quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Garrafas de cerveja _letra e música



Macacco ao vivo em Natal-RN (detalhe da geladeira no palco)



GARRAFAS DE CERVEJA
 (aka. "Ameaçando a escuridão")


Muita coisa mudou

Os planos são outros
Ecos sem sentido

Você voltando pra casa,

No domingo

E ninguém mais sorrindo

Faz o mundo girar
No chão da sala
Quando pego na sua mão
Com luvas de plástico
Não de pelica,

Esqueci todo o resto.

Abra a geladeira

Eu abro meu peito

E as garrafas de cerveja

No piso sujo

Da sala,

Ameaçando a escuridão.

 
 
  Música  do CD Canções de Ninar. Autor: Macacco (Alexandre Gurgel). Letra: Lauro Marques.

Haiku de primavera (atrasada)


"Três Amigos e Centenas de Pássaros",
Bian Wenjin, dinastia Ming
 






Inverno, acabe!

empoleiradas nas árvores,

gritam maritacas.

















De: Sumário de Incertezas, Lauro Marques. Editora Confraria do Vento, 2010 (no prelo)

domingo, 19 de setembro de 2010

Mário de Sá-Carneiro: Impressões domingueiras


Leio Mário de Sá-Carneiro no domingo meio nublado, no parque da Água Branca. Um parque meio pobre e mal-cuidado, em reformas, com aves simplórias ciscando em meio aos pombos (que ao meu ver nem aves são), galinhas, galos e pavões. Paus-brasis dos mais altos que já vi -antes só conhecia mudas-, que me pareceram muito estranhos, e um resto de vegetação que para nós, citadinos, já nos basta para nos sentirmos em meio ao mato. Uma surpresa. Há quiosques com livros que você pode pegar e ler, depois devolver, sem ninguém para dar por isso. Um quiosque com livros de poesia! Poucos, uns 20 talvez, mas todos bons (lembro que vi Rimbaud, Lautréamont, Haroldo de Campos, Célan, José Paulo Paes), outro de literatura em geral. Fui lá no de poesia e peguei o Mário de Sá. Há mesas de leitura, como as de um restaurante, só que sem garçons, e quando fui lá estavam vazias. Uma musiquinha tocava ao fundo, uma canção infantil. Eu já o tinha lido, claro, mas naquele parque lúgubre, num domingo, após ter passado em frente a um baile da terceira idade, que ocorria a poucos metros ali mesmo dentro do parque, onde pairava um estranho desânimo, um “além-tédio" (1) de tudo -para um parque, com crianças!-, a sensação foi amplificada.

*
*
*

Acrescento algo totalmente desnecessário a essa minha nota igualmente desnecessária, que não tem muito a ver com Sá-Carneiro mas com o "estado de ânimo" do parque naquele dia. O tal baile da terceiridade era uma das "atrações", comparável aos brinquedos para as crianças e os animais soltos, para os que de fora observávamos os velhinhos a entrar na casa - de onde saía uma animada música, contrastando com as figurinhas trêmulas que, rapidamente, e sem trocar muitas palavras, a espinha dobrada, entregavam determinada quantia ao homem, também de idade, usando um chapéu preto e camisa social, que fazia às vezes de porteiro e bilheteiro. Como a casa ficava numa parte baixa, as pessoas na parte alta do caminho que passava ao lado do salão de baile, paravam para olhar, algumas empurrando carrinhos de bebês, em roupas de "jogging", ou casais de meia-idade, por um momento sinceramente enternecidos com as imagens do passado (que para nós seria mais certo dizer futuro, mas que vemos como pertencentes a um tempo passado). Escutei uma garotinha dizer: "mas deve ser necessário ter uma certa idade", entre desejosa e precavida, de participar da "festa", que, como tudo mais no parque, tinha a aura de espectro.

__________

(1) - nome de um poema de MSC.

Nada me expira já, nada me vive ---/ Nem a tristeza nem as horas belas. /De as não ter e de nunca vir a tê-las, /Fartam-me até as coisas que não tive. //Como eu quisera, enfim de alma esquecida, /Dormir em paz num leito de hospital.../ Cansei dentro de mim, cansei a vida/ De tanto a divagar em luz irreal. //Outrora imaginei escalar os céus/ À força de ambição e nostalgia,/ E doente-de-Novo, fui-me Deus/ No grande rastro fulvo que me ardia.// Parti. Mas logo regressei à dor, /Pois tudo me ruiu.../ Tudo era igual: A quimera, cingida, era real,/ A própria maravilha tinha cor!// Ecoando-me em silêncio, a noite escura/ Baixou-me assim na queda sem remédio;/ Eu próprio me traguei na profundura,/ Me sequei todo, endureci de tédio.// E só me resta hoje uma alegria:/ É que, de tão iguais e tão vazios, /Os instantes me esvoam dia a dia/ Cada vez mais velozes, mais esguios...

Ver também o poema "Dispersão".

sábado, 18 de setembro de 2010

Segunda canção do homem tolo

"Ho Tche Tchang, sempre a cavalo, parecia remar numa barca. Certa noite, mais bêbado que nunca, caiu num poço, onde dorme ainda, creio eu..."





Foto de Okinawa Soba
Escuta o barulho do mar
Longe silente
E vê o pelo ouriçar
Tu que não sentes
Enche o peito de ar
(Até um grito estourar)
Por entre os dentes
E gira em teu calcanhar
Tolo contente
Até o dia sangrar
Novo poente


E bebe o vinho dormente
E bebe o vinho dormente





De: Sumário de Incertezas, Lauro Marques. Editora Confraria do Vento, 2010 (no prelo)

domingo, 12 de setembro de 2010

Earth in beauty dressed

Foto de mauroguanandi
Um ipê amarelo desfolhando (despetalando?) nesse início de setembro me lembrou um fragmento de Yeats, que sempre me vem à memória nessa época do ano (traduzo aqui sem muito rebuscar):

"Em beleza a terra vestida
 Aguarda o retorno da primavera.
 Todo amor verdadeiro deve findar,
 Transformado no ápice
 Em alguma coisa menor.
 Prove que eu minto."

O poema no original completo:

Her Anxiety


Earth in beauty dressed

Awaits returning spring.

All true love must die,

Alter at the best

Into some lesser thing.

Prove that I lie.



Such body lovers have,

Such exacting breath,

That they touch or sigh.

Every touch they give,

Love is nearer death.

Prove that I lie.


William Butler Yeats

Aqui, uma animação desse poema (quase "espírita") com a namorada de Yeats, Maud Gonne, resssucitada dos mortos por meio da computação gráfica, "recitando" o poema. Detalhe: Gonne lembra "gone", ido.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

O homem tolo - poema, antecedido de comentário à leitura de Ulisses

Sábado 14 de janeiro de 2006


Limpo a poeira do Ulisses, traduzido por Antônio Houaiss. Poeira não. São grossas camadas pretas de poluição, gordura, e ácaro. Joyce diria: "Necrófago! Mascador de cadáveres!".

Leio a edição carcomida pelas traças, que traçaram umas curvas (algumas bem elegantes) por todo o livro. Com a caneta, sublinhando as frases que eu gosto. (Ou do estilo). E são muitas.

"Diz Maeterlink: Se Sócrates deixar sua casa hoje, encontrará o sábio sentado à sua soleira. Se Judas sair esta noite, é para Judas que seus passos tenderão. Cada vida são muitos dias, dia após dia. Caminhamos através de nós mesmos, encontrando ladrões, fantasmas, gigantes, velhos, jovens, esposas, viúvas, irmãos do amor. Mas sempre encontrando-nos a nós mesmos."

E de fato, a passagem remeteu-me para algo que escrevi antes. Eis que reencontro. O anti-Zaratustra. O sem força. O poeta, o bobo. O bufão que interrompe, através da parábase, o discurso do sábio. O último dos homens, talvez. Eu. Incipt commedia!


O HOMEM TOLO


O homem tolo construiu castelos de gelo

no verão, onde pensou em morar

por muitos anos

e rimou palavras a esmo

para surdos-mudos e

analfabetos

numa língua morta e

desconhecida

desde então.



O homem tolo saiu à noite com uma lanterna

apagada

procurando pela escuridão

e só encontrou a si mesmo.



Esse homem tolo

abriu as janelas de sua alma

numa rua deserta e no lugar de inspirar,

expirou ali mesmo.


ÍNDICE DAS FRASES MAIS NOTÁVEIS DE ULISSES

Foto da primeira edição (verdemuco) do Ulisses
(TRADUÇÃO: ANTÔNIO HOUAISS)



Pág. 8: “– Por Deus – disse sereno. – Não está o mar tal como Algy lhe chama: a doce mãe gris? O mar verdemuco.” (1)

Pág. 20: “O vazio espera certo todos os que tecem o vento.”

Pág. 73: “O senhor Dedalus olhou para a claudicante personagem e disse docemente:

– Que o Diabo lhe quebre o espinhaço.”

Pág. 362: “Estética e cosméticos são para o boudoir. Busco a verdade. Pura verdade para um homem puro.”



Pág. (*): .........................................................................



(*) Para respeitar a idiossincrasia de cada um, deixamos a cada leitor a tarefa de completar esta página.

________________________

(1)
"Snotgreen", termo "criado" por Buck Mulligan, no Ulisses. "O mar verdemuco" e não "verdemeleca" como está na tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro (Editora Objetiva, 2005). Uma bobagem essa, admito... mas me fez recuar na compra do livro. "Meleca" lembra palavreado infantil que não corresponde a snot - nasal mucus, mucous secretion, mucus - protective secretion of the mucous membranes; in the gut it lubricates the passage of food and protects the epithelial cells; in the nose and throat and lungs it can make it difficult for bacteria to penetrate the body through the epithelium - além de não combinar com o contexto da rememoração de Stephen, em seguida: a mãe a morrer vomitando a bile numa tigela de porcelana que "parecia uma lesma verde arrancada de seu fígado apodrecido em seus ataques de vômito e de altos gemidos..."

Aí está: O mundo à beira do caos e eu aqui discutindo meleca...

domingo, 5 de setembro de 2010

Há pouco, velozmente, no Metrô

Traffic, de riczribeiro

Desfizemos nossas roupas e saímos nós, vestidos de noite. Há pouco, velozmente, no Metrô, estáticos, espalhamos átomos pelo mundo afora. Um hálito quente, a língua úmida, a queimar-lhes a nuca. Dois velhos de boinas, conversam contentes, segurando livros. Uma moçoila, com ares de estudante, também de boina, quase que “posa”. Uma velha gorda com a sacola de supermercado, distraída, pensa (?). Somos todos desesperados... Somos todos... desesperados... E a mulher bela, na propaganda de desodorante, sorri. Enquanto isso, eu, no canto contrário, sentado, componho o poema com o olho, pois sei que, no momento seguinte, esquecerei tudo.

NOTAS À MARGEM

LER É VIVER


Minhocão, foto de Daniel Mitsuo


A frase em letras garrafais, numa faixa, sobre a porta de um pequeno sebo, surpreendeu-me da janela do ônibus, enquanto passava embaixo do elevado Costa e Silva, mais conhecido como minhocão, uma das sete desgraças do mundo contemporâneo (não há as sete maravilhas do mundo antigo? Eu proponho uma lista alternativa que seja encabeçada pelo minhocão).



Quer frase mais “Pessoana” do que essa? Ler é viver. E portanto, a maioria da população brasileira não vive, pois não lê. Não sei se quem pôs a faixa estava inteiramente consciente da crítica feroz que fazia à ignorância dos que, como eu, por ali cruzavam a rua, cumpridores da rotina diária, ruidosos ou em silêncio, a caminho de mais um dia na metrópole paulistana.





DIGNIDADE



Parei hoje para cumprimentar o vigilante que toma conta do prédio onde trabalho. Ele estava polindo as botas, sentado à cadeira do engraxate, que faz ponto na praça em frente do prédio. Fui dizer, apenas para ser simpático e ter algo para dizer, que eu também iria engraxar meus sapatos, um dia desses. Então ele me responde afirmando: “Já que vamos sair amanhã, resolvemos engraxar as botas”.



Confesso que de início não compreendi, o plural majestoso confundiu-me. Imaginei que ele, vaidoso, certamente planejava dar uma volta à noite, ou sair para uma festa ou quem sabe talvez um bar, após o trabalho, e queria por isso ver suas botas brilhando.



Como eu não havia entendido bem, fiquei surpreso quando ele me disse em seguida que este seria o seu último dia naquele emprego. Falei qualquer coisa para reanimá-lo e fui-me embora, sorrindo. Só agora, já em casa, quando tomo para mim mesmo essas notas solitárias, é que pude compreender a verdadeira dimensão do que ocorrera.



Ele chegara ao fim do contrato temporário de serviço como vigilante e o ato de polir as botas era uma maneira de demonstrar para si mesmo que ele era superior à sua própria desgraça. (Se as devolveu ou não, como imagino ser praxe nesses casos, é um mero detalhe que não afeta em nada a minha imaginação de sua superioridade).



Tinha razão portanto o plural majestoso, carregado de dignidade, daquele homem, que eu, para minha vergonha, na minha simplicidade, não pude perceber de imediato.