sexta-feira, 14 de outubro de 2005

ESTÉTICA, PRAGMATISMO & SEMIÓTICA –UMA FILOSOFIA DA ARTE PEIRCEANA

Lauro José Maia Marques
(TEXTO DA PALESTRA A SER APRESENTADA NA 8ª JORNADA DO CENEP -CENTRO DE ESTUDOS PEIRCEANOS. 28 DE NOVEMBRO DE 2005. LOCAL: PUCSP, AUDITÓRIO - RUA JOÃO RAMALHO, 182 – TÉRREO. HORÁRIO: 8 ÀS 18 HORAS. POSTERIORMENTE SERÁ PUBLICADA NO CADERNO DA JORNADA.)


Resumo: Este artigo resume tese de doutorado, cujo objetivo foi desenvolver uma reflexão sobre a obra de arte, baseada em Charles Sanders Peirce. Buscamos aplicar conceitos extraídos da Fenomenologia, Estética, Semiótica, e Pragmatismo, para a construção dos fundamentos de um modelo teórico sobre arte, não desenvolvido pelo próprio autor, mas que se encontra potencialmente na sua vasta obra.

Abstract: This paper summarizes a thesis, which specific purpose was to develop a reflection about the work of art, found mainly in Charles Sanders Peirce’s Phenomenology, Semiotics, Aesthetics, and Pragmatism. In this thesis, we have tried to show evidence of an implicit Philosophy of Art in the author’s vast work.


A tese de doutorado, cujo resumo apresentamos, de forma sucinta aqui, nasceu de dissertação de mestrado anterior (Marques 2000), onde nos deparamos pela primeira vez com a Filosofia e a Estética de Charles Sanders Peirce ―seguindo de perto os passos do trabalho original e inspirador, desde então, desta pesquisa, da Profa. Dra. Lucia Santaella (1994, 1992). Baseamo-nos, naquela ocasião, principalmente, no interrelacionamento apontado por Santaella, da Estética com a Ética peirceanas. Vimos também que isso indicava um ideal estético da Razoabilidade crescente, concretizado em existentes, o qual se desenvolvia quando incorporado nas construções artísticas.

A questão da razoabilidade da arte, no entanto, permaneceu nos intrigando. Qual seria exatamente essa razoabilidade? Como a arte poderia cumprir a sua função no Summum Bonum? Peirce, ele mesmo, deixou apenas algumas pistas como resposta. Num dos poucos textos manuscritos em que ele se refere, de maneira mais ou menos direta a essa questão, ele afirma que: “a Qualidade estética” parece ser a “impressão total inanalisável de uma razoabilidade que se expressou numa criação. É um puro Sentimento, mas um sentimento que é a Impressão de uma Razoabilidade que Cria” (Peirce 2003: 230).

No decorrer de nossa pesquisa fomos lançados a realizar antes de tudo, um estudo da Fenomenologia peirceana: a primeira quase-ciência da Filosofia [i]. Esta, para Peirce, começa no estudo das categorias, que são as mais Universais que existem: Primeiridade, Secundidade, Terceiridade. Desses três conceitos básicos derivam uma Estética, Ética, Lógica (ou Semiótica) e até mesmo uma Metafísica cosmológica. E não só. Na verdade, como expomos no início do Capítulo 1, essas são também “as categorias de elementos formais integrantes de todo e qualquer fenômeno” (CP 1.284).

Esse primeiro capítulo era para ser introdutório dos conceitos básicos de qualquer estudo, e, portanto, para o desenvolvimento daquilo que estávamos propondo chamar de uma “Filosofia da Arte peirceana”. Tal Filosofia, expliquemos, seria evidenciada a partir não só do que Peirce elaborou sobre a Estética, como já havíamos tratado antes. A Filosofia da arte deveria se valer de todos os ramos da Filosofia peirceana. Demos à nossa investigação o nome de Filosofia da Arte, para deixar claro que nosso interesse era uma aplicação de aspectos parciais da Filosofia de Peirce, ao estudo da produção e interpretação de obras de arte. E não da Estética no sentido mais amplo, que pode levar, dentro da Filosofia peirceana, a caminhos os mais diversos, todos eles interessantes.

Partiríamos daí, dos conceitos extraídos dos vários ramos da Filosofia peirceana, e de sua interconexões, para uma discussão sobre obras de arte, dentro da proposta de entender um pouco melhor como elas poderiam contribuir para o crescimento da Razoabilidade, segundo afirmava Peirce. A passagem há pouco citada, em que Peirce se refere à “Qualidade estética”, como uma “Impressão”, já indicava que nosso primeiro capítulo teria de ser sobre a Fenomenologia. Uma vez que os termos Qualidade, Impressão, e Sentimento são praticamente sinônimos, e ocorrem, principalmente, nessa parte de sua Filosofia.

No CAPÍTULO 1, FENOMENOLOGIA DA ARTE: apresentamos as três categorias, Primeiridade, Secundidade e Terceiridade, nos seus traços essenciais de qualidade, reação e mediação. Delineamos, em seguida, uma distinção entre sentimento e sensação ―dois conceitos basais para a arte e o estudo filosófico desta. Em uma acepção, sentimento é uma qualidade de “senso interno”; isto é, de consciência imediata (CP 1.307), sem nenhuma atribuição a qualquer objeto que seja, e “de si mesmo”. Ou seja, independente de alguém experienciá-lo. Nessa acepção é qualidade de sentimento. Uma “qualidade em si mesma” é o que está na base de toda nossa experiência, embora não possamos atentar para ela. É uma pura qualidade antes de estar incorporada em qualquer coisa que seja. É uma mera potencialidade abstrata. Ela existe ainda que ninguém de fato a perceba. Seu Ser consiste em que é uma Possibilidade (CP 1.422). Experiências de Primeiridade Pura só podem ser concebivelmente imaginadas.

Three Studies for Figures at the Base of a Crucifixion.1944.Oil and pastel on hardboard.each panel 145x128 cm.The Tate Gallery, London
Já a sensação é um “senso de externalidade”; é o que está no início de um sentimento; sendo, portanto, um acontecimento, como por exemplo, o ato de ver um objeto vermelho. Na percepção, as qualidades ganham generalidade. Qualidades de sentimento, como uma cor vermelha, só podem ser reconhecidas como idéias gerais, reflexionadas. Isto é, prescindidas dos objetos. Idéias gerais associadas numa forma são “sentimentos vivos” (CP 6. 138). Os sentimentos que experienciamos em uma obra de arte podem ser rememorados e sentidos de forma subjetivamente intensa e continuar agindo sobre nós, muito tempo depois de as termos visto, escutado, lido, ou tocado.

A partir dos conhecimentos adquiridos até esse ponto, em nossa tese, e já principiando a introduzir elementos de Semiótica, analisamos um trecho de Peirce, que se revelou uma verdadeira chave de compreensão para outras passagens suas quando se refere à apreciação de obras de arte. Notemos que, na grande maioria das vezes, Peirce se refere a pinturas, quando especula sobre arte. Isso se refletiu também no nosso trabalho. As nossas análises foram baseadas principalmente em pinturas. Trata-se de uma redução que fizemos da Arte como pintura ―ou da “Pintura como Arte”, parafraseando título do livro de Wollheim (2002)— dentro de uma proposta de um modelo exploratório, esperando que venha a ser desenvolvido melhor por outros autores.

Peirce compara a obra de arte, um poema, uma sinfonia, e, por último, uma pintura, detendo-se nessa última, a um argumento. Ele afirma que: (1) assim como num argumento, o “efeito total” de uma pintura “está além do nosso reconhecimento”. Mas, (2) “nós podemos apreciar em alguma medida a Qualidade resultante de partes do todo” (EP2: 194, ênfase acrescida). O que significa isso em termos de um argumento, é que este pode ser avaliado criticamente, através da construção e observação de um diagrama, o qual representa a hipótese do argumento em questão. E através da observação do diagrama, por meio de uma reflexão, que fazemos sobre ele, ao perceber as relações entre as suas partes, a conclusão fica imediatamente clara.

Indo mais longe na analogia da obra de arte como um argumento, e guardadas as proporções, dissemos, então, que há um momento perceptivo da contemplação das qualidades de uma pintura, em que desapareceria a distinção entre a pintura, como um objeto existente, e as suas qualidades materiais corporificadas nesse signo ―e nesse momento, contemplaríamos a Qualidade resultante de partes do todo da pintura. Nesse momento contemplaríamos uma idéia geral, que se formou a partir da associação com outras idéias, na percepção. O primeiro efeito disso na mente de quem experiencia uma pintura, é um sentimento (interpretante emocional do signo). Tudo que podemos dizer a respeito da Qualidade total de uma pintura é através de uma reflexão sobre as qualidades que compõem as suas partes. Em certo sentido, é assim que podemos avaliar criticamente uma obra de arte.

Seguindo nesses argumentos, nossa abordagem baseou-se na experiência estética como sendo primeiramente uma questão de detectar propriedades estéticas, as quais podemos perceber numa obra, por meio de um exame atento daquilo que há nela, e de nos deixar guiar por suas relações, e pelas associações que daí surgem. Essas propriedades são qualidades reflexionadas, idéias gerais, propriedades intrínsecas, discriminadas do objeto e abstraídas de sua ocorrência individual. Propriedades que podem ser expressivas, incluindo os predicados emocionais, desde que exista uma base objetiva para o predicado. Quer dizer, desde que seja uma propriedade do objeto, que nos compele a um tipo de sentimento, ou interpretante emocional, quando atentamos para esse objeto. Quando uma idéia de algo, por exemplo, ser “repugnante”, surge a partir da experiência que temos de uma obra, o primeiro caráter dessa apreensão é o interpretante emocional. O reconhecimento dessas idéias, na mente, de ordem lógica, é em função de um interpretante lógico, que já é um pensamento, de natureza conjectural, ter se formado na percepção.

Qualidades estéticas, para Peirce, são quaisquer “simples qualidades de totalidades [idéias gerais] incapazes de corporificação completa nas partes, cujas qualidades podem ser mais fortes e decididas em um caso que em outro” (EP2: 201, ênfase acrescida), em si mesmas, não são nem boas nem más. O que significa dizer simplesmente, que há certa autonomia do objeto, em relação à sua recepção. Só quando atribuímos valor, dizendo de uma obra, que “é boa”, é que adquire uma função normativa, de algo a ser buscado. O fato de ser significativa é que torna possível o julgamento de valor estético que ela “é boa”.

Agora, o modo como as qualidades presentes nos objetos se combinam, em se tratando de signos artísticos, não-naturais, deve ser um meio para a realização do propósito envolvido na fabricação de uma obra de arte. Será através desse exercício de perceber e abstrair (contemplando as idéias, que se formam, por associação, com o que percebemos na pintura) que poderemos apreciar em alguma medida a qualidade total presente na obra; e nos aproximarmos, talvez, da “intenção” do artista.

A “intencionalidade” do artista, sabemos, é assunto polêmico. A apreciação da obra, para o artista, como boa, deve se dar em relação a algum propósito; isto é, se a qualidade que estava lutando ―inclusive com o material― para exprimir foi atingida ou não; e essa questão vai ser respondida de acordo com a maneira como ele próprio será afetado (cf. CP 2.81). Essa qualidade procurada não pode ser mais do que uma vaga noção na mente do artista. A avaliação da obra, como já dissemos, só pode ser feita através da apreciação da Qualidade resultante de partes do todo, sendo efetuada durante todo o processo criativo. Segundo o que diz Wollheim (2002:43), em uma pintura o olhar é o elemento imprescindível para essa avaliação. Em qualquer caso, seja qual for a intenção do artista, algo é trazido à luz, algo que “exibe afinidades com o que a mente outorga alguma aprovação” (EP1: 261). Isto é o que caracteriza o trabalho do artífice, segundo Peirce.

Do ponto de vista da obra de arte em processo semiótico, ela é uma representação (signo) capaz de criar seu próprio interpretante; isto é: uma interpretação de si própria, considerada em respeito ao seu conteúdo. A intenção do artista, de qualquer forma que isso se manifeste, deve ser inseparável da finalidade ―ou como prefere Ransdell (2002: 21), do télos inerente ou “direcionalidade”― em si da obra de arte.

No CAPÍTULO 2, SEMIÓTICA DA ARTE: Desenvolvemos melhor essas hipóteses a respeito da tendencialidade da obra de arte em gerar seu próprio interpretante, e a apreciação da Qualidade resultante de partes de uma pintura, a partir de um caso concreto.

HOPPER, Edward - Nighthawks. 1942. Oil on canvas. 30 x 60 in.The Art Institute of Chicago
Agora num nível maior de Terceiridade, na leitura de uma obra, em relação ao primeiro capítulo, procuramos evidenciar como raciocínios, a partir da percepção, podem se dar dentro da nossa observação de uma pintura: Notívagos, do pintor norte-americano Edward Hopper, tomada como estudo de caso, refletindo sobre o modo como o próprio pensamento, e sentimento, combinar-se-iam a partir da percepção das formas dessa pintura.

Aquilo que já sabemos, mistura-se ao que é percebido, através dos sentidos, e disso surge uma hipótese explicativa para o que vemos na tela. Isso, dissemos, seria suficiente, desde que haja um esforço de compreensão ―e também, obviamente, desde que haja algo, por mais vago que seja, sendo comunicado― para chegarmos a uma espécie de crença, ou aceitação de uma proposição, sobre determinado quadro.

Segundo Peirce, a generalidade “precipita-se sobre nós”, lenta e gradualmente, como o fluxo ininterrupto de um rio, ou à maneira de uma chuva de perceptos, “nos nossos próprios julgamentos perceptivos, e em todos nossos raciocínios” (CP 5.150). “Solidão”, no exemplo que demos, seria um conceito, interpretante lógico, uma idéia geral, como uma generalização de um sentimento, o que envolve uma associação de idéias na mente, pois se trata de um sentimento difundido, que se generaliza e ganha forma numa idéia geral, a partir da percepção do quadro de Hopper. O primeiro caráter, ou efeito disso em nossa mente, já dissemos, seria um interpretante emocional. A consequência disso é que um hábito de sentimento (que é também uma idéia geral) teria se formado em nossa consciência, a partir de tal generalização. O sentimento vivo de solidão, uma “perceptiva idéia geral” (cf. 6.143), seria uma “Qualidade resultante total” da pintura de Hopper. O sentimento conectado a isso, seria o primeiro possível efeito característico dessa pintura: o seu quale; a sua Impressão de Razoabilidade, que a torna significativa. Solidão e todas as idéias conectadas a isso dentro de um continuum infinito de idéias.

Daí nossa hipótese, levantada no segundo capítulo, de que a obra de arte poderia ser considerada um signo contribuindo para um argumento. Esse entendimento da obra de arte como um argumento, que já havíamos indicado em passagem anterior de Peirce, possibilitaria também compreendê-la como fazendo parte daquelas entidades que contribuem para o aumento da Continuidade sígnica, que é outra forma de Peirce descrever o Crescimento da Razoabilidade. Os artistas contribuem para esse ideal estético e ético apresentando objetos e idéias razoáveis, que sejam expressivas do “fato” ―algo que, ao cabo, é Real, como o “fato” da solidão é Real. Tanto quanto o branco, sobre branco, ou o orvalho, ou o amargo do orvalho branco são.

Na segunda metade do capítulo 2, antes mesmo de adentrarmos novamente a Estética Normativa elaborada por Peirce, como havíamos planejado, acrescidos agora de muito mais poder de fogo para análise, ainda assim, tentamos antes definir melhor a espécie de julgamento que fazemos sobre uma obra de arte. Isso nos levou a debater as idéias que vínhamos desenvolvendo a partir da Semiótica, contrapondo ao que Monroe Beardsley (1981) chamou de os problemas na Filosofia do Criticismo: a descrição, interpretação e avaliação crítica de obras. O último ponto, sendo mais crucial, relacionado ao julgamento de valor (de mérito ou demérito) estético, que, segundo Beardsley, seria também afirmação normativa.

Nessa parte aprofundamos a concepção semiótica da obra de arte, como um signo complexo, capaz de gerar seu próprio interpretante. No sentido de que se poderia sempre, em princípio, entender seu poder significante por meio de um exame do signo e, após uma inspeção detalhada, descobrir-se dentro dele elementos significantes do que ele próprio é um interpretante (Ransdell 2002: 9).

O mais importante é que o objeto, aquilo que a obra representa, faz sua aparição através da obra artística, funcionando a obra como uma representação do objeto. Ela pode ser um meio para a revelação ou apresentação de muitas coisas diferentes, em muitas maneiras diferentes. O objeto pode também ser de qualquer grau de complexidade (Ransdell 2002: 9-10).

Agora, como algo unificado, que se formou a partir da coalescência de partes díspares, a obra de arte deve possuir um caráter unitário. E é através do interpretante emocional (sentimento) que podemos primeiramente nos certificar desse caráter (uma qualidade) alcançado pela obra como um todo, por maior que seja seu nível de complexidade interna.

Unidade é um padrão estético e uma virtude a ser possuída por uma obra, segundo Beardsley (1981: lxi). Mais do que isso, unidade, em uma experiência, seria parte do que faz disso uma experiência estética. Dos outros dois padrões, propostos por Beardsley, que discutimos no capítulo 2, complexidade e intensidade de qualidade, unidade parece ser o mais importante. Também do ponto de vista da obra de arte considerada como uma representação, porque pressupõe algum controle crítico.

Ransdell (2002: 11-12) considera, de modo análogo a Beardsley, que aquilo que é produzido como arte, deve ser acessado em termos de uma “produção artística ou satisfação estética”, associado com “valores distintivamente estéticos”. O que significa, para ele, “avaliar as obras produzidas [...] porque a experiência delas tem intensidade, atratividade, e uma irresistível presença que as torna de extraordinário valor indiferentemente de outra crença sobre a sua função” (Ransdell 2002: 12, ênfase nossa).

Agora, alguma intensidade de qualidade é esperada de uma obra de arte. Não importando qual seja a qualidade ―se é alegre, triste, jubilosa ou rancorosa. É preciso ter em mente que uma qualidade pode ser atrativa independentemente de ser “agradável” ou “bela”. A qualidade pode ser desagradável, dependendo do objeto que está na origem da semiose e que está sendo revelado através da obra. Uma qualidade desagradável pode ser atraente, e portanto “satisfatória” ou prazerosa ―do ponto de vista do prazer estético, porque produz um sentimento concordante com o desenvolvimento da obra, por exemplo o sentimento despertado pela pintura de Goya ou de Bacon.

Isso trouxe consequências quando fomos analisar melhor a distinção dual da Estética Normativa, segundo Peirce, entre sentimentos prazerosos e não prazerosos, na última parte do capítulo. Em uma das suas últimas formulações, Peirce afirma que a Estética é “a ciência das condições de idéias atrativas e repulsivas” (EP2: 378, ênfase acrescida). Prazer ou desprazer são sentimentos secundários concomitantes e conseqüentes de uma percepção complexa (de uma imagem ou idéia). A Estética, ainda segundo Peirce, debate acerca dos sentimentos de prazer ou desprazer conforme ela sela com a sua aprovação (com o prazer) na percepção de imagens ou idéias. Portanto embora a Estética, para Peirce, como aventamos também nesse capítulo, em si mesma, não faça nenhum julgamento, ela está fornecendo um critério para uma avaliação crítica, uma “afirmação normativa”, de acordo com Beardsley (1981: 9).

Porém mais importante ainda, a nosso ver, Peirce está também apontando para a possibilidade do julgamento acerca do valor de idéias ou imagens em geral, e de obras de arte em particular, ser fundado na percepção. Essa conclusão nos levou a, no último capítulo, evidenciar esse caráter perceptivo da Estética Peirceana, ligado a uma atratividade das idéias, ao mesmo tempo em que retomamos alguns pontos, os quais havíamos deixado no capítulo anterior, sobre a modificação dos hábitos de sentimento, a partir da experiência estética das obras de arte.
Goya, Francisco.Saturn.c. 1821-1823.146 x 83 cm.Oil on plaster remounted on canvas.Museo del Prado, Madrid

No CAPÍTULO 3, PRAGMÁTICA DA ARTE: pudemos encarar com novos olhos a Estética peirceana, na compreensão da Razoabilidade da arte. Uma obra de arte é feita com o intuito de ser percebida, contemplada, experienciada, interpretada, de alguma forma. De fato, o primeiro intérprete da obra de arte é o seu próprio produtor. Agora, uma vez realizada a obra artística, em que o intérprete é um ser em potencial, ela é, por sua própria natureza interna de signo, algo que aspira a ser compreendido (interpretado). Afinal, como diz Peirce (EP2: 388), “Para que servem os signos? Eles servem para comunicar idéias”.

Várias das caracterizações do terceiro ramo da Semiótica, ao qual ligamos esse nosso último capítulo, a Metodêutica ou Retórica, dadas por Peirce apud Bergman (2000: 225, grifos nossos), vão no sentido de caracterizá-la, como estando devotada “ao estudo da transmissão do significado através dos signos, e às maneiras pelas quais um signo dá vida a outro” (CP 1.444; CP 2.229; NEM 4:331). Peirce também fala frequentemente do caráter “dialógico” do pensamento (um exemplo primordial de semiose, a ação dos signos) e chega mesmo a definir o signo como “um meio de comunicação”. As idéias que somos capazes de perceber numa obra crescem e se desenvolvem na mente, elas são “realidades vivas”.

O pragmatista, segundo Peirce (EP2: 388), “aceita como verdadeiro” que o Summum Bonum é o crescimento contínuo da Razoabilidade―“potencialidade da idéia”. E “a função própria do ser humano é dar corpo a idéias gerais em criações artísticas, em utilidades e, sobretudo, em cognição teorética” (CP 6.476). “Um processo gradual, que envolve uma realização de idéias na consciência do homem e em suas obras, e que tem lugar graças à capacidade do homem para aprender, e pela experiência continuamente precipitando sobre ele idéias que ele não tinha ainda adquirido” (CP 5.402, n. 2).

O modo como a obra de arte pode realmente comunicar alguma coisa é através da formação de hábitos de sentimentos, algo que envolve já mediação. Essa consideração passou a ocupar uma posição central dentro da nossa compreensão da Estética peirceana como uma teoria da formação deliberada de hábitos de sentimentos, como descrevemos em detalhes nesse capítulo final.

O prazer estético emerge a partir da constituição de um novo hábito de sentimento. Hábito que se formou ao longo de um processo de associação de idéias na mente de quem experiencia uma obra. Hábitos de sentimento correspondem a idéias gerais. Um hábito, ou “um conceito”, segundo Barnow (1989: 172), envolve essencialmente a relação mútua de sentimentos. “Um intervalo finito de tempo contém em geral uma série inumerável de sentimentos”. E quando esses sentimentos “se fundem numa associação”, como já foi dito, “o resultado é uma idéia geral”, cujo primeiro caráter da idéia que assim resulta “é que se trata de um sentimento vivo” (6.137-8, grifos nossos). Esse caráter é o que torna um hábito capaz de dar início a uma resposta.

Hábitos de sentimento podem ser desenvolvidos, através de um envolvimento crítico com as obras. O que envolve percepção e esforço, surpresa e imaginação. Nenhuma nova associação, nenhum novo hábito surge sem isso. Perceber, para Peirce, é fazer uma hipótese sobre aquilo que vemos. A única diferença disso para um pensamento é que essas inferências que fazemos a partir da percepção não são controladas. Sentimentos se forçam sobre nós e nos estimulam a pensar.

A experiência estética, no contato real que podemos ter com as obras de arte, deve ser causadora de alguma forma de resistência, a qual irá suscitar, por sua vez, naquele que experiencia, uma ruptura, e, por meio de esforço e reflexão, um novo hábito de sentimento poderá vir a ser formado. Se, como diz Potter (1967: 20), hábitos podem ser alterados, modificados ou rejeitados em termos do choque da experiência e “entender a idéia de uma obra de arte é mais como ter uma nova experiência” (Langer 1980: 259), então, novos hábitos podem ser adquiridos através da experiência estética; ao ficarmos expostos, em todos os sentidos da palavra, à ação das obras de arte.

A experiência, para Peirce, é cognitiva. Isto é, ela é um efeito na consciência produzido por algum objeto ou evento atual. “Experiência significa apenas aquilo, cuja natureza é cognitiva, que a história de nossas vidas forçou sobre nós” (CP 5.348)[ii]. Esses são os “efeitos sensíveis”, ou seja, “experienciáveis”, que, em termos semióticos, formam o interpretante dinâmicodo signo.

Começamos a tentar entender o significado de uma obra de arte, a partir de uma série de exercícios internos, provocados por uma experiência externa. O que implicará sempre, como de fato fazemos quando desejamos compreender melhor o sentimento “razoável” ou a “impressão de razoabilidade”, provocada pela experiência de uma obra, numa atividade da consciência (interna). A qual, se intensificada por um esforço submetido ao autocontrole ―empenho que poderíamos classificar como sendo todas as nossas tentativas de esclarecer o significado de uma obra de arte, durante, ou após, ficarmos expostos à sua ação, o que poderia incluir inclusive escrever sobre isso, e também todas as leituras, palestras, discussões, ou seja, todas as mediações da heterocrítica, que podemos supor, além disso, fazendo parte de nossa bagagem cognitiva, no momento em que conjecturamos sobre o significado de uma determinada obra ―resultará em novos hábitos, os quais irão influenciar o comportamento externo: Isto é: como iremos reagir diante de outras obras ou eventos no futuro.


Referências Bibliográficas

BARNOUW, Jeffrey (1989). The place of Peirce’s esthetic in his thought and in the tradition of aesthetics. Peirce and value theory: on Peircean ethics and aesthetics. Amsterdam: John Benjamins, p. 155-178.
BEARDSLEY, C. Monroe (1981). Aesthetics – Problems in the philosophy of criticism. Indianapolis-Cambridge: Hacket.
BERGMAN, Mats (2000). Reflections on the role of the communicative sign in semeiotic. Transactions of the Charles S. Peirce Society. Vol. XXXVI, nº 2, p. 225-254.
LANGER, Suzanne K. (1980). Sentimento e forma. São Paulo: Perspectiva.
MARQUES, Lauro J. M. (2000). A estética pragmaticista de C. S. Peirce. Dissertação inédita de mestrado, PUCSP.
PEIRCE, C. S. (1931-58). Collected papers of Charles Sanders Peirce. Charles Hartshorne, Paul Weiss e Arthur Burks (eds.), 8 vols. Cambridge: Harvard University Press. As referências indicam o número do volume e do parágrafo: (CP 1.1).
PEIRCE, C. S. (1976). New elements of mathematics. Carolyn Eisele (ed.), 4 vols. The Hague: Mouton. As referências indicam o volume e o número da página: (NEM 4: 239).
PEIRCE, C. S. (1992). The essential Peirce 1. Nathan Houser et al. (eds.). The Peirce edition project. Bloomington, Indiana: Indiana University Press. As referências indicam o número da página: (EP1: 1).
PEIRCE, C. S. (1998). The essential Peirce 2. Nathan Houser et al. (eds.). The Peirce edition project. Bloomington, Indiana: Indiana University Press. As referências indicam o número da página: (EP2: 1).
PEIRCE, C. S. (2003). Manuscrito 310.1-14. Conferências sobre o pragmatismo – Conferência V. Tradução, apresentação e notas de Lauro José Maia Marques. Cognitio – Revista de Filosofia. Vol. 4, nº 2, p. 227-231.
POTTER, Vincent G. (1967). On norms and ideals. Amherst: The University of Massachusetts Press.
RANSDELL, Joseph (2002). The Semiotical conception of the artwork. Caderno do First Advanced Seminar on Peirce’s Philosophy and Semiotics. Centro de Estudos Peirceanos, COS-PUCSP, p. 05-28.
SANTAELLA, Lúcia (1992). A assinatura das coisas. Peirce e a literatura. Rio de Janeiro: Imago.
SANTAELLA, Lucia. (1994). Estética: de Platão a Peirce. São Paulo: Experimento.
WOLLHEIM, Richard (2002). A pintura como arte. São Paulo: Cosac & Naify.

____________________________

[i] Servimo-nos em grande parte, nesse ponto, de uma monografia realizada para a disciplina “A Interpretação das Aparências: As Raízes da Semiótica na Fenomenologia”, ministrada pelo Prof. Dr. Ivo Assad Ibri, no curso de Comunicação e Semiótica da PUCSP, 1º semestre de 2001. O fato de termos cursado essa disciplina nos chamou a atenção para a importância de um maior aprofundamento na Fenomenologia peirceana, como uma forma de tornar mais clara a compreensão da Semiótica ―e também da Estética― de C. S. Peirce.
[ii] Todo o conteúdo da consciência, “a inteira manifestação fenomenal da mente”, para Peirce, é cognitivo (CP 7.591; CP 5.311; CP 5.313).

4 comentários:

Anônimo disse...

Prezado Lauro,



Lindo seu artigo. Convido-o a pulicá-lo na íntegra na próxima Aísthesis. Finalmente já temos um patrocinador, a UNISO - Universidade de Sorocaba para onde me mudo em, fevereiro/2006, em função das 40 horas/aula de dedicação integral ao pós. Meu espaço múliplo de arte será inaugurado no dia 29/10/2005 com uma mega exposição de ex-votos.

Espero por vocês.

jorge a

Anônimo disse...

Tenho estudado Husserl agora, e acabo de escrever um artigo a respeito. Sinto que ele tem uma atitude menos metafisica em relação ao fenomeno, ao mesmo tempo anti-naturalista.
A ideia da imagem como ato de consciencia ajuda a explicar
o porque da experiencia de misterio. este é meu argumento
do curso que estou dando. Desenvolvo os detalhes a partir de Eugen Fink,o fiel escudeiro de Husserl. Aliás, para quem considera
o signo como um dado primordial, é um autor que chacoalha isso tudo,
parece ir mais na base da experiencia de consciencia.
Sobre seu texto, acho muito claro e bem organizado.
Acredito que a diferenciação entre sentimento e sensação
fica clara, mas não entre sensação e percepção.
como ela vira qualidade de sentimento, tudo fica meio
estranho...(isto, claro, porque nao subentendo pierce).
De resto, achei muito pertinente e interessante.

Lauro Marques disse...

Olá Léo Leonardo,

Sobre Hurssel achei interessante o que vc falou. Gostaria de entender
melhor para poder discutir com vc, será que vc poderia me mandar esse
artigo?

Para um mergulho na Fenomenoligia de Peirce, sugiro a leitura deste ensaio
(que usei na tese):
"Is Peirce a Phenomenologist?"
[http://members.door.net/arisbe/menu/library/aboutcsp/ransdell/phenom.htm]

Uma imagem percebida, para Peirce, é um ato, ou melhor, corresponde a uma espécie de consciência.

"Mistério", há um sentimento de mistério? Sem dúvida. Algo PARECE
misterioso. Eu falei na tese, citando alguém, que o quadro de Hopper "Notívagos" veicula uma atmosfera de mistério, "típica dos filmes noir", que podemos PERCEBER ao olhar para a tela.

Eu também não vejo muita diferença entre percepçao e sensação. A
percepção/sensação antecede o sentimento (falando no nterpretante
emocional, o efeito cognitivo de um signo, em uma consciência). Porém uma qualidade de sentimento, em si mesma, independe de qualquer percepção. Há mistério em Hopper independentemente de eu e você presenciarem isso.

Obrigado pelo comentário, vamos continuar discutindo esse assunto.
Escreva-me dizendo o que achou dessas minhas últimas colocações. Sem dúvida fica algo misterioso, é impossível quando se fala nessas coisas ser 100% claro. Algumas questões me deixaram quase louco e com muita raiva, por não conseguir resolvê-las. Bem, mas eu tentei.

Anônimo disse...

Oi Lauro,

Logo te mando o texto sobre imagem, ainda estou finalizando... Acho que ha sintonias com a visao de peirce sobre a consciencia, mas tem boas e grandes diferencas.
Pra falar a verdade os dois leram hegel e fizeram suas variacoes pessoais, me parece. misterio, pois é o noir no cinema...quadros, legal isso sobre o hopper. tenho apresentado quadros diferentes de velazquez, picasso, fotos do século XIX etc. Quem fala a respeito tambem é o meu querido nelson brissac, com base
em sontag.

obrigado pela explicação sobre pierce, nao entendo quase nada do assunto. senti apenas essa coisa de percepcao e sensacao meio misturada.
Sou meio cartesiano nessas coisas que nao conheço, seu texto esta muito claro e é muito pertinente.
Vou ler suas poesias.
Muito grato
Abracos,

Leo