O Elogio da Dúvida
Resenha-ensaio de “O Elogio do Amor”, de Jean-Luc Godard
Lauro José Maia Marques
Ficha técnica
Título: O Elogio do Amor.
Diretor: Jean-Luc Godard
Atores: Bruno Putzulu, Cecile Camp, Jean Davy, Françoise Verny.
Duração: 98 minutos.
Ano: 2001.
País: França.
“O elogio do amor”, o elogio “de alguma coisa”. A frase aparece, entrecortada, em letras brancas sobre a tela preta, insistentemente interrompendo a fruição contínua do filme. Desde os primeiros minutos do longa-metragem, de 2001, Jean-Luc Godard joga com a ambiguidade e o descontínuo, palavras-chave do cinema desse autor.
Neste, como em outros filmes do ex-crítico da revista Cahiers du Cinéma, nos anos 50, e um dos diretores mais marcantes do movimento cultural que redefiniu o cinema moderno para a França e para o mundo na década de 60, a Nouvelle Vague, ao lado de personalidades como Truffaut, Chabrol e Rohmer, não se trata de narrar uma estória, de forma clara, com começo, meio e fim, de modo a envolver — entretendo — o espectador, à maneira do cinema clássico hollywoodiano.
Trata-se antes de, partindo de uma idéia, por vezes imprecisa, e utilizando-se de um universo audiovisual heterogêneo, chegar-se a uma obra de ficção, que seja também um comentário crítico da realidade e do papel do cinema em lidar com essa mesma realidade.
O filme se desenrola em duas partes. Na primeira, filmada em preto e branco, um homem, chamado Edgar, tem um projeto vago: fazer um filme (ou um romance, ou uma peça, ou uma ópera, ele não sabe direito), na “tradição do documentário”, sobre os vários “momentos” do amor, atravessando a juventude, passando pela idade madura, até a velhice.
O projeto está desde o início fadado ao fracasso, pois “o que é um adulto?”, pergunta-se à certa altura Edgar. Os jovens e os velhos são evidentes, mas não os adultos, estes são difíceis de definir, podendo mesmo passar despercebidos. O que se dá em seguida é a narração da impossibilidade de se contar essa estória.
Edgar peregrina por Paris, (e nos faz lembrar imediatamente de Acossado (1960), primeiro filme de Godard, em que um não menos angustiado Jean-Paul Belmondo buscava freneticamente o sentido da vida e do amor nas ruas da cidade-fetiche do autor), procurando pessoas para seu projeto, com um livro em branco nas mãos, um livro sem frases, como um sinal dos tempos, da nossa época das imagens. A trama é um pretexto para Godard ir tecendo sua visão de mundo e do cinema, literalmente falando pela boca de suas criações.
“As coisas estão aí, por que inventá-las?”, questiona Edgar-Godard, parafraseando o neo-realista Rossellini, trocando “manipulação” por “invenção”. Na sequência seguinte há um corte para um casal de mendigos, enrolando-se em um cobertor imundo na calçada. É preciso observar a realidade ao invés de tentar extrair ficções dela, concordaria com ele Zavattini (Xavier 1977: 59) ― outro ícone do movimento cinematográfico da Itália do pós-guerra, cuja “fome de realidade” (Xavier 1977: 59), influenciaria o surgimento da Nouvelle Vague francesa. As coisas precisam resistir para que possam existir fora de nós, diferentemente das ilusões que criamos.
Contudo, o real luta contra revelar-se em sua inteireza. “Uma imagem nunca diz nada”, afirma Edgar. Ela sempre remete à outra, anterior. Não podemos pensar senão por meio de associações. Por isso, a opção pelo ensaio, como forma, e a “primazia da ambiguidade”, como “hipótese e método” (Xavier 1977:62). O que Godard é contra é o artificialismo da certeza (ilusória), celebrado por diretores como Steven Spielberg — uma crítica que já podemos encontrar em O Demônio das Onze Horas (1965): o Cinema é o reino da descontinuidade, posta aqui a serviço de um discurso ambíguo e de final em aberto.
A mulher ideal para o par amoroso na idade adulta, no projeto de Edgar, foi encontrada (e perdida para sempre) no passado, em que ocorre a segunda parte do filme, cronologicamente situada dois anos antes da primeira, e ironicamente rodada em imagens digitais em cores hipersaturadas. Imagens que brincam com as novas possibilidades tecnológicas e fazem eco a experiências recentes do diretor, como na série Histoire(s) du Cinéma (1989-98), mas também em La Puissance de la Parole (1988), ambos fundamentais para as relações entre a arte e a comunicação contemporâneas.
A ironia é que inverte o clichê cinematográfico (passado=preto e branco, presente=colorido), utilizando-se de imagens digitais coloridas para mostrar o passado, que é também a memória/ficção do personagem principal do filme. Ao introduzir um defeito na qualidade dessas imagens, rebela-se uma vez mais contra a fotografia limpa, asséptica, sem ruídos, hollywoodiana. Escolha técnica que faz todo sentido: insere um elemento estranho, impedindo a fruição espontânea, forçando o espectador a uma postura crítica sobre o significado do que está sendo mostrado.
O exato oposto do que ocorre em A Lista de Schindler, de Steven Spielberg, e seu final “real” filmado em cores. Nele vemos bem aonde o uso das convenções, mesmo quando visando uma pretensa objetividade, podem levar: em contraste com seu final, todo o resto do filme, o próprio Holocausto inclusive, corre o risco de ser tomado como uma ficção. A polêmica em torno do filme de Spielberg é o objeto recorrente das investidas de Godard em O Elogio do Amor.
Na segunda metade, principalmente ao final, a montagem adquire um ritmo caótico, com momentos de cinema poético puro e metáforas visuais reveladoras do discurso do autor. Tais como a de uma onda, que fundida à imagem, vai varrendo a tela, como se fosse apagando a memória dos fatos. Talvez querendo com isso dizer que a memória, apoderada por uma narrativa que abdica da ambiguidade, em função do espetáculo, redunda em esquecimento.
Ou quem sabe Godard quisesse nos reportar a Titanic — filme que é alvo de comentários, não muito elogiosos, no contexto da apropriação da memória pelo cinema americano, ao cabo de uma sequência em que um casal de ex-combatentes da resistência vendem sua história para os estúdios de Spielberg.
Há ainda uma terceira onda, menos vaga, a que Godard poderia estar se referindo: a do ressurgimento do fascismo na Europa. “A resistência conheceu a juventude, conheceu a velhice, mas não chegou jamais à idade adulta”, constata, no alto dos seus 71 anos. E o que aconteceu na França, no dia 21 de abril de 2002, quando dois partidos de extrema-direita obtiveram juntos 5,5 milhões de votos, no primeiro turno da eleição presidencial, servem, caso não servirem para mais nada, para confirmá-lo.
Resenha-ensaio de “O Elogio do Amor”, de Jean-Luc Godard
Lauro José Maia Marques
Ficha técnica
Título: O Elogio do Amor.
Diretor: Jean-Luc Godard
Atores: Bruno Putzulu, Cecile Camp, Jean Davy, Françoise Verny.
Duração: 98 minutos.
Ano: 2001.
País: França.
“O elogio do amor”, o elogio “de alguma coisa”. A frase aparece, entrecortada, em letras brancas sobre a tela preta, insistentemente interrompendo a fruição contínua do filme. Desde os primeiros minutos do longa-metragem, de 2001, Jean-Luc Godard joga com a ambiguidade e o descontínuo, palavras-chave do cinema desse autor.
Neste, como em outros filmes do ex-crítico da revista Cahiers du Cinéma, nos anos 50, e um dos diretores mais marcantes do movimento cultural que redefiniu o cinema moderno para a França e para o mundo na década de 60, a Nouvelle Vague, ao lado de personalidades como Truffaut, Chabrol e Rohmer, não se trata de narrar uma estória, de forma clara, com começo, meio e fim, de modo a envolver — entretendo — o espectador, à maneira do cinema clássico hollywoodiano.
Trata-se antes de, partindo de uma idéia, por vezes imprecisa, e utilizando-se de um universo audiovisual heterogêneo, chegar-se a uma obra de ficção, que seja também um comentário crítico da realidade e do papel do cinema em lidar com essa mesma realidade.
O filme se desenrola em duas partes. Na primeira, filmada em preto e branco, um homem, chamado Edgar, tem um projeto vago: fazer um filme (ou um romance, ou uma peça, ou uma ópera, ele não sabe direito), na “tradição do documentário”, sobre os vários “momentos” do amor, atravessando a juventude, passando pela idade madura, até a velhice.
O projeto está desde o início fadado ao fracasso, pois “o que é um adulto?”, pergunta-se à certa altura Edgar. Os jovens e os velhos são evidentes, mas não os adultos, estes são difíceis de definir, podendo mesmo passar despercebidos. O que se dá em seguida é a narração da impossibilidade de se contar essa estória.
Edgar peregrina por Paris, (e nos faz lembrar imediatamente de Acossado (1960), primeiro filme de Godard, em que um não menos angustiado Jean-Paul Belmondo buscava freneticamente o sentido da vida e do amor nas ruas da cidade-fetiche do autor), procurando pessoas para seu projeto, com um livro em branco nas mãos, um livro sem frases, como um sinal dos tempos, da nossa época das imagens. A trama é um pretexto para Godard ir tecendo sua visão de mundo e do cinema, literalmente falando pela boca de suas criações.
“As coisas estão aí, por que inventá-las?”, questiona Edgar-Godard, parafraseando o neo-realista Rossellini, trocando “manipulação” por “invenção”. Na sequência seguinte há um corte para um casal de mendigos, enrolando-se em um cobertor imundo na calçada. É preciso observar a realidade ao invés de tentar extrair ficções dela, concordaria com ele Zavattini (Xavier 1977: 59) ― outro ícone do movimento cinematográfico da Itália do pós-guerra, cuja “fome de realidade” (Xavier 1977: 59), influenciaria o surgimento da Nouvelle Vague francesa. As coisas precisam resistir para que possam existir fora de nós, diferentemente das ilusões que criamos.
Contudo, o real luta contra revelar-se em sua inteireza. “Uma imagem nunca diz nada”, afirma Edgar. Ela sempre remete à outra, anterior. Não podemos pensar senão por meio de associações. Por isso, a opção pelo ensaio, como forma, e a “primazia da ambiguidade”, como “hipótese e método” (Xavier 1977:62). O que Godard é contra é o artificialismo da certeza (ilusória), celebrado por diretores como Steven Spielberg — uma crítica que já podemos encontrar em O Demônio das Onze Horas (1965): o Cinema é o reino da descontinuidade, posta aqui a serviço de um discurso ambíguo e de final em aberto.
A mulher ideal para o par amoroso na idade adulta, no projeto de Edgar, foi encontrada (e perdida para sempre) no passado, em que ocorre a segunda parte do filme, cronologicamente situada dois anos antes da primeira, e ironicamente rodada em imagens digitais em cores hipersaturadas. Imagens que brincam com as novas possibilidades tecnológicas e fazem eco a experiências recentes do diretor, como na série Histoire(s) du Cinéma (1989-98), mas também em La Puissance de la Parole (1988), ambos fundamentais para as relações entre a arte e a comunicação contemporâneas.
A ironia é que inverte o clichê cinematográfico (passado=preto e branco, presente=colorido), utilizando-se de imagens digitais coloridas para mostrar o passado, que é também a memória/ficção do personagem principal do filme. Ao introduzir um defeito na qualidade dessas imagens, rebela-se uma vez mais contra a fotografia limpa, asséptica, sem ruídos, hollywoodiana. Escolha técnica que faz todo sentido: insere um elemento estranho, impedindo a fruição espontânea, forçando o espectador a uma postura crítica sobre o significado do que está sendo mostrado.
O exato oposto do que ocorre em A Lista de Schindler, de Steven Spielberg, e seu final “real” filmado em cores. Nele vemos bem aonde o uso das convenções, mesmo quando visando uma pretensa objetividade, podem levar: em contraste com seu final, todo o resto do filme, o próprio Holocausto inclusive, corre o risco de ser tomado como uma ficção. A polêmica em torno do filme de Spielberg é o objeto recorrente das investidas de Godard em O Elogio do Amor.
Na segunda metade, principalmente ao final, a montagem adquire um ritmo caótico, com momentos de cinema poético puro e metáforas visuais reveladoras do discurso do autor. Tais como a de uma onda, que fundida à imagem, vai varrendo a tela, como se fosse apagando a memória dos fatos. Talvez querendo com isso dizer que a memória, apoderada por uma narrativa que abdica da ambiguidade, em função do espetáculo, redunda em esquecimento.
Ou quem sabe Godard quisesse nos reportar a Titanic — filme que é alvo de comentários, não muito elogiosos, no contexto da apropriação da memória pelo cinema americano, ao cabo de uma sequência em que um casal de ex-combatentes da resistência vendem sua história para os estúdios de Spielberg.
Há ainda uma terceira onda, menos vaga, a que Godard poderia estar se referindo: a do ressurgimento do fascismo na Europa. “A resistência conheceu a juventude, conheceu a velhice, mas não chegou jamais à idade adulta”, constata, no alto dos seus 71 anos. E o que aconteceu na França, no dia 21 de abril de 2002, quando dois partidos de extrema-direita obtiveram juntos 5,5 milhões de votos, no primeiro turno da eleição presidencial, servem, caso não servirem para mais nada, para confirmá-lo.
REFERÊNCIAS
XAVIER, Ismail (1977). O discurso Cinematográfico. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
3 comentários:
Lauro, parabéns pela resenha. Eu nao vi este filme de Godard e agora fiquei com muita vontade de assisti-lo. Mas me lembrei de um livro que comprei em 1992 e desde então é meu livro de cabeceira "Esculpir o Tempo" do cineasta Tarkovski. E nele encontro muita coisa que vai de encontro com o seu ensaio. "Quanto menos acessível ao intelecto for uma obra, tanto maior ela será"(Goethe) / "A única maneira de alcançar a perfeição é evitar tudo que possa levar a um exagero consciente"(Paul Valéry) Um abraço
Lauro, posso publicar este teu ensaio sobre Godard na Revista da Casa das Musas deste mês? Abraço, Gustavo.
Ô Gustavo, o que você não pode, meu amigo? A única exigência, como das outras vezes é que me envie a revista pelo correio. Mudei de endereço, te passo o novo por e-mail.
Coincidência:
Escuto o Auto da Catigueira, de Elomar, neste momento, o 3º Canto, das Visage e das Latumia, lindo, que baixei nesse blog:
http://euovo.blogspot.com/2006/07/elomar-do-serto.html
Quando virá a Sampa? Procure-me!
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