“O fio perigoso das coisas e outras histórias”, livro de anotações de idéias para possíveis filmes, de Michelangelo Antonioni. São 33 “núcleos narrativos”, como ele chama, transformados em peças literárias, editado na Itália no início dos anos 80 e publicado aqui em 1990, pela editora Nova Fronteira.
Leio e vou destecendo nós, que são os nossos, um homem e uma mulher, desencontros.
“Na planície do Pó os homens amavam as mulheres com ironia”, diz em um desses fragmentos, intitulado “Crônica de um Amor que nunca existiu”. O Pó aí é o nome do rio no Norte da Itália... mas o importante mesmo é saber o que significa “amar uma mulher com ironia”, como tantos personagens masculinos nos filmes do cineasta morto aos 95 neste negro ano de 2007. ― Penso em Marcelo Mastroianni em “A Noite”, um filme com uma manhã e uma noite e essa ironia talvez seja na verdade desespero, carregado de angústia, quando amanhece.
“Com ironia” significa não se entregar totalmente, manter-se numa situação de proximidade distante, irônica, o contrário ou quase da alegria, que é entrega, total e permanente, sem reservas, talvez um estado impossível só alcançado de tempos em tempos e do qual se cai constantemente. A ironia seja por isso talvez uma defesa para tais quedas. Não entregar-se é manter-se ereto, com todas as conotações eróticas da frase.
A maioria dos contos ou pedaços de filmes imaginários ou não, alguns realizados anos depois, é sobre encontros e desencontros (tomando emprestado como foi traduzido no Brasil o título recente de um filme de Sofia Coppola, que bebe nessa fonte). “As geleiras da Antártida caminham três milímetros por ano em nossa direção. Calcular quando chegarão. Prever, num filme, o que acontecerá.” Num fragmento intitulado Antártida, Antonioni espera a geleira, que afinal chegou para ele, essa que pode fazer esperar mas não decepciona nunca.
Em “Este corpo de lama” temos primeiro uma breve exposição, resultado de pesquisa sobre a vida das mulheres num convento de clausura, tema para o qual o cineasta foi levado após a leitura de um episódio narrado por uma monja americana em seu diário e que daria segundo ele um belo início de filme. Em seguida tem-se uma narrativa também curta baseada nesse episódio.
Um homem encontra uma mulher andando sozinha à noite, muito grave, e resolve segui-la e então abordá-la. Após uma breve troca de palavras, ela o leva quase sem querer para uma igreja onde os dois se separam, por vontade dela, evitando-o por meio de um gesto e indo sentar-se à distância, completamente absorta numa espécie de transe místico. Ela lhe parece “um impermeável vazio, o corpo jogado fora. Este corpo de lama, diz Santa Teresa”.
Ao fim da missa, ele a perde de vista, mas resolve procurá-la na rua onde a havia visto sair de uma porta de casa para a noite antes. Encontra-a e no meio de hesitações trava uma batalha impossível de ser ganha que corresponde à luta travada entre uma fogueira teimando em arder e os primeiros flocos de neve: “Tem a impressão de nunca ter experimentado um desejo tão intenso de possuir uma mulher. Mas é um desejo diferente, que tem algo de meigo e respeitoso. É ridículo, pensa. E no entanto hesita na voz e não pode fazer nada contra isso, enquanto diz:
― Posso te ver amanhã?
Ela continua sorrindo nos poucos segundos de silêncio que precedem sua resposta. E sua voz não deixa transparecer nenhuma emoção quando fala.
― Amanhã vou entrar num convento de clausura.”
“Que início fantástico de filme!”, exclama Antonioni. Mas é um filme que para nós, ― plagiando-lhe ―, feliz ou infelizmente, acaba aqui.
Leio e vou destecendo nós, que são os nossos, um homem e uma mulher, desencontros.
“Na planície do Pó os homens amavam as mulheres com ironia”, diz em um desses fragmentos, intitulado “Crônica de um Amor que nunca existiu”. O Pó aí é o nome do rio no Norte da Itália... mas o importante mesmo é saber o que significa “amar uma mulher com ironia”, como tantos personagens masculinos nos filmes do cineasta morto aos 95 neste negro ano de 2007. ― Penso em Marcelo Mastroianni em “A Noite”, um filme com uma manhã e uma noite e essa ironia talvez seja na verdade desespero, carregado de angústia, quando amanhece.
“Com ironia” significa não se entregar totalmente, manter-se numa situação de proximidade distante, irônica, o contrário ou quase da alegria, que é entrega, total e permanente, sem reservas, talvez um estado impossível só alcançado de tempos em tempos e do qual se cai constantemente. A ironia seja por isso talvez uma defesa para tais quedas. Não entregar-se é manter-se ereto, com todas as conotações eróticas da frase.
A maioria dos contos ou pedaços de filmes imaginários ou não, alguns realizados anos depois, é sobre encontros e desencontros (tomando emprestado como foi traduzido no Brasil o título recente de um filme de Sofia Coppola, que bebe nessa fonte). “As geleiras da Antártida caminham três milímetros por ano em nossa direção. Calcular quando chegarão. Prever, num filme, o que acontecerá.” Num fragmento intitulado Antártida, Antonioni espera a geleira, que afinal chegou para ele, essa que pode fazer esperar mas não decepciona nunca.
Em “Este corpo de lama” temos primeiro uma breve exposição, resultado de pesquisa sobre a vida das mulheres num convento de clausura, tema para o qual o cineasta foi levado após a leitura de um episódio narrado por uma monja americana em seu diário e que daria segundo ele um belo início de filme. Em seguida tem-se uma narrativa também curta baseada nesse episódio.
Um homem encontra uma mulher andando sozinha à noite, muito grave, e resolve segui-la e então abordá-la. Após uma breve troca de palavras, ela o leva quase sem querer para uma igreja onde os dois se separam, por vontade dela, evitando-o por meio de um gesto e indo sentar-se à distância, completamente absorta numa espécie de transe místico. Ela lhe parece “um impermeável vazio, o corpo jogado fora. Este corpo de lama, diz Santa Teresa”.
Ao fim da missa, ele a perde de vista, mas resolve procurá-la na rua onde a havia visto sair de uma porta de casa para a noite antes. Encontra-a e no meio de hesitações trava uma batalha impossível de ser ganha que corresponde à luta travada entre uma fogueira teimando em arder e os primeiros flocos de neve: “Tem a impressão de nunca ter experimentado um desejo tão intenso de possuir uma mulher. Mas é um desejo diferente, que tem algo de meigo e respeitoso. É ridículo, pensa. E no entanto hesita na voz e não pode fazer nada contra isso, enquanto diz:
― Posso te ver amanhã?
Ela continua sorrindo nos poucos segundos de silêncio que precedem sua resposta. E sua voz não deixa transparecer nenhuma emoção quando fala.
― Amanhã vou entrar num convento de clausura.”
“Que início fantástico de filme!”, exclama Antonioni. Mas é um filme que para nós, ― plagiando-lhe ―, feliz ou infelizmente, acaba aqui.
4 comentários:
um post/resenha, muito bom, rapaz.
Me deu vontade de ler o livro e de rever um filme do Antonioni.
Olha, tomei a liberdade de linká-lo ao meu blog. Depois chega lá e vê se ficou a gosto. Espero que concorde.
http://walmir.carvalho.zip.net
paz e bom humor
voltarei sempre
Perfeito Lauro!
O único filme que assisti de Antonioni foi "Noite", mas depois dessa resenha quero assistir os outros, você me despertou esse desejo
Sua definição de amar com ironia me encantou, pena que não é pra mim que sou visceral hehe
bjos
Rita
Walmir e Rita, essa cena foi incluída num filme que Antonioni fez com Win Wenders, "Além das nuvens". Será lançado brevemente o DVD. Vejam e comentem!
Abraços
meu deus, DVD!
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