Gabriel não estava pensando em nada especial quando olhou para o chão naquela noite em Vasta Colina. Era uma noite agradável de inverno. Ele estava de passagem pela cidade onde ele nascera. Fazia anos e anos que não pisava lá. Agora estava alojado na coxia de um teatro reservado para um congresso de teoria literária. Ele não fazia a mínima idéia de como ele havia ido parar ali, junto com aquela trupe de amigos, todos tão sem grana e sem muita esperança quanto ele.
Fora atraído pela possibilidade de rever a cidade e nada mais. E ela não o decepcionara. Estava linda. A noite abriu uma boca cheia de dentes pronta para engolir tudo em volta. O ar batendo contra o corpo causava uma sensação tépida. Olhou para cima. Cuspiu o cigarro que não fumava por entre os dentes (“o modo infame de beber” e um dos dois únicos pecados mortais existentes, segundo os vaabitas) e pôs-se em movimento.
A cidade o chamava para dentro. Andou a esmo à procura de um bar ou qualquer outro sinal de movimento. Um perfeito estrangeiro, nada o reconhecia. Sentia entretanto uma sensação estranha de pertencimento, que nunca mais pôde sentir novamente em nenhum outro lugar. Para onde ia? Essa é a única forma de liberdade. “Turismo é pecado, caminhar é virtude”, disse Herzog, o “duque”, certa vez. As placas o guiavam para lugar nenhum, pequenos hotéis ainda acesos mais adiante.
"Fora atraído pela necessidade de rever a cidade e nada mais". |
Não havia outra decisão senão não perdê-la de vista.
Passou a segui-la. Sim, era outra forma de se perder, ainda mais, em Vasta Colina, dessa vez sendo guiado. Era fácil e doloroso por causa da adrenalina. E ele não era de resistir à tentação, pelo contrário. Não havia cera nenhuma em seus ouvidos, de modo que os círculos da noite iam se fechando em volta dele enquanto percorria as ruas, enquanto a garota à sua frente ia fazendo curvas e mais curvas. Finalmente, tomou coragem para aproximar-se o bastante.
- Desculpe, por favor você poderia me informar...
Viu seu rosto. Combinava perfeitamente bem com o resto.
- É que eu sou de fora, estou no congresso...
- Você sabe onde fica...
Olhou para ele, calma e decidida, e respondeu, tranquilamente, como uma legítima vastacolinense, algo que ele não sentiu necessidade nenhuma em anotar. Agora que a havia alcançado, diante dela, em poucos minutos, resolveu que não precisava mais disfarçar.
- Olha, falou ele, para ser sincero, eu não quero nenhuma informação. Eu vi você saindo do hotel e resolvi seguir você - apostou tudo de uma vez no número sete, preto.
- É mesmo? Que bom - disse ela, para a total surpresa dele, que esperava qualquer outra coisa.
Perguntou seu nome e ela respondeu.
- Mas não vou poder falar com você agora, disse.
Pararam em frente ao portão da casa dela.
- É que estou esperando meu namorado.
Nesse exato momento, passou um cara num chevette vermelho e estacionou alguns metros adiante.
- Olha ele aí... Tenho que ir. Passe aqui depois amanhã e a gente conversa, sorriu.
Obedecendo, e meio que maravilhado, disfarçou e apressou o passo. Continuou andando, não sem antes registrar local e número.
Ainda meio sem acreditar e sedento pela caminhada, procurou por um bar. Não muito mais adiante encontrou. Havia poucas cadeiras no balcão e uma única vazia ao lado de um cidadão de meia-idade, careca, gordo e àquela altura completamente bêbado.
Sem muito o que fazer sentou e ordenou ao garçom uma cerveja. Não demorou muito pro sujeitinho ao seu lado abrir o bico e puxar conversa.
- Amigo, adivinha só onde eu estava agora há pouco?
- ...
Não esperou responder:
- Tava num hotel com uma gata. 19 anos, um corpinho de deusa, cabelinho curto... e viciada em maconha. Sou o traficante dela, sabe? Faz qualquer coisa em troca. Fizemos de tudo...
E descreveu com detalhes o “tudo”, que, devo dizer, não era pouco.
- E o o corno do namorado dela não sabe de nada, soltou uma gargalhada, que ecoou de forma sinistra pelo bar.
Não havia dúvida, era a menina com quem ele havia acabado de conversar. Não quis ficar mais tempo ouvindo aquilo, terminou sua cerveja e se despediu da criatura ao seu lado, deixando-o se vangloriar para outro alguém. No dia seguinte, tinha que ir embora. Passou pela manhã no endereço que havia anotado. Ainda cheio de coragem da noite anterior, tocou a campainha. Atendeu a mãe dela que respondeu que ela não estava. Tinha ido estudar.
Um comentário:
Frustração,decepção,construímos romances instântaneos que são golpeados pela realidade.......mas vale a vivência,o sonho,a adrenalina,não acha?
Bjos
Rita
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