quarta-feira, 3 de outubro de 2007

CABELOS MOLHADOS


Gabriel não estava pensando em nada especial quando olhou para o chão naquela noite em Vasta Colina. Era uma noite agradável de inverno. Ele estava de passagem pela cidade onde ele nascera. Fazia anos e anos que não pisava lá. Agora estava alojado na coxia de um teatro reservado para um congresso de teoria literária. Ele não fazia a mínima idéia de como ele havia ido parar ali, junto com aquela trupe de amigos, todos tão sem grana e sem muita esperança quanto ele.

Fora atraído pela possibilidade de rever a cidade e nada mais. E ela não o decepcionara. Estava linda. A noite abriu uma boca cheia de dentes pronta para engolir tudo em volta. O ar batendo contra o corpo causava uma sensação tépida. Olhou para cima. Cuspiu o cigarro que não fumava por entre os dentes (“o modo infame de beber” e um dos dois únicos pecados mortais existentes, segundo os vaabitas) e pôs-se em movimento.

A cidade o chamava para dentro. Andou a esmo à procura de um bar ou qualquer outro sinal de movimento. Um perfeito estrangeiro, nada o reconhecia. Sentia entretanto uma sensação estranha de pertencimento, que nunca mais pôde sentir novamente em nenhum outro lugar. Para onde ia? Essa é a única forma de liberdade. “Turismo é pecado, caminhar é virtude”, disse Herzog, o “duque”, certa vez. As placas o guiavam para lugar nenhum, pequenos hotéis ainda acesos mais adiante.

"Fora atraído pela necessidade de rever a cidade e nada mais".
Foi quando a viu sair pela porta de vidro de um desses hotéis. Em menos de um segundo, os olhos de Gabriel piscaram como quando ele via alguma coisa realmente interessante. Em menos de um segundo, distinguiu. O tornozelo primeiro. A saia curta e preta em cima de um salto alto. Passos cadenciados, vinte anos no máximo, segurando uns livros contra o peito, e os cabelos curtos molhados.

Não havia outra decisão senão não perdê-la de vista.

Passou a segui-la. Sim, era outra forma de se perder, ainda mais, em Vasta Colina, dessa vez sendo guiado. Era fácil e doloroso por causa da adrenalina. E ele não era de resistir à tentação, pelo contrário. Não havia cera nenhuma em seus ouvidos, de modo que os círculos da noite iam se fechando em volta dele enquanto percorria as ruas, enquanto a garota à sua frente ia fazendo curvas e mais curvas. Finalmente, tomou coragem para aproximar-se o bastante.

- Desculpe, por favor você poderia me informar...

Viu seu rosto. Combinava perfeitamente bem com o resto.

- É que eu sou de fora, estou no congresso...

- Você sabe onde fica...

Olhou para ele, calma e decidida, e respondeu, tranquilamente,  como uma legítima vastacolinense, algo que ele não sentiu necessidade nenhuma em anotar. Agora que a havia alcançado, diante dela, em poucos minutos, resolveu que não precisava mais disfarçar.

- Olha, falou ele, para ser sincero, eu não quero nenhuma informação. Eu vi você saindo do hotel e resolvi seguir você - apostou tudo de uma vez no número sete, preto.

- É mesmo? Que bom - disse ela, para a total surpresa dele, que esperava qualquer outra coisa.


"Não havia outra decisão senão não perdê-la de vista".

Perguntou seu nome e ela respondeu.

- Mas não vou poder falar com você agora, disse.

Pararam em frente ao portão da casa dela.

- É que estou esperando meu namorado.

Nesse exato momento, passou um cara num chevette vermelho e estacionou alguns metros adiante.

- Olha ele aí... Tenho que ir. Passe aqui depois amanhã e a gente conversa, sorriu.

Obedecendo, e meio que maravilhado, disfarçou e apressou o passo. Continuou andando, não sem antes registrar local e número.

Ainda meio sem acreditar e sedento pela caminhada, procurou por um bar. Não muito mais adiante encontrou. Havia poucas cadeiras no balcão e uma única vazia ao lado de um cidadão de meia-idade, careca, gordo e àquela altura completamente bêbado.

Sem muito o que fazer sentou e ordenou ao garçom uma cerveja. Não demorou muito pro sujeitinho ao seu lado abrir o bico e puxar conversa.

- Amigo, adivinha só onde eu estava agora há pouco?

- ...

Não esperou responder:

- Tava num hotel com uma gata. 19 anos, um corpinho de deusa, cabelinho curto... e viciada em maconha. Sou o traficante dela, sabe? Faz qualquer coisa em troca. Fizemos de tudo...

E descreveu com detalhes o “tudo”, que, devo dizer, não era pouco.

- E o  o corno do namorado dela não sabe de nada, soltou uma gargalhada, que ecoou de forma sinistra pelo bar.

Não havia dúvida, era a menina com quem ele havia acabado de conversar. Não quis ficar mais tempo ouvindo aquilo, terminou sua cerveja e se despediu da criatura ao seu lado, deixando-o se vangloriar para outro alguém. No dia seguinte, tinha que ir embora. Passou pela manhã no endereço que havia anotado. Ainda cheio de coragem da noite anterior, tocou a campainha. Atendeu a mãe dela que respondeu que ela não estava. Tinha ido estudar.