dia, mas decidiram derramar o meu sangue. Vocês me encurralaram e só me deixaram uma opção. A decisão foi de vocês. Agora vocês têm sangue em suas mãos e nunca vão conseguir limpá-las”, diz o assassino em um dos vídeos enviados, cujo texto poderia ter sido extraído de Stalone Cobra - “Vocês são a doença, eu sou a cura” - ou Dirty Harry - “Make my day”.

Em um outro vídeo, o garoto professa uma confusa versão do cristianismo redentor e se compara a Jesus Cristo: “Vocês vandalizaram meu coração, rasgaram minha alma e queimaram minha consciência. Vocês achavam que era um garoto patético que vocês estavam extinguindo. Graças a vocês, eu morri. Como Jesus Cristo, para inspirar gerações de pessoas fracas e indefesas.” Aqui o discurso poderia ter sido inspirado em um trecho da Bíblia - “Ah! filha de Babilônia, que vais ser assolada; feliz aquele que te retribuir consoante nos fizeste a nós. Feliz aquele que pegar teus pequeninos e esmagá-los contra a pedra” (Salmo 137) e “Suas crianças também deverão ser feitas em pedaços diante de seus olhos; suas casas serão destruídas, e suas esposas violadas” (Isaías 13:16) - ou até mesmo no messianismo água-com-açucar de “Matrix”.

O que dizer então de milhares de outras imagens e mensagens de violência de zilhões de filmes e programas de televisão, sem esquecer, é claro, de livros e HQs e letras de músicas, sem falar nos video-games? “Old Boy”, o filme do diretor sul-coreano Chan-wook Park, é apenas mais uma obra nessa lista. Sem dúvida perturbador e memorável em vários aspectos, o filme vale a pena pelas qualidades cinematográficas e visuais que lhe renderam o Grande Prêmio do Júri de Cannes. Baseado em um mangá japonês, conta a história de um homem que passa 15 anos preso em um quarto sem saber o motivo. Quando o deixam escapar, tem início uma série ultraviolenta de atos contra aqueles identificados como culpados. Alguns críticos, chegaram mesmo a identificar no roteiro uma “crítica aos valores da sociedade oriental”.

O que influenciou realmente a cabeça do garoto dificilmente saberemos. É sabido que recentemente havia mostrado sinais de perturbação, incluindo colocar fogo num quarto do dormitório e de ter sido denunciado à polícia por duas colegas que o acusaram de perseguição. Segundo disseram outros estudantes que o conheceram, ele era ridicularizado durante o ensino médio por causa do excesso de timidez e “jeito esquisito de falar”. O personagem da tragédia absurda que decidiu protagonizar para o mundo ver (vê-lo) foi sem dúvida influenciado pela cultura da violência a que ninguém pode mais fingir que está imune. Mas ninguém faz o que ele fez apenas para aparecer ou por pura vontade de imitar, a não ser que tenha um distúrbio mental muito sério. Junte a isso a facilidade de se obter e usar armas e você terá todos os ingredientes explosivos juntos.

Olavo de Carvalho acha que com professores armados em sala de aula, o problema todo estaria resolvido. No Brasil, da bala perdida e do Estado distante, país líder mundial em jovens entre 15 a 24 anos mortos por arma de fogo, ficaria ainda mais difícil de apontar quem seriam os verdadeiros culpados e onde estaria a solução.

domingo, 12 de agosto de 2007

O ENGANO

É verdade que cultuo a incerteza pelo pouco que vale.

Oh, canções dos sóis distantes!

Hoje, compus uma canção de marinheiro, dessas bem tolas, para serem cantadas por um grupo de amigos, caneca à mão, em alegres rodas:

DESAFIO AO MAR



O mar é um marujo bêbado, este fim de tarde.
E eu não sei se sou um espectador ou sou ele
próprio se arrebentando no casco
de terra sobre o qual estamos,
em nossa embarcação de
pedra, aço e madeira.
(Todos estamos bêbados de cerveja e vinho e bebemos
sentados em nossas cadeiras, dormindo ou apenas admirando).
A verdade é que se passaram assim
mais de seis horas.
Ninguém sai daqui antes do sol
ir-se embora...

Não haverá vencedores nessa peleja...
Hoje, o banco de areia resistiu,
Mas, alto lá,
voltaremos amanhã, mar,
– e veremos!
*
*
*
Todos nós seremos grandes coisas assim que quisermos. Mas, ai de nós, não será ainda hoje.

Grandes corações, homens, artistas, escritores, poetas, atores. Amigos, maridos e esposas. Pais e filhos. Irmãos-na-alma.

Por enquanto, a única certeza acabou de se pôr no horizonte. E como eu estava longe, e chovia, e entre quatro paredes de concreto... Eu não vi nada.

Um dia nos tornaremos aquilo que somos. Mas, ai de nós, não hoje.

Volto o olhar mais uma vez sobre minha pequena criação tola. Que quis eu dizer, realmente, com aquilo?

Qual o desafio?

Os marujos só podem vencer o mar, na sua batalha contra o monte conquistado, arrebentando eles próprios o coração, transbordando de tanto beber nos seus copos de cerveja.

Falsa vitória!

E há pouco, julgava-os audazes e orgulhosos!


“O engano” ou como vi a mim mesmo num reflexo noturno.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

REALIDADE, DIAMANTES E DESERTOS VERMELHOS



O Deserto Vermelho é o nome do filme, de 1964, do diretor italiano Michelangelo Antonioni (1912-2007). É o primeiro longa-metragem em cores de Antonioni - o que terá toda a importância, a partir, desde já, como veremos, do título - e com a fotografia de Carlo Di Palma. Lançado em DVD, em versão restaurada, o filme se passa na poluída Ravenna, cidade italiana, e tem a atriz Monica Vitti no papel principal. No que segue, não tentarei resenhá-lo, mas abordá-lo de alguns pontos de vista que, se não forem os mais relevantes, foram os que me suscitou a obra quando tive a oportunidade de assisti-la recentemente.

Comecemos pelo final, não o do filme, mas dos extras do DVD recheados de comentários irônicos e divertidamente mundanos dos cinejornais da época que faziam a cobertura das entregas de prêmios às celebridades do cinema italiano. Em tais comentários, Antonioni é sempre retratado de forma caricatural como o “intelectual sombrio”. Monica Vitti, por sua vez, que junto com ele formava o par “menos alegre” do cinema, na avaliação do cinejornal, era premiada pelas suas atuações “cada vez mais mudas”. Antonioni, flagrado na pré-estréia de seu outro filme, “Eclipse”, “não se rendia a nenhuma corrente, nem mesmo à elétrica”.

Numa espécie de contraponto “sério” a essas vinhetas cômicas, o próprio Antonioni comparece nos extras, sendo entrevistado por um repórter de um programa francês. Nessa entrevista, aliás, mostra-se muito pouco “ecológico”, para alguém cuja transformação do mundo industrial foi tido como um choque. Ficamos sabendo, pelo próprio diretor, que Deserto Vermelho “originou-se” desse choque, em uma visita do diretor a Ravenna, cidade próxima ao lugar de nascimento de Antonioni, Ferrara.

Somos informados também que durante as filmagens ele mandou pintar casas, árvores e até um bosque inteiro, cujo verde não lhe parecia uma cor “justa” para a impressão que queria causar no espectador. Por isso foi pintado de branco, com ajuda de uma máquina de borrifar tinta, especialmente para cena inicial do filme, uma greve na porta de uma usina. O cenário construído entretanto sequer chegou a ser utilizado. Por razões técnicas, anteriores à era Spielberg, devido ao sol, o bosque parecia preto, quando enquadrado contra a luz.

Se formos analisar melhor o motivo dessas intervenções visuais “corretoras”, percebemos que, no filme de Antonioni, a poluição das indústrias, com suas cores, precisa ser possuidora de uma beleza ao mesmo tempo assustadora e pungente, atrativa e horrenda, que alguns filósofos como Kant e Schiller chamariam de sublime.



É possível encontrar esse tipo de beleza - a câmera nos mostra, e isso é sentido por Giuliana, interpretada por Monica Vitti, a ponto de levá-la ao desespero: nas poças esverdeadas do cais; na lama azul-petróleo do rio estagnado; nas marcas multicoloridas de ferrugem e óleo do casco das embarcações; na neblina artificial de uma nuvem de amônia ou resultante da evaporação da água utilizada na usina e até mesmo na fumaça amarela e venenosa da chaminé.
Esse é um filme em que o ambiente desempenha um papel principal, revela também o diretor italiano na entrevista. Como isso se coadunaria então, com aquele que os críticos dizem ser o grande tema de Antonioni, “a incomunicabilidade e a solidão do homem contemporâneo”?

Apesar de casada com o diretor da usina, Giuliana está terrivelmente só, a realidade a atinge de modo quase insuportável. A única saída para seu tormento seria se ela pudesse também “pacificar a violência” que sente, sublimando-a esteticamente, em suma, tornando-se artista, a exemplo do próprio Antonioni. Mas o que fazer quando não se é dotado de talento até mesmo para essa não-solução provisória, chamada arte?




No final do conto mais famoso de F. Scott Fitszgerald, encontramos a seguinte frase: “No mundo inteiro, há apenas diamantes, diamantes, e talvez a pobre dádiva da desilusão. Bem, eu tenho esta última, e farei o de sempre com ela: nada.”
Os personagens de Antonioni caracterizam-se quase sempre por uma espécie de inação ao final de suas vidas filmadas (final da película). Chega-se a um ponto em que não há mais nada para fazer ou dizer, a não ser aceitar a “pobre dádiva da desilusão”. Seus personagens nunca são triunfantes, mas resignados. Alguns se deixam mesmo abater pela tragédia, como no caso do final de O Grito, ou em Profissão: repórter.

“Não sou filósofo, nem sociólogo”, afirma Antonioni na entrevista. Tudo aquilo que quis dizer, segundo ele, foi dito no próprio processo de fazer o filme. A avaliação sobre o significado viria depois ou talvez não viesse nunca. A inconclusão de suas obras é a própria inconclusão da vida - enquanto houver vida, ela não estará concluída.

Não sabemos o que acontece com Giuliana, o filme não nos mostra, não há uma “resolução definitiva” para o seu drama. Talvez ela permaneça apenas como um símbolo da inadequação, ao mesmo tempo extremamente receptiva, esteticamente, mas cuja resposta, em forma de ação, seja passiva. Testemunha silenciosa da passagem de um mundo naturalmente belo (que seria talvez apenas ideal) para uma realidade terrível, mas ainda assim não totalmente desprovida de encantos, com a qual é preciso de alguma forma conviver.