quarta-feira, 21 de abril de 2010

Filme em preto e branco

Chove há quatro dias consecutivos na cidade, que respira aliviada depois de um período prolongado de muita estiagem e secura. Mas não é uma chuva intensa, maciça, e sim chega a ser delicada, porém insistente, generosa, ininterrupta, mas sem ser excessiva, cobrindo a cidade e os habitantes com uma camada líquida que deita e literalmente rola pelos ombros dos homens e pelas ruas acidentadas, ladeira abaixo, formando verdadeiras cascatas e rios nos asfaltos e paralelepípedos, correndo por entre carros e homens ― e não parando nem para um nem outro.

Há um trilha sonora intensa e maravilhosa que sufoca os barulhos dos carros e quase que muda se faz ouvir surpreendentemente por cima dos ruídos. Os movimentos dos passantes se tornam lentos e algumas vezes incômodos, como que convidando à reflexão. Diferentemente dos dias ensolarados, em que cada um vai para aonde quiser, na hora que bem entender, a passos rápidos, esportistas, aqui vemos os guarda-chuvas se abrirem e se fecharem formando verdadeiros círculos de veículos separados, isolando seus condutores em cabines únicas, na maioria de cor preta, individualizadas.

O dia inteiro pouco se viu de luz. Embora não estivesse tão escuro a ponto de se acenderem as lâmpadas dos postes, como sói ocorrer às vezes, quando somos pegos de surpresa e quase sempre nos causa uma sensação desagradável de angústia de não saber as horas nem onde estamos. Havia luz, mas filtrada pelas nuvens e pela poluição, chegava aqui em baixo esmaecida e opaca, só tornando o concreto ainda mais feio e cinza, como num filme em preto e branco, feito intencionalmente dessas cores, ao qual assistimos mornamente, com um misto de interesse e tédio, apenas para num determinado momento espetacular de epifania nos depararmos com o conhecimento de que é para nós a nossa própria vida.

4 comentários:

Walmir disse...

bonito texto, bendita chuva.
no sertão mineiro fez uma falta grande. Nesta semana choveu. Tomara continue e volte o verde. Quem estava gostando era urubu pastando bicho morto de sede. Agora vão ter que catar algum afogado.
Paz e bom humor.
http://walmir.carvalho.zip.net

medusa que costura insanidades disse...

ESte texto é muito poético, acho que é o mais lindo que já li sobre a chuva...és um ótimo escritor,te admiro muito!
bjos
Rita

Lauro Marques disse...

Puxa, Walmir, Rita, obrigado pelos comentários! Rita, obrigado MESMO. Seus comentários são sempre um incentivo.
Abração

rosilene fontes disse...

Lindo mesmo. E concordo com a medusa