Em
2014 ele completaria 100 anos, assim como outro argentino, Cortázar (quem se
importa com a idade aproximada de Cristina K?). Fala-se muito de Invenção de
Morel, seu romance “semiótico” por excelência, mas Diário da Guerra do Porco,
narrativa sempre atual de uma guerra movida pelos jovens para exterminar os
mais velhos (curiosamente, lembrei disso recentemente assistindo à série
italiana Gomorra), é imensamente superior, até, mas não só, pelo grau de
perturbação.
Antes
mesmo de Cortázar, talvez valha mais aqui a comparação de Bioy com Kaffka. No
romance Dormir ao Sol (baseado no qual existe um tentativa de adaptação para o
cinema que resulta um pouco involuntariamente cômica) temos a perspectiva de
alguém metamorfoseado num cão, incapaz de comunicar-se com o mundo exterior,
que só é capaz de enxergá-lo como um animal.
Mas
são nos contos - assim como em Kafka - que encontramos o escritor em um estado
muito próximo à perfeição. Como na magistral, ainda que breve, coletânea Historia
Desaforada publicada pela primeira vez em 1986, quando o autor tinha 72 anos de
idade. No
conto Planes para una fuga al Carmelo, ele retoma mais uma vez o tema do
extermínio dos velhos pelos jovens, numa ficção científica envolvendo o vizinho
Uruguai.
Já em Historia desaforada, que dá nome ao volume, e que dialoga com o
primeiro conto, a inspiração veio, segundo explica Bioy no prólogo do livro, de
uma frase de Bergson: “A inteligência é a arte de sair de situações difíceis”.
“Pensei que nesse momento para mim uma situação difícil era a velhice, e me
ocorreu a história de um professor que consegue isolar as glândulas da
juventude, para injetá-las em organismos decrépitos”.
Em
outro conto que integra a mesma coletânea, La rata o una llave para la conducta,
uma ratazana gigante, outro animal do bestiário de Bioy, que nunca aparece,
assombra um chalé de certo professor Melville (como o autor de Moby Dick). O
professor havia chegado a uma teoria segundo a qual “podemos averiguar a
verdadeira índole de nossos sentimentos” (se são bons ou maus), “mediante a
confrontação com a ratazana que há na casa”. A ratazana é a própria morte ou
“nossa desaparição e também a desaparição de todas as coisas, gente, história:
o mundo inteiro”.
***
Bioy
Casares também escreveu um diário de 1.700 páginas em que registrou suas
conversações com Borges. Num dos trechos iniciais, há uma breve discussão sobre
se deve publicar ou não. Reproduzo aqui mais ou menos exatamente o diálogo, um
dos muitos de que o livro é recheado. Borges, naquela ocasião, manifesta-se a
favor de que o escritor não deve se apressar em publicar, a fim de evitar a
vergonha posterior, que tarda mas não falha. Bioy contemporiza que sempre se
ganha algo em publicar, fica-se menos “vaidoso”. E não há coisa pior do que o
escritor que jamais escreve nada (o que Enrique Vila-Matas chamaria de complexo
de Bartleby e Roberto Arlt descreveu no conto O Escritor Fracassado). Pouco
antes ele havia registrado no diário um comentário de Silvina Ocampo, sua
esposa, de que, na opinião dela, ele escrevia melhor que Borges, a escritura
lhe sairia de modo “mais natural”.
***
De
las cosas maravillosas, publicado em 1999, foi a última pérola do colar de Bioy
Casares, que encontrei por insanos R$ 100,00 em uma livraria de São Paulo. Por
felicidade li-o inteiro de uma sentada, de graça, ali mesmo. No meio encontrei
esta anedota sobre as últimas palavras de Buster Keaton. Recordando a morte do
grande ator e diretor de comédias mudas, Bioy conta que alguém, junto à cama do
enfermo, observou que ele havia parado de respirar. Para saber se está morto –
retorquiu outro – “você tem que tocar nos seus pés. As pessoas morrem com os
pés frios. ‘Ah, Joana d’Arc, não’, disse Buster Keaton. E caiu morto.”
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