I
Há livros que não deveríamos ler. Que querem dissipar suas sombras
tristes sobre nós, através de nós, tornando-nos seus personagens. Livros
assim escravizam. Talvez Onetti fosse louco, assim como todos os
grandes escritores (Joyce, Céline, Becket). E talvez escrever seja uma
forma de ir adiante. Levantar-se, preparar o café com ovos mexidos,
limpar-se, tomar banho, abotoar o paletó e dirigir-se até o escritório.
Enquanto sente-se avolumar ao redor as ondas surdas do caos.
II
A
"Vida breve", de Onetti, é também cruel . Me fez lembrar de Céline.
Personagens esquisitos, desesperados, a morte rondando ao lado,
inquieta. E de vez em quando, frases como essa, entre parêntesis, que
iluminam o texto como um clarão de cemitério: "(Alguém pisa,
estrangeiro, as folhas caídas no bosque; damos sepultura, sem pompa, à
última rosa desse verão chuvoso.)". Enquanto gotas, reais, de chuva
lavam a janela do apartamento onde digito isso e uma mulher grita, na
casa da rua embaixo, pela terceira vez com o cachorro (que insiste em
latir).
III
Achado escrito à mão num
marcador dentro do livro "A vida breve", de Juan Onetti: "Gosto dos
livros porque são solidões portáteis". (A frase, talvez seja necessário
acrescentar, é minha).
IV
No fim do
romance "A Vida Breve", os personagens, que, diga-se de passagem, são
produtos da fantasia criados por outro personagem, Juan María Brausen,
estão fugindo da polícia. Fantasiados, "excessivamente escondidos no
Carnaval", sem roupas para trocar e sem nenhuma perspectiva, sem
dinheiro nem documentos, deixados para trás na fuga, sem ter mais para
onde correr, eles sabem que quando acabar esse que é o último dia de
folia, eles não vão conseguir passar mais despercebidos. É a hora em que
está amanhecendo em Buenos Aires e eles estão sentados numa praça
enquanto brindam à má sorte com copos vazios e a um homem muito velho
que "alimentava-se de minúsculos mistérios sem importância. Na hora da
morte acreditou que se salvaria dizendo estar com sono".