quinta-feira, 21 de julho de 2011

NOTAS DE ESTÉTICA


Revista Bula,
16 de novembro de 2005
Por Lauro Marques


POÉTICA DA INDETERMINAÇÃO

O livro Poetics of Indeterminancy - Rimbaud to Cage, de 1981, da crítica literária Marjorie Perloff, considerada uma das mais importantes em atuação nos Estados Unidos, teve seus direitos de publicação no Brasil adquiridos pela Azougue Editorial [www.azougue.com.br]. A tradução do livro ficará a cargo do poeta Caio Meira.

Eu assisti a um encontro com a crítica ano passado, na livraria da Vila Madalena, em São Paulo, promovido pela Revista Sibila de poesia. No encontro ela falou, entre outras coisas, que uma das maneiras de definir o porquê de algo "ser arte" seria uma pretensa “dificuldade na compreensão”.

Mesmo sem ter lido ainda o livro, e sem querer entrar no mérito desse último argumento, o qual sem dúvida nenhuma exige maiores explicações, por aí desconfio que a “indeterminação” que ela está propondo, de um poema, como O barco ébrio, ou Vogais, ou o clássico Uma temporada no inferno, todos de Rimbaud, seja apenas em função do alto grau de complexidade alcançado por essas obras, e não por uma impossibilidade absoluta de se lhes atribuir qualquer significado válido que seja (o que, ao meu ver, seria um contra-senso total).

Mas talvez a indeterminação a que se refere a autora venha exatamente da riqueza de interpretações possíveis oferecidas por uma mesma obra de arte.

DUCHAMP

Num pós-escrito de 1981, à segunda edição do livro, originalmente escrito em 58, Aesthetics - Problems in the philosophy of criticism, Monroe Beardsley pondera sobre o que chama de “os notórios quebra-cabeças como os ‘ready-mades’ de Duchamp e os objet trouvés”, os quais ele afirma ver “funcionando como declarações sobre arte, no lugar de obras de arte propriamente”. Duchamp (apud Affonso Romano de Sant’Anna, Desconstruir Duchamp 2003: 92) mesmo autoriza essa interpretação, em carta reveladora ao dadaísta Hans Richter, em 1961: “Joguei o urinol na cara deles como um desafio e agora eles o admiram por sua beleza estética”.

Porém não seríamos tão radicais a ponto de afirmar que não haveria nada de estético nesses objetos, que, afinal, adquiriram um valor em nossa cultura, a ponto de excitar o interesse, e a experiência estética deles, além de servirem de inspiração para quase todo tipo de produto artístico no século XX, de pintura a instalações. No caso da obra de arte poder ser considerada do ponto de vista da representação, como acreditamos que realmente possa ser, é factível pensar nesses “quebra-cabeças”, como os ironiza Beardsley, funcionando de várias maneiras dentro de uma semiose artística: como partes de uma obra em que um artista se refere implícita ou explicitamente a Duchamp (e à proposta/desafio de que “tudo é arte”, e portanto “qualquer coisa pode contar como arte”), ou como estando no lugar de uma teoria sobre arte, etc. De modo que não há na verdade, se formos parar para pensar bem, nenhum quebra-cabeça.

CAOS E ORDEM NA ARTE

Obras de arte parecem emergir do caos para uma certa ordem. Nesse sentido é que elas podem ser ditas “uma cooperativa compilação semioticamente considerada de signos” – de acordo com Joseph Ransdell, no ensaio intitulado The semiotical conception of the artwork, publicado no “Caderno do First Advanced Seminar on Peirce’s Philosophy and Semiotics”, Centro de Estudos Peirceanos, COS-PUCSP, 2002: 21. Um processo em que o produtor e os elementos que compõem a obra cooperam um com o outro, para um resultado “final”.

Uma exceção à regra poderia ser feita para algum tipo de arte que seria em tese melhor considerada como exibindo uma multiplicidade de partes desordenadas, ou mesmo emergindo da unidade para o caos absoluto. Mas isso é impossível ―pois alguma unidade, por mais aleatória que fosse, acabaria por se sobrepor à totalidade de partes desordenadas. Se a resultante disso seria “esteticamente boa” é outro caso.

É curioso constatar algo que ocorre nas bienais de arte, onde, por mais “caótica” que seja a proposta do artista, é sempre possível demarcar em que ponto começa e termina determinada obra. Por exemplo, seja pelo uso do material, ou por uma cor, etc, que acabam formando verdadeiras ilhas dentro dos espaços desse tipo de exposição. Sem falar nas “salas especiais”, onde o conceito de unidade já fica pressuposto. Falar da “caoticidade” da obra, por sinal, já é um traço distintivo de que alguma coisa foi alcançada, e não se trata de um caos absoluto, ou um puro nada, mas de uma escolha deliberada do artista. “A diversidade absoluta de um caos não poderia receber a ocasião de nenhuma ação e, por conseguinte, de nenhum pensamento” (Gaston Bachelard, Ensaio sobre o conhecimento aproximado, 2005). Mesmo no fato de um hapenning “acontecendo”, em várias partes, ao mesmo tempo, é pressuposto haver unidade. O que não abole o acaso.

Talvez por isso que o pintor britânico, nascido em Dublin, Francis Bacon, numa entrevista a Michel Archimbaud, a qual viria a ser a última que concedeu, tenha preferido comparar seu trabalho ao de um químico, no lugar de uma alquimia:

Não, é preferivelmente de química que se deve falar: é o fenômeno natural das substâncias que se misturam para originar outras substâncias. Não há mistério, se por mistério entendermos qualquer coisa que seria de um outro mundo. Tudo se passa aqui, debaixo de nossos olhos. O ateliê do artista, não é aquele do alquimista, que procura a pedra filosofal, alguma coisa que não existe em nosso mundo, ele seria muito mais o laboratório de um químico, o que não nos impede de imaginar que aí aparecem fenômenos inesperados, muito ao contrário”. (Entretiens avec Michel Archimbaud, 1996: 73).

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