domingo, 28 de dezembro de 2008
Poema para uma derrota (2)
Marcador 2
Notas sem texto (2)
"Não inventamos nada, acreditamos inventar quando na realidade nos limitamos a balbuciar a lição, os restos de alguns deveres escolares aprendidos, esquecidos, a vida sem lágrimas, tal como a choramos. À merda.", diz o narrador, o qual, desde então passa a fazer parte do quadro descrito por ele (Rimbaud e Kafka estão entre os mais citados), sua obra também entra no universo das obras de arte em suspenso que povoam e assombram essas "notas sem texto", como ele, Quase-Watt / Vila-Matas, as chama, ou, alternativamente, "Notas do não".
Nota sem texto (1)
Após terminar a leitura de Bartleby, de Melville, e em seguida a de Bartleby e companhia de Enrique Vila-Matas, parece que me sinto pronto a terminar de escrever o novo conto que eu havia esboçado (ou seria melhor dizer, terminar de começar?).
domingo, 14 de dezembro de 2008
Marcador
sábado, 13 de dezembro de 2008
Na cafeteria
Notas 13/12/2008
Descobri hoje, lendo na nova livraria do shopping no bairro, que pertenço à linhagem dos Bartleby – os escritores do Não. Li o capítulo I do livro inspirado no escrivão de Melville, Bartleby & Cia, de Enrique Vila-Mattas. A preço de um café, li na cafeteria. (É quase tão bom quanto levar sem pagar. Não que eu faça isso. Não mais). O livro custa absurdos R$ 45,00. A editora Cossac & Naif tem sempre os livros mais caros, coffee tables de luxo. No shopping, várias senhoras desesperadas para "estar adquirindo" o best-seller que irão dar de presente no Natal para os parentes e "amigos secretos" que não irão ler. Frase de Juan Rulfo citado por Vila-Mattas, para justificar o porquê de ter escrito quase nada mais depois de Pedro Páramo: "Hoje em dia até os maconheiros publicam livros, tem muito livro estranho por aí". Sorri.
segunda-feira, 8 de dezembro de 2008
Poema para uma derrota
Poema para um derrota
Entulhas pela casa, em todo canto, os restos do passado. Passeias entre caixas, malas, bolsas, vendo o desgoverno do teu estado. Lá fora, no orvalho da noite fria, não podes deixar de cobrir com lona, devido à chuva das monções, a velha cadeira pia que tantas vezes te sentou. Não podes deixar de notar o tanto de sonhos fracassados que és. O mar de espíritos velhos, este sertão cerrado convés vazio ao mar.
Entulhas pela casa alheia, em todo canto, o relógio velho parado, o monte de saco seco nordestinado, o quadro inacabado do pintor falido, o fogão sem forno funcionado. Procuras no meio do entulho a coleção de pedras, verás estranhamente, que elas continuam pedras. Mas já não pedras como antes. Agora são pedras mudadas, acompanhadas do claudicante pó do nada.
Duas imagens me causam impacto e dão idéia da força do poeta: a cadeira pia (porque velha mãe que "lhe sentou" tantas vezes no colo) que não se pode deixar de cobrir com lona, para proteger-lhe, este resto de passado tornado coisa, devido à chuva das monções - e o uso da palavra monção, de origem árabe, para indicar chuva intensa sazonal, tem um sabor especial também para os nordestinados como Gustavo.
A segunda imagem que fica é a da coleção de pedras, transformadas pelo tempo em outra coisa, cobertas por um pó de nada hesitante, metáforas para o próprio poema, que se oferece o tempo todo en abîme.
quarta-feira, 3 de dezembro de 2008
segunda-feira, 1 de dezembro de 2008
Descobri Enrique Vila-Matas
Descobri Enrique Vila-Matas. Leyla Perrone Moisés diz que é um dos melhores escritores espanhóis da atualidade. Gostei que ele mescla romance/crônica/ ensaio, memória e ficção. Estou para comprar Bartleby, mas preciso ler antes Melville, de quem não li sequer Mobydick. Quem disse q ignorância é uma benção? Talvez compre em espanhol, pois sai muito mais barato.
terça-feira, 25 de novembro de 2008
segunda-feira, 24 de novembro de 2008
Surpresa na percepção de obras de arte
Quando algo surpreendente ou sugestivo de alguma coisa que não podemos decifrar de imediato se interpõe diante de nós, atinge nossos sentidos na forma de um choque, de intensidade mais ou menos variada.
Algo que ocorre sempre quando estamos diante de uma obra de arte visual, por exemplo, uma pintura, uma vez que não podemos apreendê-la na totalidade absoluta, mas que excita nossa atenção, desafiando-nos a abarcá-la, ao menos em parte, através de nossa consideração sensível.
Sempre há esforço envolvido nisso, por menor que seja. A percepção de uma obra de arte visual não é algo cândido, mas sim que envolve de modo pré-determinado um certo grau de reação ou choque, necessário para haver de fato experiência.
Muitas outras coisas fazem isso. Na verdade, esse é o funcionamento normal da visão que temos de uma imagem qualquer, cuja visão, aliás, sempre se dá através de um percurso complexo.
E para além da ocorrência que experimentamos sempre alguma reação na percepção, e que uma imagem qualquer só pode ser vista à custa de uma exploração não inocente do olho sobre a superfície, uma obra de arte é, além disso, feita com o intuito de ser percebida, contemplada, experienciada, interpretada, de alguma forma.
Há em toda obra de arte legítima uma ânsia de comunicar algo, por mais inefável que seja. E para que um trabalho artístico comunique uma idéia qualquer, de forma a vir a se tornar compreensível, é necessário haver, em alguma medida, elaboração naquilo que é apresentado. Para que possa nos chamar a atenção e captar o interesse, é necessário que haja surpresa na percepção, cuja experiência disso ao final “nos recompense”.
Arnhein chamou isso de “desafio perceptivo”: “onde as pessoas se defrontam com uma situação exterior de tal modo que as suas capacidades de aprender, interpretar, elucidar, aperfeiçoar-se são mobilizadas”. Ele lembrou a “importância do desafio perceptivo” para nossas vidas e da necessidade de vencê-lo.
O que é necessário, segundo Arnheim, falando da obra de arte visual, “é a experiência de que, entre as coisas visíveis, haja algumas que possam, afinal de contas, ser compreendidas”.
A surpresa pode se dar até mesmo a partir do reconhecimento de um sentimento semelhante ao que já foi experienciado em uma ambientação diferente da que lhe era familiar. Isso pode ocorrer porque um sentimento jamais é exatamente igual a outro e novas idéias são sempre geradas, de acordo com novas associações de idéias provocadas por experiências de obras particulares.
Sempre resta algo de novo a descobrir em uma obra. Os seus sentidos e a capacidade de provocar em nós novas hipóteses são praticamente inesgotáveis; apesar de que podemos chegar a algumas crenças sobre alguns de seus efeitos, sendo isso inclusive o que irá nos ajudar na compreensão de outros efeitos possíveis.
Imagens de Manet. Olhares que nunca se cruzam e que observam o vazio extraquadro. “A ameixa”, “O balcão”, “Almoço no ateliê”, “Na praia”, “Na estufa”. Série de fotografias, da década de 90, de Sarah Jones, com “quarto” no título. “The sitting room”, “The dinning room”
Por exemplo, a semelhança com algo que já havíamos experienciado no passado, nos retratos de grupo de Manet, despertou nosso interesse, foi o que nos causou surpresa primeiramente, na fotografia de Sarah Jones.
Edouard Manet Na estufa, 1879 e Sarah Jones A sala de jantar, 1997
Isso fez com que nos demorássemos mais tempo na percepção da série que a fotógrafa britânica fez no final da década de 90, incluídas na coleção da Tate Galley, buscando entender o que estas nos “comunicavam”. Podemos dizer que Manet, os retratos de grupo do pintor em que os personagens são figurados em momentos de absorção mental e alheamento, em meio a cenas familiares, é parte do significado, do que é transmitido ou do que representam essas obras.
O artista geralmente trabalha no sentido de evitar a repetição, pela repetição pura e simples, mas ele pode, no entanto, acrescentar isso também à sua estratégia. A referência a obras do passado, recombinadas de modo interessante, de modo a continuar chamando a nossa atenção e ganharem assim uma outra “vida”, é uma tática bem sucedida na história da arte. O que é uma forma de fazer crescer a “idéia” dessas obras, reinterpretando-as em contextos diferentes.
sábado, 15 de novembro de 2008
A morte exata do crítico medidor
Por escolha própria não havia contraído nenhum matrimônio, nem tido filho. Evitava mesmo a todo custo o contato com outras pessoas. A não ser os fortuitos e de breve permanência. A crítica literária era sua única e verdadeira paixão. Havia nascido para isso, para ser crítico. E era o que exercia com afinco, na sua solidão de celibatário aplicado, até mesmo nos piores momentos de sua vida, nem sempre alegre.
Havia começado seu trabalho de medição da escritura do texto dos autores com uma medida em palmos, mas, aos poucos, com sua fama crescente e na proporção em que se avolumavam os pedidos que lhe chegavam de todas as partes do globo, havia abandonado esse padrão, já há muito ultrapassado, em favor de um mais pertinente ao sistema métrico vigente.
O nível máximo de escritura que algum autor já havia alcançando na sua rígida escala pessoal havia sido de 40 centímetros ―e o mínimo, em torno de ¼ de um palmo, cinco centímetros. Era um crítico diligente e tenaz e vivia, literalmente, afundando-se em livros e leituras.
Nos últimos dias de sua vida, estivera a ponto de desenvolver um novo método revolucionário, que iria lhe permitir medir, além da espessura, também a massa ou ―dito em outras palavras,― o peso da escritura de determinado autor.
Para isso já havia feito diversos testes, com balanças de todos os tipos, analógicas e digitais, nacionais e importadas, chegando a delinear um projeto de um protótipo especialmente adaptado às suas exigências, desenhado por ele próprio, para o qual, entretanto, infelizmente ficaram faltando muitos desenvolvimentos que permaneceram inconclusos.
Sua estante, como alguém poderia esperar, era abastecida com uma multiplicidade sem fim de livros, que cresciam numa torrente até o pé-direito do escritório que chegava à altura máxima de sete metros. Aos mais espessos e pesados, assim medidos por ele, dedicava um lugar de honra no topo da estante, que estava ficando para lá de abarrotada.
Foi vítima de um acidente inusitado e infeliz, porém, conseqüente com sua atividade literária, enquanto cochilava sobre uma pilha de livros recém-medidos, o pescoço molemente apoiado sobre o último da pilha, quase que se oferecendo inconscientemente ao sacrifício. Num momento e zás! A estante inteira veio a desabar em cima dele, causando-lhe morte súbita por esmagamento e quebra do pescoço.
Hoje se encontra enterrado sob sete palmos de terra. De vez em quando, algum autor timidamente iniciante, sedento de julgamento, ainda vem depositar algum livro que acabou de dar à luz sobre sua lápide, por uma crença que ficou difundida principalmente entre os escritores mais jovens. Na vã esperança de que, do além onde se encontra, o nosso crítico possa ler e declarar a sua apreciação, a respeito da medida exata de sua escritura.
segunda-feira, 3 de novembro de 2008
O telefone está tocando, Delia (1938)*
Tradução inédita de um dos primeiros contos de Julio Cortázar
por Lauro Marques
As mãos de Delia doíam. Como vidro moído, a espuma de sabão ardia nas rachaduras de sua pele, punha nos nervos uma dor áspera ferida repentinamente por lancinantes agulhadas. Delia havia chorado sem disfarces, abrindo-se para a dor como para um abraço necessário. Não chorava porque uma secreta energia a repelia para a queda fácil do soluço; a dor do sabão não era razão suficiente, depois de todo o tempo que tinha vivido chorando por Sonny, chorando pela ausência de Sonny. Teria sido degradar-se, sem a única causa que para ela merecia a dádiva de suas lágrimas. E, além disso, ali estava Babe, em seu berço de ferro comprado a prazo. Ali, como sempre, estavam Babe e a ausência de Sonny. Babe em seu berço ou engatinhando sobre o tapete surrado; e a ausência de Sonny, presente em todas as partes como são as ausências.
A bandeja, sacudida no suporte pelo ritmo do esfregar, se juntava à percussão de um blues cantado pela mesma garota de pele escura que Delia admirava nas revistas de rádio. Sempre preferia as transmissões da cantora de blues: às sete e quinze da noite ―a rádio, entre uma música e outra, anunciava a hora com um “hi, hi” de ratazana assustada― e até às sete e meia. Delia nunca pensava: “às dezenove e trinta”; preferia a velha nomenclatura familiar, tal como proclamava o relógio de parede, de pêndulo fatigado que Babe observava agora com um cômico balanceio de sua cabecinha insegura. Delia gostava de olhar a todo instante para o relógio e escutar o “hi,hi” da rádio; apesar de que lhe entristecera associar ao tempo a ausência de Sonny, a maldade de Sonny, seu abandono, Babe, e o desejo de chorar, e como a senhora Morris havia dito que a conta da despensa tinha que ser paga imediatamente, e que lindas eram suas meias cor de avelã.
Sem saber de início por qual motivo, Delia se pegou olhando furtivamente para uma fotografia de Sonny, pendurada ao lado da prateleira do telefone. Pensou: “ninguém me ligou hoje”. Pouco se compreendia a razão de continuar pagando mensalmente a conta de telefone. Ninguém ligava para esse número desde que Sonny se fora. Os amigos, porque Sonny tinha muitos amigos, não ignoravam que agora ele era um estranho para Delia, para Babe, para o pequeno apartamento onde as coisas se amontoavam no reduzido espaço dos dois cômodos. Somente Steve Sullivan ligava às vezes e falava com Delia; falava para dizer-lhe o muito que o alegrava de saber que gozava de boa saúde, e que não acreditasse nunca que o ocorrido entre ela e Sonny seria motivo para que deixasse de ligar perguntando por sua boa saúde e pelos dentinhos de Babe. Somente Steve Sullivan; e esse dia o telefone não havia tocado nem uma única vez; nem sequer por causa de um número errado.
Eram sete e vinte. Delia escutou o “hi,hi” misturado a anúncios de creme dental e cigarros mentolados. Ficou sabendo também que o gabinete Daladier perigava por instantes. Depois voltou a cantora de blues e Babe, que mostrava propensão para o choro, fez um gracioso gesto de alegria, como se naquela voz morena e espessa houvesse alguma guloseima que ele tinha gostado. Delia foi despejar a água com sabão e secou as mãos, queixando-se de dor ao friccionar a toalha sobre a carne macerada.
No entanto, não ia chorar. Só por Sonny ela podia chorar. Em voz alta, dirigindo-se a Babe que lhe sorria desde o seu berço em desordem, buscou palavras que justificaram um soluço, um gesto de dor.
―Se ele pudesse compreender o mal que nos fez, Babe... Se tivesse alma, se fosse capaz de pensar por um segundo o que deixou para trás quando fechou a porta com um empurrão de raiva... Dois anos, Babe, dois anos... e não tivemos mais notícias dele... Nem uma carta, nem um vale... nem sequer um vale para você, para roupa e sapatinhos... Não se lembra mais do dia de seu aniversário, não é mesmo? Foi mês passado, e eu estive ao lado do telefone, com você em meus braços, à espera que ele ligasse, que ele dissesse somente: “Alô, felicidades!”, ou que lhe mandasse um presente, nada mais que um presentinho, um coelhinho ou uma moeda de ouro...
Assim, as lágrimas que queimavam suas bochechas lhe pareciam legítimas porque as derramava pensando em Sonny. E foi nesse momento que tocou o telefone, justamente quando da rádio assomava o cansativo e pequeno chiado anunciando sete e vinte dois.
―Alguém ligou― disse Delia, olhando para Babe como se a criança pudesse compreender. Se aproximou do telefone, um pouco insegura ao pensar que poderia ser a senhora Morris exigindo o pagamento. Sentou-se no banquinho. Não demonstrava pressa apesar do tilintar insistente. Disse:
―Alô.
Demorou para se ouvir a resposta.
―Alô. Quem...?
Claro que ela já sabia, e por isso lhe pareceu que o apartamento girava, que o ponteiro de minutos do relógio se convertia numa hélice furiosa.
―Quem fala é Sonny, Delia, Sonny.
―Ah, Sonny.
―Vai desligar?
―Sim, Sonny ―disse ela, muito devagar.
―Preciso dizer-lhe muitas coisas, Delia.
―Está bem, Sonny.
―Está... está zangada?
―Não posso estar zangada, estou triste.
―Sou um desconhecido para você... um estranho agora?
―Não me pergunte isso. Não quero que me pergunte isso.
―É que me dói, Delia.
―Ah, te dói?
―Por Deus, não fale assim, nesse tom...
―...
―Alô.
―Alô. Pensei que...
―Delia...
―Sim, Sonny.
―Posso te perguntar uma coisa?
Ela notava algo estranho na voz de Sonny. Claro que podia já ter se esquecido de uma parte da voz de Sonny. Sem formular a pergunta, compreendeu que estava pensando se ele ligava para ela de uma prisão ou de um bar... Havia silêncio por detrás de sua voz; e quando Sonny se calava, tudo era silêncio, um silêncio noturno.
―... uma única pergunta, Delia.
Babe, no seu berço, olhou para sua mãe inclinando a cabeça com um gesto de curiosidade. Não mostrava impaciência nem desejo de irromper num pranto. A rádio em outro extremo do apartamento, acusou outra vez a hora: “hi, hi”, sete e vinte e cinco. E Delia ainda não havia posto para esquentar o leite para Babe; e não havia pendurado a roupa recém-lavada.
―Delia... quero saber se me perdoa.
―Não Sonny, não te perdôo.
―Delia...
―Sim, Sonny.
―Não me perdoa?
―Não, Sonny, o perdão não vale nada agora... Se perdoa a quem se ama ainda um pouco... e é por Babe, por Babe, que não te perdôo.
―Por Babe, Delia? Me crê capaz de esquecê-lo?
―Não sei Sonny. Mas não deixaria jamais você voltar para o lado dele porque agora é apenas meu filho, apenas meu filho. Não deixaria nunca.
―Isso já não importa, Delia ―disse a voz de Sonny, e Delia sentiu outra vez, mas com mais força, que faltava algo (ou sobrava?) à voz de Sonny.
―De que lugar você me liga?
―Também não importa ―disse a voz de Sonny como se lhe afligisse responder assim.
―Mas é que...
―Deixemos isso, Delia.
―Está bem, Sonny.
(Sete e vinte e sete.)
―Delia... imagine que eu me vá...
―Você, ir-se? E por quê?
―Pode acontecer, Delia... Acontecem tantas coisas que... Compreende, compreende... Ir-me assim, sem teu perdão... Ir-me assim, Delia, sem nada... nu... nu e só!
(A voz estranha, tão estranha. A voz de Sonny, como se ao mesmo tempo não fosse a voz de Sonny.).
―Por que fala desse jeito, Sonny?
―Porque não sei... Estou tão só, tão privado de carinho, tão estranho...
―Mas...
Como através de uma neblina, Delia mirava fixamente à sua frente, na direção do relógio. Sete e vinte e nove; o ponteiro coincidia com a linha firme anterior ao traço mais grosso da meia hora.
―Delia... Delia!
―De onde você fala...? ―gritou ela, inclinando-se sobre o telefone, começando a sentir medo, medo e amor; e sede, muita sede, e querendo pentear entre seus dedos o cabelo escuro de Sonny, e beijá-lo na boca―. De onde você fala...?
―...
―De onde você fala, Sonny?
―...
―Sonny...!
―...
―Alô, alô...! Sonny!
―... Seu perdão, Delia...
O amor, o amor, o amor. Perdão, que absurdo já...
―Sonny... Sonny, vem...! Vem, te espero...! Vem...!
(“Deus. Deus...!”)
―...
― Sonny...!
―...
―Sonny! Sonny!!
―...
Nada.
Eram sete e trinta. O relógio assinalava. E a rádio: “hi hi”. O relógio, a rádio e Babe, que sentia fome e olhava para a mãe um pouco assombrado com a demora.
Chorar, chorar. Deixar-se ir corrente abaixo do pranto, ao lado de um menino gravemente silencioso e como compreendendo que ante um pranto assim toda imitação devia se calar. Da rádio veio um piano muito doce, de acordes líquidos, e então Babe foi quedando adormecido com a cabeça apoiada no antebraço da mãe. Havia no apartamento como que um grande ouvido atento, e os soluços de Delia ascendiam pelas espirais das coisas, se demoravam, resfolegando, antes de perder-se nas galerias interiores do silêncio.
A campainha. Um toque seco. Alguém tossia, junto à porta.
―Steve!
―Sou eu, Delia ―disse Steve Sullivan―. Passava, e...
Houve um longa pausa.
―Steve... vem da parte de...
―Não, Delia.
Steve estava triste, e Delia fez um gesto maquinal convidando-o a entrar. Notou que ele não caminhava com o passo seguro de antes, quando vinha à procura de Sonny ou para jantar com eles.
―Sente-se, Steve.
―Não, não... me vou em seguida. Delia, você não sabe nada de...
―Não, nada...
―E, claro, você já não o quer a...
―Não, não o quero, Steve. E isso que...
―Trago uma notícia, Delia.
―A senhora Morris?
―Se trata de Sonny.
―De Sonny? Está preso?
―Não, Delia.
Delia se deixou cair no banco. Sua mão tocou o telefone frio.
―Ah...! Pensei que poderia ter me telefonado da prisão...
―Ele ligou para você?
―Sim, Steve, queria pedir-me perdão.
―Sonny? Sonny lhe pediu perdão por telefone?
―Sim, Steve. E eu não o perdoei. Nem Babe nem eu podíamos perdoá-lo.
―Oh, Delia!
―Não podíamos, Steve. Mas depois... não me olhe assim... depois chorei como uma tonta... veja meus olhos... e queria que... mas você disse que era uma notícia... uma notícia de Sonny...
―Delia...
―Já sei, já sei... não me diga; roubou outra vez, não é verdade? Está preso e me ligou da prisão... Steve... agora sim quero saber!
Steve parecia confuso. Olhou para todas as partes, como buscando um ponto de apoio.
―Quando ele lhe ligou, Delia?
―Faz pouco tempo, às sete... às sete e vinte, agora me lembro bem. Falamos até sete e meia.
―Mas, Delia, não pode ser.
―Por que não? Queria que eu o perdoasse, Steve, e somente quando caiu a ligação compreendi que estava verdadeiramente só, desesperado... E então era tarde, ainda gritei, gritei ao telefone... era tarde. Falava da prisão, não é verdade?
―Delia... ―Steve tinha agora o rosto branco e impessoal e seus dedos se crispavam na aba do chapéu manuseado―. Por Deus, Delia...
―O que foi, Steve...?
―Delia... não pode ser, não pode ser...! Sonny não pode ter ligado faz meia hora!
―Por que não? ―disse ela, pondo-se de pé e em um só impulso de horror.
―Porque Sonny morreu às cinco, Delia. Mataram-no com um tiro, na rua.
Do berço chegava a respiração rítmica de Babe, coincidindo com o vai e vem do pêndulo. O pianista da rádio já não tocava mais; a voz do locutor, cerimoniosa, louvava com eloqüência um novo modelo de automóvel: moderno, econômico, extremamente veloz.
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*Extraído do livro de contos “La otra orilla” (1945), publicado em: Julio Cortázar/ Cuentos completos 1- Buenos Aires: Punto de Lectura, 2007.
sexta-feira, 31 de outubro de 2008
Dois costureiros
terça-feira, 21 de outubro de 2008
A performance
O casarão ficava numa parte elevada e tinha uma construção bizarra por causa do terreno desnivelado. Antes de chegar à porta principal passava-se por uma piscina ladeada por paredes altas, localizada na parte abaixo do casarão, e um muro lateral por onde subia uma escada de degraus largos, cercada de jardins.
Passando pela porta, chegava-se às muitas salas. Um recepcionista mudo entregou o programa a que se deveria assistir. Setas e placas apontavam a direção. O programa dividia-se em duas partes. Na primeira, em uma sala de cinema especialmente preparada era projetado um documentário fictício em preto-e-branco sobre vítimas da ditadura em um país latino-americano. Nos dois lados da sala havia máquinas, em torno de dez, metade em cada lado, que Pedro notou serem imitações de aparelhos mata-moscas eletrônicos de luz negra, que no início da sessão permaneciam apagados.
No final do filmete, falado em espanhol e português, que durou 15 minutos, os personagens principais reapareciam na tela e os que haviam sido torturados até à morte diziam seus nomes e iam lentamente desaparecendo da tela, quando, para cada menção, se acendia o mata-moscas fazendo o barulho característico de eletrocussão e um cheiro de carne queimada era exalado.
Em seguida, ia-se a outra sala onde um outro filme mostrava o próprio artista caracterizado de Little Richard cantando acompanhado por uma banda de músicos vestidos como gângsteres. No meio do show, a apresentação era interrompida e em seu lugar eram exibidas imagens do lado de fora. As imagens focavam as pessoas que tinham saído da sessão anterior deixando o local apressadamente, ao som de uma música marcial, descendo os degraus da escada atabalhoadamente, alguns corriam.
Canhões laser disparavam finos feixes de luz vermelha sobre as pessoas. Os feixes de laser eram seguidos de sons que imitavam balas sendo disparadas e barulhos de detonação e pessoas gritando. No meio daquela confusão, Pedro pôde distinguir Marta, num momento em que quase caiu e olhou para trás, a câmera aproximou seu rosto num close.
Por fim, as luzes se acenderam, a música terminou e era a vez dos que tinham assistido ao filme sair para a rua. Pedro tentou ligar para Marta, mas do outro lado do celular ninguém atendeu a ligação.
Chovia mais forte quando ele deixou o casarão, o que tornou a “escapada” ainda mais dramática. Pedro abriu o guarda-chuva preto iluminado por fora pelo canhão de luz vermelha em meio aos estampidos, silvos e gritos e forçou a passagem pelo grupo que ia mais à frente.
segunda-feira, 13 de outubro de 2008
Cidade do México - Diário de viagem
Frida Kahlo por Antonio Gironella |
-escrito em portuñol selvagem-
Xochimilco: Pântano Azteca de águas oscuras. Aquí hay gente que vive aislada. A mãe levando de balsa, remando, seus filhos para la escuela. Nosotros y los mexicanos bebiendo frescas cervezas. Tristes-alegres, “valsam”. Noches Buenas*, los terribles Mariachis e bem no fundo, quase não se notam, emplumados para la guerra, eles nos olham.
Teotihuacan: Das casas de palha e barro, nenhum vestígio. Palácios, um rei morou aqui. Do alto da pirâmide, larga vista para o vale de los muertos ―“camelando” sus últimas bugigangas.
Centro, Catedral: Silêncio. No centro, à entrada, de interior negro, Jesus Del Veneno, oscuro, pende de la cruz, como se pendesse de um galho, antes dos outros santos e altares. Tudo alto y dependurado. Cheiro incenso ―mais silêncio, intenso, vindo de fora, da praça, um canto, irreproduzível, la-la-la-la, de tristeza amplificada de micrófono, alegre y desesperada. Um campesino escuta a si próprio na sala reservada, a conversar com estátuas, que lhe olham, e a si mesmas, assustadas, em su silencio de luto e de madera.
Palácio de Belas-Artes: Fuera los santos! Catedral (in)útil onde se odeia/adora el hombre: de novo Rivera, Orozco ―um rasgo en las paredes, mejor que los murales, gigantescos y tirânicos: Gironella, pinturas que son un corte y sangran.
Calle Francisco de Souza: O ocre cor de terra das casas da calle Francisco de Souza, hijos de la Malinche, também tingida de azul cobalto y Frida, que eu não vi, as aquarelas do museu de aquarela...
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quinta-feira, 2 de outubro de 2008
quinta-feira, 18 de setembro de 2008
Política e incesto em Casa Tomada
Casa Tomada foi escrito a partir de um sonho. Então tem muito de inconsciente lá, tabus, essa coisa toda e mais a subida ao poder do Peronismo. Achei o aúdio de uma entrevista em que Cortázar fala sobre isso e o aúdio do próprio Cortázar lendo o conto.
Um outro conto genial dele que li esses dias, chamado "A Saúde dos enfermos" virou peça encenada em São Paulo.
Blog de Saramago
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Mais de Saramago, à toda no Blog. Em outro post critica Berlusconni, a quem chama textualmente de corrupto e delinquente. Sobra ainda para o "povo italiano": "No caso concreto do povo italiano, que é dele que estamos falando, e não de outro (já chegará sua vez), está demonstrado que a inclinação sentimental que experimenta por Berlusconi, três vezes manifestada, é indiferente a qualquer consideração de ordem moral. Realmente, na terra da mafia e da camorra, que importância poderá ter o facto provado de que o primeiro-ministro seja um delinquente? Numa terra em que a justiça nunca gozou de boa reputação, que mais dá que o primeiro-ministro faça aprovar leis à medida dos seus interesses, protegendo-se contra qualquer tentativa de punição dos seus desmandos e abusos de autoridade?".
segunda-feira, 15 de setembro de 2008
Resenha Roberto Bolaño
"Em Os Detetives.. Essa paisagem, de desolação e anúncio de queda iminente, de estilhaçamento das identidades, tem outro grande inspirador: Malcom Lowry, de À sombra do vulcão (1947), não à-toa inserido como epígrafe do romance. "
O resto está aqui: DETETIVE SELVAGEM
Mapa de literatura
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sábado, 13 de setembro de 2008
HISTÓRIA DE CRONÓPIO
pelas ruas de uma cidade em ruínas à noite
um fugitivo cronópio, muito verde e muito úmido.
(Mentiu que isso aconteceu em Paris).
O infeliz polichinelo mendigava
enquanto chacoalhava seus guizos
contra o chão de paralelepípedos
perseguido apenas pelo ruído
dos gritos das crianças, do canto
dos grilos e do latido dos cães.
quinta-feira, 11 de setembro de 2008
sábado, 16 de agosto de 2008
Diferenças entre objetos esteticamente bons
No limite, não há nada que não seja esteticamente bom, já “provaram” os surrealistas e Duchamp. Na medida em que um fenômeno é ―seja um banco de madeira, uma roda de bicicleta, um urinol, ou um acontecimento, o qual poderia ser o “evento surrealista” (Boher 2001: 20)―, como um todo unificado, ele “deve ter alguma qualidade permeando sua totalidade” (Potter 1967: 46). Ele possui, nessa avaliação, “excelência estética”, o que foi chamado de “excelência ontológica” pelos escolásticos (Parker 1998: 50). A qualidade pode ser tal que nos nauseie, assuste, ou de qualquer outra maneira nos perturbe a ponto de nos afastar do humor próprio ao prazer estético, da disposição de simplesmente contemplar a materialização dessa qualidade em um objeto. Tal objeto “permanece igualmente esteticamente bom, embora as pessoas em nossas condições sejam incapazes de uma calma contemplação estética dele” (Peirce 1998: 201). O que significa simplesmente dizer que há uma certa autonomia do objeto, em relação à sua recepção, e que as qualidades que ele apresenta não são em si mesmas nem boas nem ruins. Pois, como frisa Peirce (2003): “toda abominação estética é meramente nossa insensibilidade resultando de obscurecimentos devidos às nossas próprias aberrações morais e intelectuais” Esse caráter livre, autônomo, de um objeto estético, é um aspecto inerente à sua conformação, que faz ele ser como ele é. Schiller definiu beleza como “nada mais do que liberdade no fenômeno” (Schiller 1995: 120).
Entretanto, dizer que todo fenômeno possuindo unidade interna é ontologicamente ou esteticamente bom, não significa dizer que não existam diferenças entre os fenômenos (Parker 1998: 50), o que não deixaria nenhum espaço para crítica. Especialmente, não deixaria espaço para a crítica de arte ― pois não teria muito sentido, ao nosso ver, criticar “os Alpes”, ou qualquer outra forma da natureza, a não ser que adotássemos algum ponto de vista de um esteticismo radical, à maneira de um Oscar Wilde, que via no sol poente, “um Turner muito secundário, um Turner do mau período” (Wilde 1992: 53).
Pelo contrário, cada fenômeno tem sua qualidade sui generis ― ainda que “possivelmente alguns podem ser melhores do que outros” (Peirce 2003: 229). A questão da excelência de algo só pode ser resolvida caso se faça referência a algum propósito que esse algo preencha. Numa obra de arte, seu propósito específico é provocar uma experiência estética. Para apreender a diferença entre fenômenos, no caso de uma obra de arte, de maneira evidente, bastaria comparar quaisquer duas pinturas, como no exemplo que iremos utilizar, Saturno de Goya e o de Rubens.
Saturno é o deus romano identificado a Cronos, um dos Titãs, na mitologia grega. De acordo com uma lenda, Cronos teria sido advertido de que um dos seus filhos o destronaria e passou então a engoli-los por ocasião de seu nascimento (Harvey 1987: 145). Saturno é também a encarnação do Tempo, para os romanos, e o Tempo devora todas as coisas, Tempus edax rerum. Na representação que fez Goya perceba-se como o fundo negro colabora para o sentimento de terror da figura, juntamente com a desproporcionalidade dos corpos representados, e como essa impressão é de certo modo deslocada de seu horror habitual, quando observada em detalhe a cabeça com a boca escancarada do gigante grisalho, o qual possui um certo ar típico, ao mesmo tempo trágico e cômico, das caricaturas ―“penetradas de humanidade” (Baudelaire 1995: 10)― de Goya. Comentando sobre Goya escreve Sylvester que a boca desempenha um papel na sua arte mais proeminente do que em qualquer outro grande artista.
Nesse mesmo quadro perceba-se ainda as diferentes qualidades (que são “idéias gerais”) ao percorrermos o corpo do Titã: a qualidade de repugnância das cicatrizes e manchas; o erotismo velado do corpo despedaçado da(o) filha(o) e da nudez do gigante escondida pela escuridão; a qualidade de rigidez dos músculos e veias intumescidas do braço; a força que ele imprime aos punhos e as contorções do ossos sob a carne nas costas; o vermelho vivo do sangue que dele escorre; a qualidade expressiva da boca (onde concentram-se, junto com a expressão dos olhos, as paixões das quais parece tomado o “monstro”), cuja sombra parece engolir tudo, algo que é reforçado pelo fundo negro da pintura.
Francisco Goya Saturno, 1821-1823 e Peter Paul Rubens Saturno devorando seu filho, 1639
Francisco Goya Saturno (detalhe da boca)
Parece ser assim, mas poderia parecer ser de outro modo? Sim, mas apenas em uma certa medida. Imagine o mesmo quadro com um fundo branco, ou azul, ou vermelho, ou... rosa. Imagine ―ou nem precisa imaginar, observe a versão de Rubens para o mesmo mito: na versão de Rubens (que Goya poderia ter visto em Madrid), “Saturno curva sua cabeça sobre o corpo, afunda seus dentes na carne e suga o sangue que jorra de seu filho que esperneia” (Sylverter s/d). Veja-se que nesse último caso o sangue jorra, e não escorre, Saturno afunda seus dentes e não escancara a boca ―, ainda por cima de velho, da qual mal se vêem os dentes, o lado cômico da figura― parecendo querer nos engolir junto com a pintura. (Outra obra de Goya, de um episódio do romance do século XVII El Lazarillo de Tormes, feita cerca de dez anos antes (1808-1812), é a contraparte cômica desse Saturno. Ela mostra um velho cego forçando o nariz dentro da boca do jovem Lazarillo para “cheirar” se ele tinha comido sua sopa.)
O fato de que parece ser assim é indicativo de que estamos falando do modo como experienciamos qualidades que são possíveis de serem experienciadas desses fenômenos, representados na pintura, cujas qualidades podemos abstrair ―prescindir― da existência material do quadro, que constitui o fenômeno que estamos observando. Não precisamos tocar na pintura, para, por assim dizer, sentirmos sob a pele os ossos. Fazemos isso porque uma qualidade disso ser assim foi corporificada na pintura. Não se pode, portanto, confundir, que estamos dizendo que são qualidades subjetivas, pois todas essas qualidades estão realmente lá como propriedades intrínsecas desses fenômenos, independentemente de alguém experienciá-las ou não. E a capacidade que tem uma obra, concluída em 1823, de continuar despertando em nós sentimentos e cognições, é a prova maior de que se trata de uma “realidade” “viva”, e “não é vestígio mudo, ruína, museu...” (Gadamer 1996: 27). Quando falamos do “ar tragicômico”, ou da expressividade do rosto, etc., estamos supondo que são qualidades que já existem na pintura. Elas existem, como possibilidade positiva definida, até mesmo antes de terem sido corporificadas pela mão do pintor.
BAUDELAIRE, Charles et.al. (1995). Os caprichos de Goya. São Paulo: Imaginário.
BOHER, Karl Heinz (2001). O ético no estético. Ética e estética (org. por ROSENFIELD, D.L). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
GADAMER, Hans-Georg (1996). Estetica y hermenéutica. Madrid: Tecnos.
HARVEY, Paul (1987). Dicionário Oxford de literatura clássica grega e latina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
PARKER, Kelly (1998). The continuity of Peirce’s thought. Vanderbilt University Press: Nasville.
POTTER, Vincent G. (1967). On norms and ideals. Amherst: The University of Massachusetts Press.
SCHILLER, Friedrich (1994). Sobre a educação estética numa série de cartas e outros textos. Lisboa: Imprensa Nacional -Casa da Moeda.
SCHILLER, Friedrich (1995). A educação estética do homem. São Paulo: Iluminuras.
SYLVESTER, David (s/d). About modern art: http://www.artchive.com./core.html.
WILDE, Oscar (1992). A decadência da mentira e outros ensaios. São Paulo: Imago.
PEIRCE, C. S. (1998). The essential Peirce 2. Nathan Houser et al. (eds.). The Peirce edition project. Bloomington, Indiana: Indiana University Press.
PEIRCE, C. S. (2003). Manuscrito 310.1-14. Conferências sobre o pragmatismo – Conferência V. Tradução, apresentação e notas de Lauro José Maia Marques. Cognitio – Revista de Filosofia, São Paulo, Vol. 4, nº 2, 227-231.
segunda-feira, 11 de agosto de 2008
Spleen e Ideal
Porventura posso eu ter roçado de leve a curiosidade do hipotético leitor destas mal-ajambradas linhas, quando evoquei um poema de Baudelaire, ao tratar das garrafas PET que um ser bem intencionado e auspicioso, sob a égide de arte conceitual ou “de protesto”, mandou plantar às margens nada plácidas do rio-esgoto Tietê, que bem podia se chamar Anhanguera ou diabo ou Hades ― ou o principal dos seus rios, na mitologia grega: Stix, “a repugnante”, um dos espíritos fluviais (as filhas de Oceanôs).
Faz pouco tempo, foi ontem, o meu sogro, atualmente com 62 anos, praticava remo no Tietê-Stix, um pouco antes as pessoas nadavam. Houve um tempo, dizem, que se pescava. Esse rio estupendo nasce no interior do Estado de São Paulo, quilômetros antes da Capital, miraculosamente, com águas quase puras.
O poema chama-se Spleen. Recitava para mim em voz baixa, dirigindo devagar. Voltava de uma estada no campo, longe nas serras. Chovia, pouco, uma casca fina e gelatinosa, quase sólida, envolvia as janelas do carro e alguns seres humanos dignos de pena se arrastavam às margens da rodovia. A noite se elevava projetando sombras nos edifícios ao longe e nos casebres dos crentes filhos de Deus empilhados em volta, ameaçadora e cinzenta, escorregadia como um muco, escorrendo à medida que eu adentrava, rumo à luz, a cidade-cemitério, armada de cimento e os seus cheiros, tão adoráveis ao olfato de um cão, intraduzíveis.
Transcrevo, na tradução de Ivo Barroso, que é a que está à mão, o poema de Baudelaire:
Sobre o espírito exposto aos tédios e aos açoites,
E, ungindo toda a curva do horizonte, estampa
Um dia mais escuro e triste do que as noites;
Quando a terra se torna em calabouço horrendo,
Onde a Esperança, qual morcego espavorido,
Sua asa tímida nos muros vai batendo
E a cabeça roçando o teto apodrecido;
Quando a chuva, a escorrer as tranças fugidias,
Imita as grades de uma lúgubre cadeia,
E a muda multidão das aranhas sombrias
Estende em nosso cérebro uma espessa teia,
Os sinos dobram, de repente, furibundos
E lançam contra o céu um uivo horripilante,
Como os espíritos sem pátria e vagabundos
Que se põem a gemer com voz recalcitrante.
― Sem música ou tambor, desfila lentamente
Em minha alma uma esguia e fúnebre carreta;
Chora a Esperança, e a Angústia, atroz e prepotente,
Finca em meu crânio penso uma bandeira preta.
* * *
As garrafas PET infláveis, feitas de vinil, serão ao cabo de alguns meses de “exposição”, desmontadas e submetidas a um processo de higienização e em seguida transformadas em duas mil mochilas a serem doadas a estudantes. A higienização é necessária, por causa das bactérias, fungos, vírus e sabe-se mais o quê a que ficarão expostas. Não seria melhor doar de uma vez o material, o qual, devido à ausência de uma coleta seletiva do lixo, de uma forma ou de outra voltará ao rio? Ou tratar os 32 mil litros de esgoto despejados ali por segundo (solução custosa para a qual seriam necessários investimentos muito maiores)?
Não, pois essa não é a lógica do espetáculo. Primeiro é preciso submeter ao fogo, para somente após, vencida essa primeira etapa de existência simbólica, ritual, estender a mão num gesto de generosidade que não passa de uma desculpa esfarrapada para aliviar a consciência da culpa e legitimar a inutilidade, a não ser para o próprio espetáculo, e as “boas intenções” do ato.
sexta-feira, 8 de agosto de 2008
Perambulamos pela noite, consumidos pelo fogo
A foto tem inegável "beleza plástica" |
“Nenhuma sensatez em cima, nenhuma ordem embaixo”. Assim termina o filme-ensaio-manifesto cujo nome cifrado é um palíndromo latim (pode ser lido da esquerda para direita e vice-e-versa) de Guy Debord. No filme, de 1978, Debord narra: “Nada expressa melhor o atual encurralamento e inquietude que esse velho ditado que por si só diz tudo, montando carta por carta como um labirinto inevitável, unindo perfeitamente a forma e o conteúdo da perdição: In girum imus nocte et consumimur igni. Perambulamos pela noite, consumidos pelo fogo”.
Presente nesse filme, como comenta Luiz Zanin Oricchio, em artigo no jornal O Estado de São Paulo, está a “idéia de espetáculo como a forma moderna da alienação, tendo caráter tautológico por sua própria natureza ('O espetáculo não deseja chegar a nada que não seja ele mesmo')”. Tanto a frase final, quanto o palíndromo e as idéias de Debord servem para pensar a respeito da sequência de 20 esculturas infláveis no formato de grandes garrafas PET (acesas durante a noite) que o artista Eduardo Srur instalou nas duas bordas do Rio Tietê - o Stix paulistano.
Em 21 de maio de 2007 escrevi em um breve texto intitulado “Sobre Estética e cosméticos - anotações para uma possível crítica do boudouir”:
Um artista em São Paulo joga centenas de pérolas (não valiosas) no Rio Tietê, como forma de protestar contra a poluição do rio. O gesto, que poucas pessoas presenciam, gera uma reportagem nos principais jornais, onde somos informados que 32 mil litros de esgoto não tratado são lançados por segundo (!) no rio. Não há uma “obra de arte” específica, um objeto, só um gesto, que é uma tentativa de introduzir elementos esteticamente expressivos numa atitude política. (Assim como seria o terrorismo para Habermas).
Ao mesmo tempo é uma forma de capitalizar a atenção para o autor da iniciativa. Quem sabe ele não será chamado pelo Estado no futuro para fazer uma “intervenção” em uma área pública, ou seu nome não seja cogitado para a próxima Bienal que discutirá, pela ducentésima vez, a relação entre a arte e cidade? A “transgressão” está mais do que institucionalizada. Foi preciso primeiramente o consentimento do poder governante (e o patrocínio deste) para a realização do ato, cujos efeitos na resolução do problema além disso são bastante duvidosos.
Debord sabe, como Heráclito, citado no filme, que “não se pode entrar no mesmo rio duas vezes, nem duas vezes tocar a mesma substância perecível”. Quase um ano depois, inacreditáveis 32 mil litros de porcaria pura continuam sendo despejados por segundo no rio-lama, ou quem sabe, até esse número aumentou. O ex-rio está mais podre e fétido do que nunca. Mas a instalação, “obras lúdicas e provocativas”, “um empreendimento coletivo” - nas palavras do humilde autor da façanha ao jornal - “exigiu meses de pesquisa técnica e participação de diversos profissionais e órgãos públicos”.
“Não, deixe-nos atravessar o rio e descansar debaixo da sombra dessas árvores” (Debord).
Levando a alienação e o aspecto lúdico ao extremo, a TV Cultura, demonstrando mais uma vez o mau gosto estético da emissora, noticiou o evento (“culturalizou” o evento?) colocando o áudio de Trem das Onze (ou foi Sampa?), música-símbolo da capital paulista, sobre as imagens das PET acesas formando um “contraponto às luzes vermelhas dos carros” (palavras do locutor, extasiado diante de tanta beleza) que passavam, também eles engarrafados. Perdidos num labirinto de espelhos, dando voltas pela noite, e sendo consumidos pelo fogo autodesejante do espetáculo televisivo.
Não precisa nem perguntar a quem interessa o show. Certamente não é ao cidadão paulistano, acostumado com a feiúra da cidade, que pode se contemplar no espelho sem luzes do rio imundo e pensar no fracasso da incivilização que ajudou a fomentar. (Entrar na cidade pela avenida depois de uma temporada longe no campo, tem a dimensão de uma tragédia com todas as cores de um poema de Baudelaire sobre o Spleen, é experimentar o apocalipse acontecendo).
Sairia mais barato se tivesse partido do próprio Estado a idéia brilhante, digna de uma Marta Suplicy nos seus melhores dias de “projeto belezura”, mas com certeza seria criticado. Aí entra o “artista” com o seu discurso qualificante perfeitamente adaptado às exigências dos donos do poder e à estrutura do jogo. Se, em lugar das inocentes e pueris PET, fossem imensas fezes iluminadas, o efeito seria outro, a jogada teria alguma audácia, como quando o publicitário da Benetton instalou, a pedido do mandatário local, um desentupidor gigante em Veneza para “afugentar os turistas” - ainda que continuássemos no reino do cinismo. E não da arte, gostaria de acrescentar, se esse nome não estivesse sido já tão maltratado a ponto de perder de vez, se é que possuiu algum dia, o caráter de revolta.
segunda-feira, 4 de agosto de 2008
O TOALETE OU HAMLET
Comecei a comentar o texto de Stanley Fish, traduzido na Revista Bula, “As Humanidades nos salvarão?”, mal tinha terminado de ler. O que segue é um apanhado, com alguns acréscimos, do que comecei a rascunhar na ocasião, na própria seção de comentários da revista.
Concordo que o estudo das Humanidades não salva ninguém. Ponto. Aliás, é muito mais condenar, ao desemprego, por exemplo, do que salvar. No nosso País, então nem se fala. Só que Fish pensa demais como americano, confortavelmente instalado num posto de prestígio de uma universidade de um País tremendamente rico, e não só culturamente. (Ele é professor emérito de Humanidades na Davidson-Kahn Distinguished University e decano do College of Liberal Arts and Sciences da Universidade de Illinois em Chicago.)
Imagine um mundo sem arte. Imagine o Afeganistão dos talibãs ou a América fanática de Bush que nega Darwin (coisa que dificilmente alguém letrado defenderia). Ou o Brasil com seu povo explorado e feliz, se achando um habitante do Paraíso. Eis aí os “efeitos concretos” experienciáveis de um mundo sem acesso às Humanidades.
Nesse texto não acho que ele esteja questionando apenas a utilidade “prática” das interpretações de textos literários, ainda que esse possa ter sido seu alvo inicial, mas coloca em xeque o próprio valor desse estudo. E por extensão das artes. É o velho argumento, com uma roupagem nova, de que é melhor investir na cura de doenças do que em teatro, livros, ou no estudo das artes. (À primeira vista fica difícil de negar que não seja assim). A questão toda gira em torno do financiamento do departamento de Artes e Humanidades. Ao que parece, para Fish, os integrantes desse departamento não têm o direito de reclamar da ausência de financiamento. Afinal não há como justificar tal financiamento, as Humanidades não servem para nada, elas não produzem efeitos “palpáveis”, a não ser proporcionar prazer aos seus apreciadores. Elas não servem a um bem maior, mas são seu próprio bem.
Em um artigo chamado “Verdade e Toaletes: Pragmatismo e as Práticas da Vida”, Fish diz também que “pontos de vista filosóficos são independentes dos pontos de vista de uma pessoa (e logo de suas práticas) em qualquer outro domínio da vida diferente do domínio muito específico e refinado do fazer filosófico”. O mesmo, segundo ele, se dá com o estudo das Artes e Humanidades em geral. Não nos torna mais nobres ou pessoas melhores, mas mais habilitados a responder sobre esses campos específicos, quando solicitados. E Fish ainda afirma, nesse mesmo artigo publicado como uma reflexão sobre a coletânea “O revival do pragmatismo”, de 1999: “A tese de que toaletes são mais essenciais à vida do que a filosofia me parece auto-evidente”. No fundo ele tem razão,o estudo da arte e humanidades não salva a vida de ninguém, mas saneamento básico, e a existência de banheiros, sim.
A minha total discordância é quando ele afirma que as Humanidades, o estudo ou ensino ou a prática disso, “não podem produzir efeitos concretos”, e só podem ter sua existência justificada, “em relação ao prazer que dão àqueles que as apreciam.” Ele está obviamente minimizando o impacto da Cultura na sociedade, e reduzindo tudo a uma questão hedonista. Para ficar num caso bem conhecido, lembremos que Hitler utilizou argumentos estéticos (de raça “pura”) para propor varrer os judeus da Alemanha. Não só para o “bem”, mas para o “mal”, uma esfera influencia a outra. Essa pretensa autonomia dos saberes que ele pretende não existe.
Levada ao extremo a opinião de Fish, nem deveria haver ensino de filosofia ou humanidades em geral em países pobres como o Brasil. Realmente não há como justificar o financiamento dessa área em relação a outras muito mais “rentáveis”. É justamente por propor um distanciamento entre as diferentes áreas do saber, que Fish só consegue justificar a existência da área em que atua recorrendo à noção gasta de prazer.
A milésima interpretação de Hamlet é tão “útil” à sociedade quanto foi a primeira e quanto será a milésima primeira. Não se pode medir a produção acadêmica desse modo. Hamlet continuará sendo lido e estudado enquanto houver pessoas dispostas a lê-lo e ensiná-lo ― e fazem isso porque o julgam merecedor de tal ato, como algo importante em suas vidas.
segunda-feira, 21 de julho de 2008
Deus-me-livrei!
VARIAÇÕES SOBRE O DINOSSAURO**
Versão para o público (happy-ending)
Quando acordou, o dinossauro já havia ido embora.
sexta-feira, 18 de julho de 2008
quarta-feira, 16 de julho de 2008
Da criação
(livro poético)
Lembrar-se:
1. São as palavras que importam, não a expressão do Eu individual.
2. A pesquisa das palavras é o mais importante.
3. Ler poesia sempre. Principalmente aqueles que faltam ler ou ler mais Eliot, Artaud, etc. (Por que Eliot, Artaud? Ler mais "o que interessa". Guimarães Rosa)
XI-RARO
Pesada a fronte
Como por um raio
Iluminada a noite
Ao pé do monte.
5. Por que importa a natureza? Os quatro elementos. Não perder de vista isso.
6.*Manter o Eu sempre em suspenso. Entre aspas. Ou em itálico.
7. **Narrar, abusar da terceira pessoa.
8. Quebrar frases. Expulsar o óbvio, o que rima fácil.
9. Não tentar ser lógico.
10. Contar uma história como se não tivesse entendido tudo (Borges).
segunda-feira, 14 de julho de 2008
Os infinitos de Borges
Voltemos a Borges e às suas Obras Completas, Volume 1. Após passar a vista nos poemas, fui direto para a leitura que me prendeu ao livro, e que me fez chegar até aqui, a esse ponto do meu relato: o conto que dá nome ao título mais famoso de Borges: O Aleph. Uma vez que caímos na sua armadilha não o esqueceremos jamais. O Aleph é pois um tipo de Zahir borgeano, o objeto que é capaz de nos fazer esquecer todo o universo. No caso, o esquecimento pode ser das outras obras de Borges, assim como A Metamorfose é para alguns, péssimos leitores, o Zahir kafkiano, e não me admiraria se ele tivesse querido em algum momento desfazer-se desse conto. Mas é sem dúvida exagero dizer isso e só o faço por uma questão de estilo. O Zahir é tema de outro conto do livro, uma espécie de conto irmão deste, talvez escrito antes do Aleph, e em ambos o autor assinala, num epílogo de 1949, a influência da estória “The crystal egg” (1899), de Wells. Talvez o Aleph seja afinal um reflexo de uma outra miragem de Borges, de outro livro, anterior, Ficções, e dentro deste o conto: o Jardim de Veredas que se Bifurcam, o labirinto dentro de um livro, com suas dobras temporais: presente em que releio (e portanto situado no passado) e futuro em que será relido (fecha-se o círculo que é eterno). Começa-se a ler Borges e fica-se prisioneiro das referências, dessas palavras e termos, enriquecido pelo conhecimento, dessas metáforas vertiginosas, de sua mise en abîme. Não se esquece, rememora-se, vai-se adiante e retorna-se. Não se deve ler Borges começando pelo Aleph, como fez um conhecido meu. As obras completas têm portanto essa vantagem, de trazer ao leitor recém-iniciado tudo de uma só vez. Ler saltando de uma estória a outra, e no tempo, é outro dos prazeres. Falei em enriquecimento e não há melhor palavra para descrever. Borges é o tipo de escritor que nos torna mais inteligentes, ou em contato com a sua inteligência superior, nos faz sentir mais inteligentes do que realmente somos. Abrem-se mundos, que não existiam antes, deuses que criamos, fala-se com os mortos, alguns até ressuscitam.
sábado, 5 de julho de 2008
CADERNOS DE ESTÉTICA
Lauro Marques
RAZÃO-POESIA
–– “O que faz uma obra ser dotada de poesia e outra não? A sensibilidade do receptor?”
Acredito que deva haver uma razão objetiva, isto é, na própria obra. Existem potencialidades latentes que apelam tanto à razão como à emoção, para um receptor suficientemente apto a interpretar-sentir (sentir já é uma forma de interpretar).
Alogicidade, pelo menos de um tipo de lógica, formal, estrito senso, é uma das características da poesia. Mas há um outro tipo de lógica, que apela para, na falta de uma palavra melhor aqui, a “intuição” e funciona por meio, por exemplo, do uso de metáforas.
Lembremo-nos que um poema verbal é constituído de um encadeamento de palavras, uma após a outra. Essas palavras formam conexões “abertas”, e, para mim, quanto mais abertas, ambíguas, mais “poéticas”.
Isso nos “salva do abismo de existir”? Talvez seja um só nó em que nos seguremos, por algum tempo. Não seria o poeta aquele que, ao contrário, mantém-se sempre na superfície? Sempre mirando o abismo e portanto nunca a salvo dele?
Salvos estariam somente os que evitam esse olhar. O homem comum. Mas quem quer estar-se a salvo quer também fugir. Este tem medo... não sente....
Talvez nossa tarefa, e parte de nossa condenação, como poetas, seja “permanecer valentemente na superfície, na dobra, na pele, adorar a aparência, acreditar em formas, em tons, em palavras, em todo o Olimpo da aparência!”. Ser “superficiais – por profundidade...” , como os gregos, como queria Nietzsche.
TRANSPARÊNCIA
Pensar como o poema “revela” algo (de nós, do mundo). Por que temos pudor do poema? Porque ele nos deixa nus, ao mesmo tempo em que esconde. É transparência. Benedito Nunes fala algo a respeito disso no livro “Introdução à filosofia da arte”, da Série Fundamentos, vol. 38. São Paulo: Ática.
O objeto estético, que é ao mesmo tempo sensível e expressivo, é para Nunes (1991: 79) uma “existência ‘aparente’, não como Platão queria, mas como Schiller entendeu: aparência que é translucidez ou transparência, a qual vive de sua própria forma reveladora”. E afirma Suzanne Langer (apud Nunes 1991: 80) que: “uma obra de arte difere de todas as outras coisas belas pelo fato de que é ‘vidro e transparência’ (palavras de Ortega y Gasset)”, sendo, portanto, nessa acepção, “um símbolo”.
“A arte é uma forma de ação, cujos efeitos se produzem de maneira indireta, oblíqua, na proporção da transparência do mundo que exprime. Revelando-nos o humano em sua variedade e profundeza, forçando-nos a interiorizar essa revelação e assimilá-la à experiência, ela age sobre a nossa maneira de sentir e pensar” (Nunes 1991: 88).
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Poesia é risco. Ser poeta é arriscar-se. Mas não nos confundamos mais, uma coisa é o poema, outra a poesia (há até quem faça poema sem poesia...).
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Há na poesia uma espécie de fusão. Quando eu era menino, por volta dos sete anos, lembro que minhas viagens de carro com meus pais duravam horas. Iam da madrugada até o meio da tarde do dia seguinte. Eram séculos, em que eu podia observar todas as colorações, mudanças de tom, da paisagem e vegetação que iam do preto-azul escuro cinza ao amarelo e azul e verde e depois cinza e azul e depois verde-escuro-azul e amarelo-ouro de novo. Lembro da paisagem lunar do Pico do Cabugi, marciana, quando ficava avermelhado. (Revendo a fotografia, me lembrei de uma Torre do Silêncio Parse). Lembro também da comoção que me causavam algumas pessoas caminhando ao pé da rodovia. Como, diante de uma casa solitária com um homem velho parado à entrada eu podia sentir como se fosse aquele homem, ou essas crianças jogando bola num chão de terra batida, ou agachadas ao lado de um cão, ou aquela mulher com um lenço vermelho estendendo roupa numa cerca de arame na planitude. Podia me ver transportado para dentro daquela pessoa e quase me observar passando diante deles, de seus olhos. Em uma ocasião, disse à minha mãe, como eu me sentia. Cautelosa, ela pediu-me para não fazer mais isso. Eu não deveria fazer mais isso. Era perigoso, ela disse, olhar na alma das pessoas.
domingo, 15 de junho de 2008
O Elogio da Dúvida
Resenha-ensaio de “O Elogio do Amor”, de Jean-Luc Godard
Lauro José Maia Marques
Ficha técnica
Título: O Elogio do Amor.
Diretor: Jean-Luc Godard
Atores: Bruno Putzulu, Cecile Camp, Jean Davy, Françoise Verny.
Duração: 98 minutos.
Ano: 2001.
País: França.
“O elogio do amor”, o elogio “de alguma coisa”. A frase aparece, entrecortada, em letras brancas sobre a tela preta, insistentemente interrompendo a fruição contínua do filme. Desde os primeiros minutos do longa-metragem, de 2001, Jean-Luc Godard joga com a ambiguidade e o descontínuo, palavras-chave do cinema desse autor.
Neste, como em outros filmes do ex-crítico da revista Cahiers du Cinéma, nos anos 50, e um dos diretores mais marcantes do movimento cultural que redefiniu o cinema moderno para a França e para o mundo na década de 60, a Nouvelle Vague, ao lado de personalidades como Truffaut, Chabrol e Rohmer, não se trata de narrar uma estória, de forma clara, com começo, meio e fim, de modo a envolver — entretendo — o espectador, à maneira do cinema clássico hollywoodiano.
Trata-se antes de, partindo de uma idéia, por vezes imprecisa, e utilizando-se de um universo audiovisual heterogêneo, chegar-se a uma obra de ficção, que seja também um comentário crítico da realidade e do papel do cinema em lidar com essa mesma realidade.
O filme se desenrola em duas partes. Na primeira, filmada em preto e branco, um homem, chamado Edgar, tem um projeto vago: fazer um filme (ou um romance, ou uma peça, ou uma ópera, ele não sabe direito), na “tradição do documentário”, sobre os vários “momentos” do amor, atravessando a juventude, passando pela idade madura, até a velhice.
O projeto está desde o início fadado ao fracasso, pois “o que é um adulto?”, pergunta-se à certa altura Edgar. Os jovens e os velhos são evidentes, mas não os adultos, estes são difíceis de definir, podendo mesmo passar despercebidos. O que se dá em seguida é a narração da impossibilidade de se contar essa estória.
Edgar peregrina por Paris, (e nos faz lembrar imediatamente de Acossado (1960), primeiro filme de Godard, em que um não menos angustiado Jean-Paul Belmondo buscava freneticamente o sentido da vida e do amor nas ruas da cidade-fetiche do autor), procurando pessoas para seu projeto, com um livro em branco nas mãos, um livro sem frases, como um sinal dos tempos, da nossa época das imagens. A trama é um pretexto para Godard ir tecendo sua visão de mundo e do cinema, literalmente falando pela boca de suas criações.
“As coisas estão aí, por que inventá-las?”, questiona Edgar-Godard, parafraseando o neo-realista Rossellini, trocando “manipulação” por “invenção”. Na sequência seguinte há um corte para um casal de mendigos, enrolando-se em um cobertor imundo na calçada. É preciso observar a realidade ao invés de tentar extrair ficções dela, concordaria com ele Zavattini (Xavier 1977: 59) ― outro ícone do movimento cinematográfico da Itália do pós-guerra, cuja “fome de realidade” (Xavier 1977: 59), influenciaria o surgimento da Nouvelle Vague francesa. As coisas precisam resistir para que possam existir fora de nós, diferentemente das ilusões que criamos.
Contudo, o real luta contra revelar-se em sua inteireza. “Uma imagem nunca diz nada”, afirma Edgar. Ela sempre remete à outra, anterior. Não podemos pensar senão por meio de associações. Por isso, a opção pelo ensaio, como forma, e a “primazia da ambiguidade”, como “hipótese e método” (Xavier 1977:62). O que Godard é contra é o artificialismo da certeza (ilusória), celebrado por diretores como Steven Spielberg — uma crítica que já podemos encontrar em O Demônio das Onze Horas (1965): o Cinema é o reino da descontinuidade, posta aqui a serviço de um discurso ambíguo e de final em aberto.
A mulher ideal para o par amoroso na idade adulta, no projeto de Edgar, foi encontrada (e perdida para sempre) no passado, em que ocorre a segunda parte do filme, cronologicamente situada dois anos antes da primeira, e ironicamente rodada em imagens digitais em cores hipersaturadas. Imagens que brincam com as novas possibilidades tecnológicas e fazem eco a experiências recentes do diretor, como na série Histoire(s) du Cinéma (1989-98), mas também em La Puissance de la Parole (1988), ambos fundamentais para as relações entre a arte e a comunicação contemporâneas.
A ironia é que inverte o clichê cinematográfico (passado=preto e branco, presente=colorido), utilizando-se de imagens digitais coloridas para mostrar o passado, que é também a memória/ficção do personagem principal do filme. Ao introduzir um defeito na qualidade dessas imagens, rebela-se uma vez mais contra a fotografia limpa, asséptica, sem ruídos, hollywoodiana. Escolha técnica que faz todo sentido: insere um elemento estranho, impedindo a fruição espontânea, forçando o espectador a uma postura crítica sobre o significado do que está sendo mostrado.
O exato oposto do que ocorre em A Lista de Schindler, de Steven Spielberg, e seu final “real” filmado em cores. Nele vemos bem aonde o uso das convenções, mesmo quando visando uma pretensa objetividade, podem levar: em contraste com seu final, todo o resto do filme, o próprio Holocausto inclusive, corre o risco de ser tomado como uma ficção. A polêmica em torno do filme de Spielberg é o objeto recorrente das investidas de Godard em O Elogio do Amor.
Na segunda metade, principalmente ao final, a montagem adquire um ritmo caótico, com momentos de cinema poético puro e metáforas visuais reveladoras do discurso do autor. Tais como a de uma onda, que fundida à imagem, vai varrendo a tela, como se fosse apagando a memória dos fatos. Talvez querendo com isso dizer que a memória, apoderada por uma narrativa que abdica da ambiguidade, em função do espetáculo, redunda em esquecimento.
Ou quem sabe Godard quisesse nos reportar a Titanic — filme que é alvo de comentários, não muito elogiosos, no contexto da apropriação da memória pelo cinema americano, ao cabo de uma sequência em que um casal de ex-combatentes da resistência vendem sua história para os estúdios de Spielberg.
Há ainda uma terceira onda, menos vaga, a que Godard poderia estar se referindo: a do ressurgimento do fascismo na Europa. “A resistência conheceu a juventude, conheceu a velhice, mas não chegou jamais à idade adulta”, constata, no alto dos seus 71 anos. E o que aconteceu na França, no dia 21 de abril de 2002, quando dois partidos de extrema-direita obtiveram juntos 5,5 milhões de votos, no primeiro turno da eleição presidencial, servem, caso não servirem para mais nada, para confirmá-lo.
XAVIER, Ismail (1977). O discurso Cinematográfico. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
sexta-feira, 2 de maio de 2008
Último filme de Woody Allen é Hitchcok sem suspense
Para mim o filme é um Hitchcok sem suspense (SIC). Allen deu um entrevista publicada na Folha de SP, que fez uma coisa meio idiota, no estilo VEJA, na edição impressa, comparando-o à hiena Hardy, porque ele diz -oh céus- que a vida é trágica.
PERGUNTA - Você disse uma vez que a vida é "uma experiência bastante trágica".
ALLEN - Sempre senti que a vida é uma confusão muito grande. Tenho uma visão sombria e pessimista da vida e da fé do homem, da condição humana. Mas acho que há alguns oásis extremamente divertidos no meio dessa miragem. Há momentos de prazer e momentos que são divertidos, mas, basicamente, a vida é trágica.
Leia a entrevista completa na FolhaOnline
terça-feira, 5 de fevereiro de 2008
Bárbara e eu
Nada demais. Apenas o fel e o mel do cotidiano. Nossos lençóis sendo dobrados pela manhã, marcando a alternância entre dia e noite. Suas saídas para lugar nenhum e as minhas andanças pelo bairro vazio, o relógio que não temos, esquecido. Um pouco lavar as louças (eu), varrer a casa (Bárbara), escutar música e adormecer nos seus braços ou não. Ficar só. Ler um conto de Cortázar ou Sciascia. Lembrar nosso mergulho na Ilha do Breu, nome sintomático, onde sintomaticamente desaparecemos do radar por dois dias seguidos. Bárbara sorri quando não chora. Fosse a vida um barco. Um mar calmo e nós dentro dele. “Pena que não é”, Bárbara sorri, quando não chora. E ali, esquecidos, os dias passam. Ali onde não estamos, Bárbara e eu. Apenas suspeitamos.
A bolsa de Bárbara. Signo da ausência de Bárbara. Seu nome ferino, sua natureza indômita. A história que me contou de como atravessou um túnel, a pé, na Sicília, para cortar caminho, no meio do campo, e seguiu junto à linha do trem, quando, durante a travessia, quase que morreu por alguns segundos. Teve que ficar colada contra a parede do túnel, na ponta dos pés, vendo o trem passar com toda a sua carga, lentamente, à sua frente, vagão por vagão, interminável e quente, e o apito se transformar em anos. “Saí do outro lado envelhecida”. E só por essa história já poderia amá-la.
Mas então novas brigas. Outro mergulho em outro breu, mais denso e viscoso e pútrido como sangue podre. Nossos conflitos infindáveis, o fel de que vos falei. Saio a levar para passear o cão de nossas rusgas, o que eu odeio, que mija e defeca pelas ruas e que de vez em quando me morde, furioso. Levo-o pela coleira apertada no pescoço, a saliva escorrendo pelo canto da boca, uiva. Eis que achei a imagem perfeita para as nossas desavenças, a de um cão sarnento, que levo para passear, e essa imagem me faz bem por alguns instantes. Paro para admirar um abacateiro, uma goiabeira que surge insuspeitada em meio à avenida. Puxo uma folha de amora e sopro entre os dentes, um assobio, e o cão vai embora. Bárbara sorri, quando não chora. E quando chora, o mundo inteiro desaba. E então ela fará tudo de novo outra vez, da mesma forma, e nós dois dando voltas em círculos como um relógio tonto. O gesto infantil do guri que relha e chora, quando lhe roubam a água do pocinho em frente ao oceano. Bárbara felimininamente sorri. O assobio da amora. Amarga. Arrasto o cão da angústia. O fel. E o mel. Morde os lábios. Chora. Bárbara.
Depois meiga, o rabinho balançando, as garras ainda compridas, a cabeça baixa a esconder a mandíbula portentosa, rostos femininos em monstros desde a pré-história, difícil resistir, nua crava a boca em meu peito, as unhas, sangrando, no rosto, seu colado no meu, o suor escorrendo de ambas as testas, rolamos agarrados um ao outro, num amplexo infernal, minha língua em sua língua, em suas costas, de lado, pernas, leoa, cabeleira loura, deitada, rugindo, o vôo dos pássaros, alma, nada, vazio, Deus, nada, abismos.
quarta-feira, 23 de janeiro de 2008
Diálogos - O encontro inadiável
― Desculpem interromper vossa conversa, senhores, mas tenho, neste exato momento, um encontro inadiável comigo mesmo!
Disse isso, deixando as palavras em suspenso, e partiu.
* * *
― Mas se não é o diabo em pessoa! Disse o amigo, vendo-o entrar pela porta do bar.
― Por favor, evite me chamar pelo meu nome verdadeiro! Sorriu, enquanto puxava uma cadeira e sentava.
― Que maus ventos o trazem de volta ao velho antro? Perguntou o amigo.
― Era exatamente o que eu estava me perguntando agora mesmo, quando saí do trabalho.
O bar chamava-se “El Chasco” e tinha sido freqüentado por ambos na juventude.
― Mas não imaginava encontrar com outra pessoa a não ser comigo mesmo!
― Vamos com calma a essa hora, que ainda estou na primeira tequilita, hombre!
― Bueno.
― Que dices?
― Una tequila!
― E presto! Mas não perguntei, que bebes?
― Duas taças de vinho e uma boa refeição, como faziam os príncipes e não podiam os mendigos.
― Shakespeare?
― Ele também.
― Mas onde se enfiou aquele cagatintas do garçom?
O garçom se aproxima com uma bandeja, contendo dois copos e uma cerveja. Apesar de não ser exatamente um cagatintas, a palavra o impressionara.
― Ser ou não ser?
― Ser! Respondem em uníssono. O garçom enche seus copos com o líquido amarelo borbulhante.
― Não ser! Bebem de um gole.
O bar, um quadrado em forma de caixote, teto baixo, as paredes cobertas de caixas de ovo cinzas exalando a nicotina de vários cigarros antepassados, havia mudado de dono e de nome, para “El Cajón”. Ao centro da parede, pendia um quadro que parecia ter sido cuspido na tela, guache sobre cartolina, pelo autor: um rosto em forma de árvore ou uma árvore em forma de rosto, a psicologia da arte ainda não havia sido conclusória, de aspecto repulsivo e viscoso, lhes encarava.
― Esse cabrón continua aí.
― Sim, o trato foi que nada fosse removido.
― E “el gran cabrón”?
- Muerto, hace años. Um tiro pelas costas. Um fã de Warhol.
- Por supuesto.
Ao fundo, Herbie Hancock caprichava na melodia. Antigamente, eram os discos de rock, Tom Waits.
― Esse ainda toca. O dono gosta.
Pediram uma porção de pimentas, que mordiscaram sem prazer.
― Há coisas que só pioram com o tempo. De outro lado, temos a burrice (Nelson Rodrigues) e a música que são eternas.
― Na minha impressão, tudo melhora. Excetuando-se essas pimentas e a más memórias.
― Como as pimentas, não se pode simplesmente cuspir.
― Neste ponto, entra a tequila.
― Sim. Garçom!
* * *
Passaram-se minutos, talvez horas. O homem se levanta, assim como seu reflexo solitário, acompanhado pelo olhar complacente do garçom pelo espelho do bar, prestes a fechar. Estivera o tempo todo calado e pensativo e solitário olhando para o copo. Todo esse tempo não dissera uma só palavra, além do nome de umas três bebidas.