terça-feira, 6 de outubro de 2015

Nota sobre Bioy Casares

Em 2014 ele completaria 100 anos, assim como outro argentino, Cortázar (quem se importa com a idade aproximada de Cristina K?). Fala-se muito de Invenção de Morel, seu romance “semiótico” por excelência, mas Diário da Guerra do Porco, narrativa sempre atual de uma guerra movida pelos jovens para exterminar os mais velhos (curiosamente, lembrei disso recentemente assistindo à série italiana Gomorra), é imensamente superior, até, mas não só, pelo grau de perturbação.

Antes mesmo de Cortázar, talvez valha mais aqui a comparação de Bioy com Kaffka. No romance Dormir ao Sol (baseado no qual existe um tentativa de adaptação para o cinema que resulta um pouco involuntariamente cômica) temos a perspectiva de alguém metamorfoseado num cão, incapaz de comunicar-se com o mundo exterior, que só é capaz de enxergá-lo como um animal.

Mas são nos contos - assim como em Kafka - que encontramos o escritor em um estado muito próximo à perfeição. Como na magistral, ainda que breve, coletânea Historia Desaforada publicada pela primeira vez em 1986, quando o autor tinha 72 anos de idade. No conto Planes para una fuga al Carmelo, ele retoma mais uma vez o tema do extermínio dos velhos pelos jovens, numa ficção científica envolvendo o vizinho Uruguai. 

Já em Historia desaforada, que dá nome ao volume, e que dialoga com o primeiro conto, a inspiração veio, segundo explica Bioy no prólogo do livro, de uma frase de Bergson: “A inteligência é a arte de sair de situações difíceis”. “Pensei que nesse momento para mim uma situação difícil era a velhice, e me ocorreu a história de um professor que consegue isolar as glândulas da juventude, para injetá-las em organismos decrépitos”.

Em outro conto que integra a mesma coletânea, La rata o una llave para la conducta, uma ratazana gigante, outro animal do bestiário de Bioy, que nunca aparece, assombra um chalé de certo professor Melville (como o autor de Moby Dick). O professor havia chegado a uma teoria segundo a qual “podemos averiguar a verdadeira índole de nossos sentimentos” (se são bons ou maus), “mediante a confrontação com a ratazana que há na casa”. A ratazana é a própria morte ou “nossa desaparição e também a desaparição de todas as coisas, gente, história: o mundo inteiro”.

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Bioy Casares também escreveu um diário de 1.700 páginas em que registrou suas conversações com Borges. Num dos trechos iniciais, há uma breve discussão sobre se deve publicar ou não. Reproduzo aqui mais ou menos exatamente o diálogo, um dos muitos de que o livro é recheado. Borges, naquela ocasião, manifesta-se a favor de que o escritor não deve se apressar em publicar, a fim de evitar a vergonha posterior, que tarda mas não falha. Bioy contemporiza que sempre se ganha algo em publicar, fica-se menos “vaidoso”. E não há coisa pior do que o escritor que jamais escreve nada (o que Enrique Vila-Matas chamaria de complexo de Bartleby e Roberto Arlt descreveu no conto O Escritor Fracassado). Pouco antes ele havia registrado no diário um comentário de Silvina Ocampo, sua esposa, de que, na opinião dela, ele escrevia melhor que Borges, a escritura lhe sairia de modo “mais natural”.

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De las cosas maravillosas, publicado em 1999, foi a última pérola do colar de Bioy Casares, que encontrei por insanos R$ 100,00 em uma livraria de São Paulo. Por felicidade li-o inteiro de uma sentada, de graça, ali mesmo. No meio encontrei esta anedota sobre as últimas palavras de Buster Keaton. Recordando a morte do grande ator e diretor de comédias mudas, Bioy conta que alguém, junto à cama do enfermo, observou que ele havia parado de respirar. Para saber se está morto – retorquiu outro – “você tem que tocar nos seus pés. As pessoas morrem com os pés frios. ‘Ah, Joana d’Arc, não’, disse Buster Keaton. E caiu morto. 

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Novo livro de poesia

Meu segundo livro de poesia, na Amazon. 93 p (tamanho Ebook). Pode ser lido em qualquer dispositivo, celular, tablet ou computador. Quem escreveu, editou, diagramou, sofreu, gozou, revisou e fez a foto da capa fui eu mesmo. Para pagar toda essa equipe o livro custa R$ 17,54 , dos quais 70% são para mim, 30% para a Amazon, justíssimo. Se não vender nada, hipótese mais que provável, meu prejuízo será zero também. Também pode ser lido de graça através de cadastro na Amazon. Brasil, pátria educadora.

terça-feira, 21 de julho de 2015

Conto fantástico: O número de vidas do gato

Em 3015, o transplante de cérebro para clones feitos sob medida a partir do DNA de mortos famosos nos séculos passados tornou-se algo comum.






terça-feira, 7 de abril de 2015

Aniquiladores



Schlegel, que a irmã dizia que tinha cara de bobo, numa inventiva contra os árabes escreveu em 1798 que estes eram "aniquiladores entre as nações" e uma "natureza extremamente polêmica", porque tinham predileção em destruir os originais depois de traduzi-los para sua língua nativa. Ironicamente, segundo ele, "talvez por isso mesmo fossem infinitamente mais cultos, mas, apesar de toda cultura, mais puramente bárbaros que os europeus da Idade Média. Bárbaro é aquilo que é ao mesmo tempo anticlássico e antiprogressivo". Em outra passagem, acrescenta: "Os árabes absolutizam em toda a parte. O que não lhes parecia útil, destruíam imediatamente".

Absolutamente Nada


Lendo "Absolutamente nada", seleção de textos de Robert Walser (que o vendedor entendeu Roberto Salsa e depois emendou uma valsa), me esforçando para gostar. O homem era admirado, segundo me informa a contracapa, por ninguém menos que Walter Benjamin, Musil, Kafka e Herman Hesse, que escreveu: "Se Walser tivesse cem mil leitores, o mundo seria um lugar melhor". Alguns contos são de uma singeleza que nossa época brutal não mais permite. De tão evanescente fica-se um gosto de nada. Algumas imagens são decididamente clichês e pelo menos um conto, "O bote", na minha opinião não mereceria estar na seleção do tradutor Sergio Tellaroli. Por outro lado, há uma crônica genial sobre as calças compridas das mulheres, escrita em 1911, na qual o autor parece adivinhar o futuro. E eu me lembrei de Antônio Maria, o genial cronista brasileiro, que teve a desgraça de escrever em português, num país que não existe no mapa. Antonio Maria por sinal faria 94 anos em 17 de março - ninguém lembrou. Outro conto, "A história de Helbling", lembra o escrivão Bartleby de Herman Melville e Fernando Pessoa, do Livro do Desassossego.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Lapouge e as cidades brasileiras


Resenha-artigo

Por Lauro Marques

“São Paulo não é feia ou bonita. São Paulo é um monstro”. Gilles Lapouge dá uma das melhores definições do Brasil e das cidades brasileiras em seu impagável “Dicionário dos apaixonados pelo Brasil” (editora Amarilys, 2014).

A tradução “Dicionário Amoroso” do título, como no francês original em que foi lançada a obra, “Dictionaire amoureux du Brésil”, ficaria melhor. Sim, é amoroso e nos deixa nus como índios cabralinos.

São Paulo, de acordo com o verbete sobre as aglomerações urbanas locais, é uma “periferia infinita”, onde procuramos e nunca encontramos as portas da cidade. Estamos sempre “ao redor da cidade”. É o ápice da cidade portuguesa, “construída às cegas, de qualquer jeito, em qualquer lugar”.

Por isso as sinuosidades são mantidas em nossas vilas e cidades, cheias de declives, vales, ladeiras. Por isso são belas, diz, amorosamente, Lapouge. Por isso, acrescento, não pensamos em construir calçadas, ou vias e estradas funcionais ou abastecimento hídrico planejado.

Por isso também as ciclovias de São Paulo, destinadas em grande parte aos fantasmas e zumbis (*), que são seus nem sempre ocultos habitantes.

Rejeitamos a geometria voluntária da urbe espanhola (ademais, já existente na América pré-hispânica, enquanto aqui ainda não conhecíamos a roda). À lógica, preferimos a intuição.

Quem ousou contrariar essa inclinação foi Niemeyer e sua Brasília utópica - uma utopia, apesar da rima ser rica, estranha, no entanto.

Em lugar de ângulos retos, a curva. (A primeira cidade utópica “mulher”, segundo Lapouge). Em lugar de ruas e esquinas, “asas”, “blocos” e “setores”.

Uma cidade-hieróglifo para ser vista do avião, como uma mensagem no deserto aos deuses (deixada por um comunista!) e inabitável ao rés do chão.

Livro inspirador, voltarei a ele outras vezes.

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(*) Véspera do Natal, saída do túnel da Paulista em direção a Dr. Arnaldo. Sou pego em uma cena de filme de Zumbi. Dentro do túnel, ocupando as laterais dos dois lados da pista, numa semiescuridão, um grupo se amontoava (provavelmente viciados em crack). A maioria homens, talvez não muito velhos, barbudos, cabeludos, desgrenhados, famélicos, roupas em frangalhos e cobertos de sujeira. Corpos enegrecidos, encolhidos, sentados um ao lado do outro, as mãos agarrando os joelhos, olhando para frente. As cabeças meio inclinadas, em silêncio absoluto, como se numa espécie de comunhão, sem fogo. Véspera de Ano-Novo, continuavam lá. À passagem rápida dos carros, um deles se levantou, um pé tocando o asfalto, antepondo a silhueta avermelhada contra a luz no final do túnel, que agora me lembrava também uma caverna pré-histórica. Papelões voavam no meio da pista.


Nota do autor: Talvez tenha carregado muito nas tintas na descrição. Mas o quadro, quase um “presépio”, é exato e está disponível a quem queira experimentar. Poderia tê-lo descrito numa linguagem objetiva de jornalista, já que os nossos ainda não tiveram a oportunidade de descrevê-lo. Se saiu nessa linguagem enviesada foi pela força que o evento me impressionou.

"Poste-Escrito": Não sou inimigo das ciclovias, pelo contrário, utilizo e sou um apoiador. As ciclovias são uma boa ideia, mudaram a cara de São Paulo, oferecendo uma opção de lazer - e até em alguns casos, para uso por entregadores, ou de pessoas que moram em áreas mais urbanizadas da cidade, perto do trabalho e são jovens. Seu fracasso está associado ao próprio fracasso da cidade, de uma forma geral, como a falta de calçadas, avenidas mais largas e arborizadas, com recuo maior dos edificíos, o tecido caótico das ruas, etc.