Releio o volume 1 das Obras Completas de Jorge Luis Borges, publicada pela Editora Globo. Devo dizer que não escolho muito os autores que vou ler. Geralmente, os livros aparecem para mim e graças a Deus (isto é, ao Acaso) tenho tido sorte. Esse livro apareceu durante minha mudança de casa. Tentei resistir à leitura, pois tenho muito déficit a cumprir, mas não foi possível. Sobrevoei os poemas e novamente achei-os desinteressantes, como da primeira vez, esses poemas antigos de Borges, a não ser por terem sido escritos pela mesma mão que escreveu o Aleph ou Ficções. O melhor livro de poesia de Borges para mim ainda é o que ele ditou, já em um estado avançado de cegueira, aos 70 anos: O Elogio da Sombra, de 1969. Minha avaliação, como sempre, é pessoal. Esse livro também veio até mim pela mão de meu pai. Li-o quando já estava morto e li-o, lendo a sua leitura, por meio das marcas que deixou, em grafite, assinalando uma ou outra passagem. Não sei com quem está esse livro, procurei-o agora mesmo e não o encontrei. Em que mãos andará? Aguardo paciente o retorno. Livros são objetos carregados de afetividade. Não tenho muitas fotos em casa, nenhuma do meu pai. Fiquei com esse livro dele e uma edição dos contos de Poe, com a data de 1979, escrita à mão ―quando eu tinha sete anos e lembro que a capa em preto e dourado com um homem trajando um manto cheio de motivos geométricos e arabescos, terminando nuns quadriculados, acompanhado de um gato preto, povoou os meus pesadelos―, além de um ou outro volume de filosofia, que me esforço para me lembrar qual agora (talvez os Pensamentos de Pascal). O resto está espalhado pelo Rio de Janeiro, Alemanha e Natal, onde moram meus quatro irmãos.
Voltemos a Borges e às suas Obras Completas, Volume 1. Após passar a vista nos poemas, fui direto para a leitura que me prendeu ao livro, e que me fez chegar até aqui, a esse ponto do meu relato: o conto que dá nome ao título mais famoso de Borges: O Aleph. Uma vez que caímos na sua armadilha não o esqueceremos jamais. O Aleph é pois um tipo de Zahir borgeano, o objeto que é capaz de nos fazer esquecer todo o universo. No caso, o esquecimento pode ser das outras obras de Borges, assim como A Metamorfose é para alguns, péssimos leitores, o Zahir kafkiano, e não me admiraria se ele tivesse querido em algum momento desfazer-se desse conto. Mas é sem dúvida exagero dizer isso e só o faço por uma questão de estilo. O Zahir é tema de outro conto do livro, uma espécie de conto irmão deste, talvez escrito antes do Aleph, e em ambos o autor assinala, num epílogo de 1949, a influência da estória “The crystal egg” (1899), de Wells. Talvez o Aleph seja afinal um reflexo de uma outra miragem de Borges, de outro livro, anterior, Ficções, e dentro deste o conto: o Jardim de Veredas que se Bifurcam, o labirinto dentro de um livro, com suas dobras temporais: presente em que releio (e portanto situado no passado) e futuro em que será relido (fecha-se o círculo que é eterno). Começa-se a ler Borges e fica-se prisioneiro das referências, dessas palavras e termos, enriquecido pelo conhecimento, dessas metáforas vertiginosas, de sua
mise en abîme. Não se esquece, rememora-se, vai-se adiante e retorna-se. Não se deve ler Borges começando pelo Aleph, como fez um conhecido meu. As obras completas têm portanto essa vantagem, de trazer ao leitor recém-iniciado tudo de uma só vez. Ler saltando de uma estória a outra, e no tempo, é outro dos prazeres. Falei em enriquecimento e não há melhor palavra para descrever. Borges é o tipo de escritor que nos torna mais inteligentes, ou em contato com a sua inteligência superior, nos faz sentir mais inteligentes do que realmente somos. Abrem-se mundos, que não existiam antes, deuses que criamos, fala-se com os mortos, alguns até ressuscitam.