Eu escutava, no escuro da garagem, o rádio do fusca estacionado (um fusca lamentavelmente verde-abacate), em Mossoró, anos oitenta, interior do Rio Grande do Norte. Sentado no banco da frente, no lado do condutor, só a luz interna acesa, enquanto brincava com a direção do carro, a porta meio aberta, ouvia o locutor declamar “GOOOOOOOOOOOL” ― vibrava ― “DOOOO FLAAAMEEENGOOOO!!!... Ao redor, o silêncio da noite estrelada e quente mossoroense, a rua sem carros e sem asfalto, visível pelas frestas das grades do portão branco de ferro que separava a rua da casa, onde, de vez em quando, eu jogava bola até ficar tarde e minha mãe me chamar para dentro.
Mas a maioria dos meus jogos se passava de casa para dentro. Nos jogos solitários que inventava, como o “futebol de mão”, em que, usando uma bola de gude e duas traves improvisadas em cima da mesa, uma mão jogava contra a outra (havia muitos empates). Ou o “futebol de parede”, que consistia em chutar a bola com força contra a parede da garagem e rebater sem dar dois toques e nas poucas vezes que jogava com meu irmão mais novo (que, no entanto, preferia a leitura dos romances de Stendhal ao nobre esporte inglês).
Eu morava a poucos passos do estádio de futebol, o “Nogueirão”, um campinho de terra amarronzada e uma árvore solitária pouco frondosa separavam minha casa do local onde ocorria, a intervalos sucessivos, o clássico Potiguar versus Baraúnas ― eu nunca tinha entrado lá. Só uma vez, em 1985, quando tinha 14 anos, meu pai me levou para assistir ao jogo amistoso do Flamengo contra o Baraúnas. Os jogadores do Fla com o uniforme branco, o que eu mais gostava, com o qual a equipe conquistou o campeonato mundial de interclubes, em 1981. Era o grupo de Zico, Adílio, Júnior, Tita, Leandro, Andrade, Raul... O melhor time que o Flamengo já montou e que colecionou vitórias naquela década.
Os jogadores do Baraúnas iam a pé ou de bicicleta treinar ― daquelas bicicletas Monark barra-forte, de pedreiro. Um time que nunca havia ganhado nenhum título fora de casa, surgido inicialmente como bloco carnavalesco, cujo nome foi inspirado no cacique “Baraúnas”, líder da tribo Monxorós, que habitava a região. (Como, aliás, está dito no hino do clube, o qual, obviamente, eu nunca havia escutado: “Baraúnas, tu és origem / Da história que fez tradição. / Foste chefe, na mata virgem, / De uma tribo desta região...”).
É claro, na época, eu não pensava que nada disso fosse contraditório. Na verdade eu (ou era meu pai) odiava Mossoró. Torcer contra o time da cidade era perfeitamente razoável. Eu mesmo não havia telefonado uma vez, a pedido do meu pai, para uma emissora, num programa de rádio que denunciava as mazelas da cidade e dito a frase: “Agora desminta a Folha de São Paulo!”? Tudo por causa de uma matéria publicada naquele jornal que havia revoltado o município. Falava, entre outras coisas, das bicicletas (na ocasião, o número desses veículos por habitante em Mossoró era comparável ao da China) e das carroças disputando lugar com os carros. Eu havia depois desligado, deixando atônito e enraivecido no outro lado da linha o apresentador, que ainda tentou retrucar, deixando solto um início de resposta, evidentemente não ouvido, “Nós...” e depois falou disso ao vivo no programa ido ao ar em seguida.
Aqui cabe uma explicação. Meu pai e a família dele eram paraibanos, e ele havia se mudado a contragosto para Mossoró. A cidade era extraordinariamente quente e seca ― apesar das praias a pouco mais de 40 km, para onde nós, sem que eu encontre agora nenhuma explicação além da que irei dar a seguir, não íamos nunca. Meu pai detestava praia, gostava das serras paraibanas, onde havia se criado, e era capaz de dirigir um dia inteiro (com um braço quebrado e engessado, como ele havia feito uma vez levando a mulher e os filhos) para chegar à Paraíba. Na casa dos avôs, meus quinze tios viviam em pé de guerra, porque uns eram vascaínos, outros botafoguenses e outros, ainda, eram flamenguistas “doentes” como meu pai e eu.
Meu pai me punha na frente da TV vestido com o uniforme do Flamengo, todos os cinco filhos, na verdade, inclusive as duas meninas, uniformizados em frente à TV. E quando não passava o jogo do Flamengo, a salvação era o rádio. Aliás, ele desligava o som da televisão porque não suportava os comentaristas e ligava o rádio, cujos profissionais eram muito mais competentes e informados, segundo ele. No rádio, uma jogada que parecia completamente sem graça virava um momento emocionante, todos os momentos eram culminantes na narração e quando a jogada acabava, entrava o locutor anunciando a hora ou um reclame do Ponto Frio Bonzão (um nome que me fazia pensar não no Rio de Janeiro, mas num lugar gelado e tão distante de Mossoró quanto a Lua, como o Pólo Norte) e outras lojas que eu não conhecia.
O Nogueirão era palco, também, quando não tinha jogo, de torneios de bingo (para cada dezena sorteada, o locutor anunciava: “Núuuumero dez!”. Ou vinte, trinta etc. E acrescentava à frase um “De rombo!” para indicar, talvez para quebrar a rotina monótona dos jogos de bingo, que o número proclamado continha um zero)... E corrida de jegue. Eu gostaria que meu pai tivesse me levado pelo menos uma vez a uma daquelas sensacionais corridas de jegue. Eu só havia escutado a música tocando nos alto-falantes, que continha uma lição jamais esquecida (recordo até hoje): “O burro é quem merece uma medalha/ O burro é quem trabalha/ O burro é quem dá duro...”. E foi então que Zico e companhia, com seu uniforme branco no qual havia bordado, acima do peito, orgulhosamente, uma estrela amarela de campeões do mundo na final contra o time do Liverpool, em Tóquio, pisaram o mesmo gramado que os jegues já haviam adubado tantas outras vezes.
Vinte e três anos depois e me esforço para recordar como foi a partida. Em vão. Só me lembro dos uniformes brancos, de como gostei de estar no estádio com meu pai, torcendo pelo Flamengo, na arquibancada, e do formato redondo do estádio de cimento armado. Lembro que, comparado à proximidade dos “closes” da televisão, os jogadores pareciam pequenos de onde eles estavam.
Lembro de ter olhado para fora do muro e visto minha casa, onde ficaram minha mãe e meus irmãos. Da noite cálida e do campo verde ― não sabia que era tão verde, ou será que imagino agora que era tão verde? ―, dos mosquitos ao redor das torres de iluminação ― e imediatamente me recordo da vez em que uma coruja se perdeu e veio cair tonta no quintal de minha casa, por causa das luzes do estádio de futebol.
Lembro que estranhei a falta de “replay” nos gols, de meu pai e eu vestidos com a camisa do time rubro-negro (em nenhum momento pensei que fosse um time “carioca”). Meu pai com um radinho, que ele tanto gostava, de alça e botão seletor para mudar de estação. A sensação que tenho é de uma nostalgia silenciosa, de volta ao passado, com todas as sensações tácteis e visuais, mas nenhuma lembrança fixa, nem auditiva ou olfativa, um mergulho com bolhas numa piscina de água muito quente e muito funda.
Sim, havia outros flamenguistas, uma horda estranha como eram eu e meu pai, e vieram de todas as partes, de seus lares também silenciosos, naquele dia no estádio, mas eu não os conhecia e não fiz nenhum contato com eles, nem o meu pai. O que minha memória reteve foi um espaço vago e teatralmente iluminado na arquibancada, ocupado por meu pai e eu somente.
O que lembro, como se fosse hoje, é do verde do campo de futebol, do branco com listras em vermelho e preto do uniforme do Flamengo, da sensação térmica de calor envolvendo todos, onde talvez soprasse de vez em quando uma brisa noturna vinda daquelas praias afastadas e dos insetos em volta das luzes das torres do estádio, confundindo as aves noturnas.
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