sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Dois instantâneos


Felicidade de Pipa

A febre voltou.

Palavras podem ser deliciosas.

Comê-las.

Com meus olhos

soltos no espaço.

Entre o ziguezaguear feliz de uma pipa e
o trem passeando no
elevado
sobre a rua de carros empilhados.


Baterista cego

Gesto 1:
A vareta abre-se ao comando
do meu braço
Desenrolando-se
em câmera lenta.

Antes retraída
Em duas partes seguras
pela minha mão
(Duas baquetas)
entre minhas pernas
de baterista
cego sentado.

Gesto 2:
Fixo a vareta no chão
meus olhos
(Há muito tempo)
Fechados
Até que paralisem
o trem.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

forrest gander

descoberto na revista Confraria:

Nós sobrevivemos ao Natal, seu rosto prensado contra o peito espremido de sua avó numa casa tão imaculada, a aranha na fresta do teto mantém distância obscenamente.

forrest gander
ligaduras

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007




“ No reencontro. ― A: Eu ainda o compreendo bem? Você está buscando? Onde se acham, no meio do mundo real de agora, seu canto e sua estrela? Onde pode você deitar-se ao sol, de forma que também lhe chegue um excedente de bem-estar e a sua existência se justifique? Que cada um faça isto por si próprio ― você parece me dizer ― e tire da mente as generalidades e as preocupações com os outros e a sociedade! ― B: Eu quero mais, eu não sou um buscador. Quero criar para mim meu próprio sol.”

Que Nietzsche tenha escrito isso por volta de 1882, em a Gaia Ciência, me faz pensar como, de todos os filósofos, ele talvez seja o mais necessário e como é necessária a sua leitura ainda hoje. E como anêmicos, afetados, frívolos e desnecessários ― por mais aberrante que soe a palavra ― me parecem Kant, Schiller, Schelling e outros pensadores alemães, com seus sistemas e metas e ideais e conceitos abstratos, sempre pairando um pouco acima da superfície sem jamais produzir nenhum atrito. Todos muito altos e etéreos ― ... e muito pouco (profundamente) superficiais!


VEGETARIANISMO

Corrijo um erro: não foi em A Gaia Ciência a definição do vegetariano que citei em outra ocasião. Foi em O Caso Wagner, dedicado a “desmascarar” o compositor alemão Richard Wagner. “Definição do vegetariano: um ser que necessita de um fortificante”. Interessante que em Ecce Homo, ao mesmo tempo em que espinafra a cozinha alemã e elogia a italiana do Piemonte, ele se declara “um adversário por excelência do vegetarianismo, exatamente como Richard Wagner, que me converteu”, além de se declarar contra qualquer bebida “espirituosa” (mais menos como Wagner era para ele): “água basta...”! (Ao que retrucaria um não abstêmio irônico como Fernando Pessoa: “Dêem-me de beber que não tenho sede!”).

BARRABÁS

Esse livro, Ecce Homo ― cujo título é extraído da versão vulgata da Bíblia, no evangelho de são João, capítulo 19, onde Pilatos apresenta Cristo aos judeus ― contém a melhor argumentação para aqueles que professam uma aceitável dúvida em Deus (ao contrário daqueles que só acham possível crer em Deus). Deus é uma resposta grosseira.“Sou muito inquiridor, muito duvidoso, muito altivo para me satisfazer com uma resposta grosseira. Deus é uma resposta grosseira, uma indelicadeza para conosco, pensadores ― no fundo, até mesmo uma grosseira proibição para nós: não devem pensar!”.

LIVRE PENSAR

“Eis o homem”, o episódio bíblico da escolha de Barrabás serviu como desculpa para a perseguição e morte de judeus nos séculos seguintes. Dizem que santo de casa não faz milagres, mas fato é que o sectarismo de Jesus não alterou muito o judaísmo até hoje, passados mais de dois mil anos, e a maior parte dos povos do Oriente Médio professa a fé islâmica. Não deixa de ser também uma boutade histórica que os santos floresceram na Itália dos dominadores romanos e de lá saíram também a maior parte dos “representantes” de Cristo na terra.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

"Chique", no segundo.

FSP, 30/11
Brasil tem 2º melhor IDH entre os Brics
DA REDAÇÃO

O termo Bric é usado para o grupo dos quatro gigantes econômicos emergentes -Brasil, Rússia, Índia e China. O Brasil é o segundo melhor entre os Brics em relação ao grau de desenvolvimento humano. No relatório das Nações Unidas, divulgado nesta semana, o país obteve o 70º lugar no ranking do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano).A Rússia ficou três posições acima, como 67ª colocada. China e Índia ficaram atrás, com o 81º e o 128º lugares, respectivamente.

"Chique", no "úrtimo"

Folha de São Paulo, 30/11
ELIANE CANTANHÊDE

"Chique"
BRASÍLIA - Segundo Lula, o Brasil agora é "chique", porque é do Brics, com Rússia, Índia e China, e além disso integra o grupo dos países de alto desenvolvimento humano. Ele, porém, esqueceu de alguns "detalhes" e manteve aquela postura curiosa: vitórias são sempre dele; derrotas, dos outros.

A curva do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Brasil mostra claramente que os avanços do país são parte de um longo processo: 0,723 em 1990, 0,753 em 1995, 0,789 em 2000 e, enfim, 0,800 em 2005. Ou seja, o menor avanço em 15 anos foi justamente de 2000 para 2005.

É como Lula capitalizar a auto-suficiência do petróleo e a descoberta de um possível megacampo da Petrobras como mágicas dele. Ou, ainda, como Lula comemorar a marca de um milhão de carros da Ford na Bahia. O PT gaúcho expulsou a fábrica, e o PFL baiano pegou. A festa é do PFL (ou DEM) baiano.

E não custa lembrar que o Brasil entrou no grupo de alto desenvolvimento humano como lanterninha, o último entre os 70, o que não tem nada de chique, especialmente quando comparado ao desenvolvimento econômico, também resultado de um longo processo.

No confronto com dados da realidade, a coisa fica ainda pior. Na mesma semana em que Lula estala a língua de alegria com o IDH, o país e o mundo se chocam com a história de L., a menina franzina e violentada pela vida, entregue pelas "autoridades" às feras no Pará.

Essa menina não é um caso isolado. Ao contrário, sua dor chama a atenção para a situação de sabe-se lá quantas mulheres no Pará e sabe-se lá quantas mulheres e homens jogados como bichos em cadeias pelo país afora. Muitos, aliás, inocentes e sem defesa.

Números são números. Siglas são siglas. A realidade, senhor presidente, é que o Brasil vem evoluindo, sim, mas está longe, muito longe de ser "chique". Pergunte a L.

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Bolsa Família "diminui desigualdade", mas...

Jornal de Debates
http://www.jornaldedebates.ig.com.br/index.aspx?tma_id=1454

O Brasil merece o posto de elite da qualidade de vida?

A ONU incluiu o Brasil no grupo de elite da qualidade de vida. O país é o último dos 70 mais bem colocados, com IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) superior a 0,800, em uma escala de zero a um. O ingresso aconteceu graças a uma revisão nas estatísicas de expectativa de vida, que elevou a esperança de vida de 70,8 anos para 71,7 no país.

De acordo com o relatório de Desenvolvimento Humano da ONU, "o Bolsa Família é responsável por quase um quarto da recente queda abrupta na desigualdade no Brasil e por 16% de seu declínio na probreza extrema".

O assessor do Pnud (Programa das Nações Unidas de Desenvolvimento Humano), Flávio Comin, aponta cinco áreas em que o Brasil está muito defasado em relação aos outros países de alto desenvolvimento: saneamento básico, pobreza, mortalidade infantil, mortalidade materna e desigualdade.

Na primeira área, um estudo da Fundação Getúlio Vargas demonstra que o país vai demorar para conseguir melhorar. Segundo a estimativa, se se manter o nível de crescimento das redes em 1,59% ao ano, somente em 2122 toda a população brasileira terá acesso à rede de coleta de esgoto. A fundação calculou que apenas 46,77% da população possuía rede de coleta em 2006. O Jornal de Debates pergunta: o Brasil merece o posto de elite da qualidade de vida?

Desenvolvimento econômico à frente do social

O Estado de São Paulo
quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Com atraso, Brasil entra no grupo de alto desenvolvimento humano
País alcançou 0,800 a passos lentos; renda melhorou, mas outros indicadores seguem em situação crítica


Lisandra Paraguassú e Lígia Formenti, BRASÍLIA

Pela primeira vez desde que foi divulgado o primeiro relatório do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), há 30 anos, o Brasil alcançou a pontuação 0,800, o que coloca o País na categoria do alto desenvolvimento humano. O relatório é de 2007, mas com base nos dados de 2005.

A própria Organização das Nações Unidas (ONU), que coleta as informações e faz o cálculo do índice, trata a conquista brasileira de maneira comedida.

Veja a evolução do IDH

"É simbólico. Há muito para se fazer", afirmou Flávio Comin, especialista em Desenvolvimento Humano e assessor do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), que prepara o relatório do IDH. Só o Bolsa-Família, com a prática da transferência de renda, é que empurra o País para cima. A precariedade das políticas públicas de saúde, educação e saneamento não melhora significativamente a vida dos brasileiros.

Na comparação de índices sociais, o Brasil continua perdendo de países como Chile, Argentina, Uruguai e México. "Os números mostram que estamos no caminho correto, mas temos uma dívida social muito grande", afirmou Patrus Ananias, ministro do Desenvolvimento Social.

O Brasil chegou a um IDH 0,800, mas não conseguiu subir na comparação entre países. Era o 69º em 2006 (0,792). É o 70º neste ano, o último da linha de alto desenvolvimento humano. E chegou a esse estágio por conta de revisões na metodologia de cálculo dos dados, descobrindo-se que Albânia e Arábia Saudita têm situações melhores que a brasileira.

O grupo de médio desenvolvimento, onde sempre esteve o Brasil, vai de 0,500 a 0,799, enquanto os países com baixo desenvolvimento - a maioria, do continente africano - têm índices que chegam, no máximo, a 0,499.

EMPURRÃO ECONÔMICO

Um olhar mais atento sobre os números mostra que o Brasil melhora a passos muito lentos e, se avançou na economia, ainda deixa a desejar nos avanços sociais. É na comparação entre Produto Interno Bruto (PIB) per capita e o IDH que a real situação social do Brasil aparece.Nesse índice, números positivos significam que o desenvolvimento social do País é maior do que o desenvolvimento econômico. O número brasileiro é três negativo.

Países que o Brasil ultrapassou no ranking têm resultados melhores. É o caso da Venezuela, que tem uma pontuação 14, do Equador, com 21, e do Paraguai, com 10.

"No Brasil, o desenvolvimento econômico está à frente do desenvolvimento social. É preciso crescer renda, mas é preciso que se cresça numa velocidade maior nessas dimensões sociais", afirma o assessor do Pnud.

Se o País melhorou gradativamente em todos os índices que compõem o IDH (renda, educação e saúde) é o aspecto econômico que tem tido mais peso, especialmente depois da criação de programas de transferência de renda - políticas iniciadas no segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso (1999-2002), com a criação da chamada Rede de Proteção Social, e que foram consolidadas no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a partir de 2004, com o Bolsa-Família, que unificou e expandiu a rede social.

Neste ano, a renda foi a única que teve crescimento real no Brasil. Saúde e educação tiveram índices melhores por conta de revisões de metodologias feitas pela ONU. O PIB per capita no Brasil passou de US$ 8.195 para US$ 8.402 (o dólar usado é o da Paridade de Poder de Compra, não o câmbio real).

Desse valor, US$ 130 são devidos à revisão dos dados, mas US$ 77 foi de crescimento real.No Índice de Pobreza Humana (IPH) - um cálculo que leva em conta a situação de saúde, renda e educação apenas da parte mais pobre da população -, o Brasil aparece em 23º lugar entre 108 países em desenvolvimento. Mas, quando se tira a renda da conta, o Brasil cai seis posições no ranking. Sobra um país em que ainda há uma enorme faixa da população analfabeta, com problemas de saneamento básico e mortalidades infantil e materna acima do aceitável.

ESPAÇO PARA OTIMISMO

Apesar dos problemas, a ONU aponta motivos para otimismo no Brasil. A previsão é que os relatórios dos próximos anos poderão trazer números melhores, resultado de investimentos atuais. "Uma coisa interessante é que houve redistribuição de renda nos últimos anos sem sacrifício da estabilidade econômica ou do crescimento", elogia Kevin Watkins, coordenador do relatório do IDH.

"Economistas freqüentemente dizem que não é possível distribuir renda com crescimento, mas o Brasil mostrou que isso pode acontecer."Mas Watkins faz cobranças. "Para que esse otimismo se confirme já se sabe que há requisitos relacionados ao crescimento econômico, redistribuição de terra e crédito e um sistema de impostos eficiente e igualitário", diz.

"Abençoados por Deus" - sete crianças brasileiras morrem por dia em conseqüência da falta de saneamento básico

Folha online27/11/2007 - 13h36
Lula comemora IDH, diz que país é abençoado por Deus e reclama do FMI


RENATA GIRALDI
da Folha Online, em Brasília

Entusiasmado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva comemorou nesta terça-feira o resultado apontado pelo relatório de Desenvolvimento Humano 2007-2008, divulgado hoje pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento).

De acordo com o relatório, o Brasil entrou pela primeira vez no grupo de países considerados de alto desenvolvimento humano.

"Todo governo que vier vai se sentir na obrigação de fazer o Brasil crescer um ponto no relatório. Todos [no atual governo] têm o compromisso de que o país vive um momento tão especial que nós poderemos nos dar ao luxo de dizer que 'somos abençoados por Deus'", disse Lula.

27/11/2007 - 10h00
Brasil entra no grupo de países de alto desenvolvimento humano, mas cai no ranking

LORENNA RODRIGUES
da Folha Online, em Brasília

O Brasil entrou pela primeira vez no grupo de países considerados de alto desenvolvimento humano. Entre os dados que contribuíram para o desempenho brasileiro está o aumento na expectativa de vida da população. Em 2004, ela era de 71,5 anos para 71,7 anos em 2005.

Apesar disso, caiu uma posição no ranking do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), passando de 69º para 70º no item qualidade de vida.

O Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) divulgou nesta terça-feira relatório que mostra que o IDH brasileiro alcançou 0,800 --em uma escala de 0 a 1--, o que é considerado alto. O índice divulgado hoje leva em consideração dados de 2005. No relatório do ano passado, de 2004, o IDH do Brasil foi de 0,792.

Os responsáveis pela pesquisa, porém, viram com cautela a melhoria no desempenho do país. Eles lembram que países como Argentina, México e Cuba estão à frente do Brasil no ranking há mais de 20 anos.
[...]

Ranking

Em 2005, a Albânia e a Arábia Saudita ultrapassaram o Brasil no ranking do IDH, ocupando agora a 68ª e a 61ª posição respectivamente. O Brasil, em compensação, ficou à frente da Dominica (71ª posição).

Países vizinhos do Brasil, porém, estão em melhor posição, como a Argentina (38ª), Chile (40ª) e Uruguai (46ª). A Islândia ocupa a primeira posição, com IDH de 0,968, seguida por Noruega, Austrália, Canadá e Irlanda. Em último lugar (177ª posição), com IDH de 0,336, está Serra Leoa.


Folha de São Paulo, quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Saneamento para todos só em 2122, diz FGV
Estimativa foi feita com base na taxa de crescimento do nível de coleta de esgoto no país, que atualmente está em 1,59% por ano

Fundação calculou que, em 2006, apenas 46,77% da população brasileira possuía rede de coleta de dejetos domésticos


DA SUCURSAL DO RIO
Com o atual nível de investimento em saneamento básico, só em 2122, daqui a 115 anos, a totalidade da população brasileira terá acesso à rede de coleta de esgoto, revela pesquisa da FGV (Fundação Getúlio Vargas) divulgada ontem. Mais da metade dos brasileiros não tem esgoto recolhido.

[...]

A FGV calculou que, em 2006, somente 46,77% da população brasileira era beneficiada por rede de recolhimento de dejetos domésticos. Há 14 anos, era de 36,02% o percentual dos brasileiros com acesso a rede de esgoto.

Coordenador da pesquisa, o economista Marcelo Néri estimou que, a se manter o nível de crescimento das redes coletoras em todo o país observado a partir de 1992, somente daqui a, no mínimo, 56 anos, metade da população terá acesso a esgoto encanado. A atual taxa de crescimento da rede de esgoto nacional é de 1,59% por ano.

Mortalidade infantil

Ainda de acordo com a pesquisa, a mortalidade infantil na faixa de um a seis anos de idade é maior nas regiões do país onde não há esgoto coletado. Ao analisar os dados da Pnad, Néri concluiu que a falta de saneamento básico tem responsabilidade direta na mortalidade registrada nessa faixa etária.

A incidência de morte entre um ano e seis anos decorre do contato direto das crianças com as aglomerações de esgoto
, afirma o pesquisador. Antes de completar o primeiro ano, o bebê ainda permanece mais tempo sob os cuidados de adultos.

Segundo Marcelo Néri, depois disso, os meninos, mais do que as meninas, passam a ficar mais soltos, pois começam a andar e a brincar fora de casa. Muitas vezes descalços e nus, circulam em meio à imundície acumulada em poças e valões. A maioria deles até bebe a água contaminada por coliformes fecais. Acabam vitimados por diarréias e outras doenças relacionadas à carência de saneamento básico.

Baixo investimento

Conforme divulgou o Instituto Trata Brasil, sete crianças brasileiras morrem por dia em conseqüência da falta de saneamento básico no local onde vivem. O instituto considera que o ideal seria investir em saneamento o equivalente a 0,63% do PIB (Produto Interno Bruto). Hoje, o investimento na área é de 0,22%.

Outras vítimas em potencial da ausência de rede coletora de esgoto são as gestantes, pois a falta de saneamento aumenta as chances de os filhos nascerem mortos. De acordo com a pesquisa, em áreas sem saneamento, aumenta em cerca de 30% a possibilidade de grávidas virem a parir natimortos.

A pesquisa mostra ainda que, apesar da gravidade da situação constatada nos índices oficiais do governo federal, a velocidade da expansão do saneamento básico é inferior à oferta de outros serviços públicos, como rede de distribuição de água, coleta de lixo e eletricidade.

O levantamento da FGV indica também que São Paulo é o Estado brasileiro com maior cobertura em saneamento básico -84,24% da população paulista é atendida por rede de esgoto. O Amapá convive com situação oposta. É o pior Estado brasileiro em termos de recolhimento de esgoto. Só 1,42% dos habitantes têm o benefício.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

O novelo de Antonioni

Monica Vitti_ La Notte

“O fio perigoso das coisas e outras histórias”, livro de anotações de idéias para possíveis filmes, de Michelangelo Antonioni. São 33 “núcleos narrativos”, como ele chama, transformados em peças literárias, editado na Itália no início dos anos 80 e publicado aqui em 1990, pela editora Nova Fronteira.

Leio e vou destecendo nós, que são os nossos, um homem e uma mulher, desencontros.
“Na planície do Pó os homens amavam as mulheres com ironia”, diz em um desses fragmentos, intitulado “Crônica de um Amor que nunca existiu”. O Pó aí é o nome do rio no Norte da Itália... mas o importante mesmo é saber o que significa “amar uma mulher com ironia”, como tantos personagens masculinos nos filmes do cineasta morto aos 95 neste negro ano de 2007. ― Penso em Marcelo Mastroianni em “A Noite”, um filme com uma manhã e uma noite e essa ironia talvez seja na verdade desespero, carregado de angústia, quando amanhece.

“Com ironia” significa não se entregar totalmente, manter-se numa situação de proximidade distante, irônica, o contrário ou quase da alegria, que é entrega, total e permanente, sem reservas, talvez um estado impossível só alcançado de tempos em tempos e do qual se cai constantemente. A ironia seja por isso talvez uma defesa para tais quedas. Não entregar-se é manter-se ereto, com todas as conotações eróticas da frase.

A maioria dos contos ou pedaços de filmes imaginários ou não, alguns realizados anos depois, é sobre encontros e desencontros (tomando emprestado como foi traduzido no Brasil o título recente de um filme de Sofia Coppola, que bebe nessa fonte). “As geleiras da Antártida caminham três milímetros por ano em nossa direção. Calcular quando chegarão. Prever, num filme, o que acontecerá.” Num fragmento intitulado Antártida, Antonioni espera a geleira, que afinal chegou para ele, essa que pode fazer esperar mas não decepciona nunca.

Em “Este corpo de lama” temos primeiro uma breve exposição, resultado de pesquisa sobre a vida das mulheres num convento de clausura, tema para o qual o cineasta foi levado após a leitura de um episódio narrado por uma monja americana em seu diário e que daria segundo ele um belo início de filme. Em seguida tem-se uma narrativa também curta baseada nesse episódio.

Um homem encontra uma mulher andando sozinha à noite, muito grave, e resolve segui-la e então abordá-la. Após uma breve troca de palavras, ela o leva quase sem querer para uma igreja onde os dois se separam, por vontade dela, evitando-o por meio de um gesto e indo sentar-se à distância, completamente absorta numa espécie de transe místico. Ela lhe parece “um impermeável vazio, o corpo jogado fora. Este corpo de lama, diz Santa Teresa”.

Ao fim da missa, ele a perde de vista, mas resolve procurá-la na rua onde a havia visto sair de uma porta de casa para a noite antes. Encontra-a e no meio de hesitações trava uma batalha impossível de ser ganha que corresponde à luta travada entre uma fogueira teimando em arder e os primeiros flocos de neve: “Tem a impressão de nunca ter experimentado um desejo tão intenso de possuir uma mulher. Mas é um desejo diferente, que tem algo de meigo e respeitoso. É ridículo, pensa. E no entanto hesita na voz e não pode fazer nada contra isso, enquanto diz:
― Posso te ver amanhã?

Ela continua sorrindo nos poucos segundos de silêncio que precedem sua resposta. E sua voz não deixa transparecer nenhuma emoção quando fala.

― Amanhã vou entrar num convento de clausura.”

“Que início fantástico de filme!”, exclama Antonioni. Mas é um filme que para nós, ― plagiando-lhe ―, feliz ou infelizmente, acaba aqui.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

CABELOS MOLHADOS


Gabriel não estava pensando em nada especial quando olhou para o chão naquela noite em Vasta Colina. Era uma noite agradável de inverno. Ele estava de passagem pela cidade onde ele nascera. Fazia anos e anos que não pisava lá. Agora estava alojado na coxia de um teatro reservado para um congresso de teoria literária. Ele não fazia a mínima idéia de como ele havia ido parar ali, junto com aquela trupe de amigos, todos tão sem grana e sem muita esperança quanto ele.

Fora atraído pela possibilidade de rever a cidade e nada mais. E ela não o decepcionara. Estava linda. A noite abriu uma boca cheia de dentes pronta para engolir tudo em volta. O ar batendo contra o corpo causava uma sensação tépida. Olhou para cima. Cuspiu o cigarro que não fumava por entre os dentes (“o modo infame de beber” e um dos dois únicos pecados mortais existentes, segundo os vaabitas) e pôs-se em movimento.

A cidade o chamava para dentro. Andou a esmo à procura de um bar ou qualquer outro sinal de movimento. Um perfeito estrangeiro, nada o reconhecia. Sentia entretanto uma sensação estranha de pertencimento, que nunca mais pôde sentir novamente em nenhum outro lugar. Para onde ia? Essa é a única forma de liberdade. “Turismo é pecado, caminhar é virtude”, disse Herzog, o “duque”, certa vez. As placas o guiavam para lugar nenhum, pequenos hotéis ainda acesos mais adiante.

"Fora atraído pela necessidade de rever a cidade e nada mais".
Foi quando a viu sair pela porta de vidro de um desses hotéis. Em menos de um segundo, os olhos de Gabriel piscaram como quando ele via alguma coisa realmente interessante. Em menos de um segundo, distinguiu. O tornozelo primeiro. A saia curta e preta em cima de um salto alto. Passos cadenciados, vinte anos no máximo, segurando uns livros contra o peito, e os cabelos curtos molhados.

Não havia outra decisão senão não perdê-la de vista.

Passou a segui-la. Sim, era outra forma de se perder, ainda mais, em Vasta Colina, dessa vez sendo guiado. Era fácil e doloroso por causa da adrenalina. E ele não era de resistir à tentação, pelo contrário. Não havia cera nenhuma em seus ouvidos, de modo que os círculos da noite iam se fechando em volta dele enquanto percorria as ruas, enquanto a garota à sua frente ia fazendo curvas e mais curvas. Finalmente, tomou coragem para aproximar-se o bastante.

- Desculpe, por favor você poderia me informar...

Viu seu rosto. Combinava perfeitamente bem com o resto.

- É que eu sou de fora, estou no congresso...

- Você sabe onde fica...

Olhou para ele, calma e decidida, e respondeu, tranquilamente,  como uma legítima vastacolinense, algo que ele não sentiu necessidade nenhuma em anotar. Agora que a havia alcançado, diante dela, em poucos minutos, resolveu que não precisava mais disfarçar.

- Olha, falou ele, para ser sincero, eu não quero nenhuma informação. Eu vi você saindo do hotel e resolvi seguir você - apostou tudo de uma vez no número sete, preto.

- É mesmo? Que bom - disse ela, para a total surpresa dele, que esperava qualquer outra coisa.


"Não havia outra decisão senão não perdê-la de vista".

Perguntou seu nome e ela respondeu.

- Mas não vou poder falar com você agora, disse.

Pararam em frente ao portão da casa dela.

- É que estou esperando meu namorado.

Nesse exato momento, passou um cara num chevette vermelho e estacionou alguns metros adiante.

- Olha ele aí... Tenho que ir. Passe aqui depois amanhã e a gente conversa, sorriu.

Obedecendo, e meio que maravilhado, disfarçou e apressou o passo. Continuou andando, não sem antes registrar local e número.

Ainda meio sem acreditar e sedento pela caminhada, procurou por um bar. Não muito mais adiante encontrou. Havia poucas cadeiras no balcão e uma única vazia ao lado de um cidadão de meia-idade, careca, gordo e àquela altura completamente bêbado.

Sem muito o que fazer sentou e ordenou ao garçom uma cerveja. Não demorou muito pro sujeitinho ao seu lado abrir o bico e puxar conversa.

- Amigo, adivinha só onde eu estava agora há pouco?

- ...

Não esperou responder:

- Tava num hotel com uma gata. 19 anos, um corpinho de deusa, cabelinho curto... e viciada em maconha. Sou o traficante dela, sabe? Faz qualquer coisa em troca. Fizemos de tudo...

E descreveu com detalhes o “tudo”, que, devo dizer, não era pouco.

- E o  o corno do namorado dela não sabe de nada, soltou uma gargalhada, que ecoou de forma sinistra pelo bar.

Não havia dúvida, era a menina com quem ele havia acabado de conversar. Não quis ficar mais tempo ouvindo aquilo, terminou sua cerveja e se despediu da criatura ao seu lado, deixando-o se vangloriar para outro alguém. No dia seguinte, tinha que ir embora. Passou pela manhã no endereço que havia anotado. Ainda cheio de coragem da noite anterior, tocou a campainha. Atendeu a mãe dela que respondeu que ela não estava. Tinha ido estudar.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

NOTÍCIAS DO BRASIL REAL

Matéria veiculada na Folha de São Paulo, terça-feira, 25 de setembro de 2007

CLÓVIS ROSSI
As estatísticas e a vida real

SÃO PAULO - Janio de Freitas e Vinicius Torres Freire já haviam alertado sobre o excesso de foguetório em torno da redução da miséria. Excessivo porque o patamar a partir do qual a pessoa deixa de ser "miserável" é baixo demais. Aí, esse excelente repórter que é Sergio Torres foi visitar uma família das que deixaram de ser "miseráveis", pelo menos na estatística.

Eis sua descrição:

"As crianças não têm o que calçar, vestem-se todos os dias com as mesmas roupas, comem carne, quando muito, uma vez por semana, dormem no chão sem piso de um casebre sem banheiro e brincam em um riacho de esgoto. Mesmo assim, não são miseráveis, segundo metodologia da FGV".

É a história da família de Nilcéia de Lurdes da Silva, 35 anos, cinco filhos, um neto, e do companheiro Aílton de Oliveira, 34, que vivem "em barraco pendurado em uma encosta no bairro Quilombo, próximo ao centro de Paracambi, município que, a 75 km do Rio, separa a Baixada Fluminense da região centro-sul do Estado".

Poderia ser a história de milhões de outras Nilcéias e Aíltons que, na estatística, deixaram de ser miseráveis, mas só na estatística.

Na vida real, prossegue Sergio Torres, "continuam na situação miserável que as acompanha desde a nascença. Na última sexta, não comeram nada de manhã. O barraco da família não tem água. A luz é clandestina, puxada do poste da rua. O esgoto, uma vala negra que corre no quintal. As crianças só andam descalças. Pisam nos dejetos sem dar importância. É o chão delas, afinal. Para trabalhar, o casal deixa as crianças aos cuidados da filha de 11 anos".

Nada contra festejar estatísticas agradáveis. Desde que a festa não seja apenas um pretexto para esquecer que, por trás delas, ou apesar delas, o Brasil continua um país primitivo. Obscenamente primitivo.

terça-feira, 21 de agosto de 2007

“Old Boys”, velhos problemas




O argumento defendido por Olavo de Carvalho em um artigo republicado na Revista Bula, sobre o maior massacre já cometido em uma universidade norte-americana, é tão absurdo quanto a tese de “mártir do anticonsumismo” aplicada ao autor do crime e ridicularizada por ele no mesmo texto. Segundo Olavo, o morticínio é resultado de uma lei que proíbe o porte de armas dentro de universidades nos Estados Unidos.

“Se apontasse uma arma para um caixa do WalMart, levaria chumbo de dez fregueses ao mesmo tempo”, defende ele. Esquece, entre várias inconsistências, que antes de tudo a lei vale para todos, inclusive para os alunos esquisitões e não apenas para “professores e funcionários”, os tais “patos sentados” como ele chama no texto. A alternativa seria transformar a sala de aula numa trincheira de guerra com professores treinados pelo FBI e prontos a reagir ao primeiro sinal de “ameaça” à segurança.

Por falar em argumentos absurdos, também estapafúrdias e apressadas foram as comparações suscitadas por um post em um dos blogs do jornal “The New York Times” na Internet, sugerindo semelhanças entre cenas do filme “Old Boy” e as poses do garoto sul-coreano, que matou 32 pessoas da Universidade Técnica de Virgínia. Nas imagens ele aparece segurando faca, martelo e armas de fogo - entre elas uma pistola Glock de 9 mm comprada 36 dias antes numa loja em que o rapaz de 23 anos só precisou mostrar seu green card de imigrante legal, além de passar no “exame” do vendedor. Este relatou: “Ele era um garoto universitário simpático e bem vestido. Não vendemos uma arma se temos qualquer indicação de que a compra é suspeita”. Um pacote com 27 vídeos, além de fotografias e textos escritos, foi enviado pelo estudante no intervalo entre um crime outro à rede de televisão NBC.

Por que não comparar também essas imagens com Jack Nicholson segurando um machado em “O iluminado”? Ou Robert De Niro apontando uma arma para a cabeça em “Taxi Driver”? “Vocês tiveram 100 bilhões de chances de evitar este dia, mas decidiram derramar o meu sangue. Vocês me encurralaram e só me deixaram uma opção. A decisão foi de vocês. Agora vocês têm sangue em suas mãos e nunca vão conseguir limpá-las”, diz o assassino em um dos vídeos enviados, cujo texto poderia ter sido extraído de Stalone Cobra - “Vocês são a doença, eu sou a cura” - ou Dirty Harry - “Make my day”.

Em um outro vídeo, o garoto professa uma confusa versão do cristianismo redentor e se compara a Jesus Cristo: “Vocês vandalizaram meu coração, rasgaram minha alma e queimaram minha consciência. Vocês achavam que era um garoto patético que vocês estavam extinguindo. Graças a vocês, eu morri. Como Jesus Cristo, para inspirar gerações de pessoas fracas e indefesas.” Aqui o discurso poderia ter sido inspirado em um trecho da Bíblia - “Ah! filha de Babilônia, que vais ser assolada; feliz aquele que te retribuir consoante nos fizeste a nós. Feliz aquele que pegar teus pequeninos e esmagá-los contra a pedra” (Salmo 137) e “Suas crianças também deverão ser feitas em pedaços diante de seus olhos; suas casas serão destruídas, e suas esposas violadas” (Isaías 13:16) - ou até mesmo no messianismo água-com-açucar de “Matrix”.

O que dizer então de milhares de outras imagens e mensagens de violência de zilhões de filmes e programas de televisão, sem esquecer, é claro, de livros e HQs e letras de músicas, sem falar nos video-games? “Old Boy”, o filme do diretor sul-coreano Chan-wook Park, é apenas mais uma obra nessa lista. Sem dúvida perturbador e memorável em vários aspectos, o filme vale a pena pelas qualidades cinematográficas e visuais que lhe renderam o Grande Prêmio do Júri de Cannes. Baseado em um mangá japonês, conta a história de um homem que passa 15 anos preso em um quarto sem saber o motivo. Quando o deixam escapar, tem início uma série ultraviolenta de atos contra aqueles identificados como culpados. Alguns críticos, chegaram mesmo a identificar no roteiro uma “crítica aos valores da sociedade oriental”.

O que influenciou realmente a cabeça do garoto dificilmente saberemos. É sabido que recentemente havia mostrado sinais de perturbação, incluindo colocar fogo num quarto do dormitório e de ter sido denunciado à polícia por duas colegas que o acusaram de perseguição. Segundo disseram outros estudantes que o conheceram, ele era ridicularizado durante o ensino médio por causa do excesso de timidez e “jeito esquisito de falar”. O personagem da tragédia absurda que decidiu protagonizar para o mundo ver (vê-lo) foi sem dúvida influenciado pela cultura da violência a que ninguém pode mais fingir que está imune. Mas ninguém faz o que ele fez apenas para aparecer ou por pura vontade de imitar, a não ser que tenha um distúrbio mental muito sério. Junte a isso a facilidade de se obter e usar armas e você terá todos os ingredientes explosivos juntos.

Olavo de Carvalho acha que com professores armados em sala de aula, o problema todo estaria resolvido. No Brasil, da bala perdida e do Estado distante, país líder mundial em jovens entre 15 a 24 anos mortos por arma de fogo, ficaria ainda mais difícil de apontar quem seriam os verdadeiros culpados e onde estaria a solução.

domingo, 12 de agosto de 2007

O ENGANO

É verdade que cultuo a incerteza pelo pouco que vale.

Oh, canções dos sóis distantes!

Hoje, compus uma canção de marinheiro, dessas bem tolas, para serem cantadas por um grupo de amigos, caneca à mão, em alegres rodas:

DESAFIO AO MAR



O mar é um marujo bêbado, este fim de tarde.
E eu não sei se sou um espectador ou sou ele
próprio se arrebentando no casco
de terra sobre o qual estamos,
em nossa embarcação de
pedra, aço e madeira.
(Todos estamos bêbados de cerveja e vinho e bebemos
sentados em nossas cadeiras, dormindo ou apenas admirando).
A verdade é que se passaram assim
mais de seis horas.
Ninguém sai daqui antes do sol
ir-se embora...

Não haverá vencedores nessa peleja...
Hoje, o banco de areia resistiu,
Mas, alto lá,
voltaremos amanhã, mar,
– e veremos!
*
*
*
Todos nós seremos grandes coisas assim que quisermos. Mas, ai de nós, não será ainda hoje.

Grandes corações, homens, artistas, escritores, poetas, atores. Amigos, maridos e esposas. Pais e filhos. Irmãos-na-alma.

Por enquanto, a única certeza acabou de se pôr no horizonte. E como eu estava longe, e chovia, e entre quatro paredes de concreto... Eu não vi nada.

Um dia nos tornaremos aquilo que somos. Mas, ai de nós, não hoje.

Volto o olhar mais uma vez sobre minha pequena criação tola. Que quis eu dizer, realmente, com aquilo?

Qual o desafio?

Os marujos só podem vencer o mar, na sua batalha contra o monte conquistado, arrebentando eles próprios o coração, transbordando de tanto beber nos seus copos de cerveja.

Falsa vitória!

E há pouco, julgava-os audazes e orgulhosos!


“O engano” ou como vi a mim mesmo num reflexo noturno.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

REALIDADE, DIAMANTES E DESERTOS VERMELHOS



O Deserto Vermelho é o nome do filme, de 1964, do diretor italiano Michelangelo Antonioni (1912-2007). É o primeiro longa-metragem em cores de Antonioni - o que terá toda a importância, a partir, desde já, como veremos, do título - e com a fotografia de Carlo Di Palma. Lançado em DVD, em versão restaurada, o filme se passa na poluída Ravenna, cidade italiana, e tem a atriz Monica Vitti no papel principal. No que segue, não tentarei resenhá-lo, mas abordá-lo de alguns pontos de vista que, se não forem os mais relevantes, foram os que me suscitou a obra quando tive a oportunidade de assisti-la recentemente.

Comecemos pelo final, não o do filme, mas dos extras do DVD recheados de comentários irônicos e divertidamente mundanos dos cinejornais da época que faziam a cobertura das entregas de prêmios às celebridades do cinema italiano. Em tais comentários, Antonioni é sempre retratado de forma caricatural como o “intelectual sombrio”. Monica Vitti, por sua vez, que junto com ele formava o par “menos alegre” do cinema, na avaliação do cinejornal, era premiada pelas suas atuações “cada vez mais mudas”. Antonioni, flagrado na pré-estréia de seu outro filme, “Eclipse”, “não se rendia a nenhuma corrente, nem mesmo à elétrica”.

Numa espécie de contraponto “sério” a essas vinhetas cômicas, o próprio Antonioni comparece nos extras, sendo entrevistado por um repórter de um programa francês. Nessa entrevista, aliás, mostra-se muito pouco “ecológico”, para alguém cuja transformação do mundo industrial foi tido como um choque. Ficamos sabendo, pelo próprio diretor, que Deserto Vermelho “originou-se” desse choque, em uma visita do diretor a Ravenna, cidade próxima ao lugar de nascimento de Antonioni, Ferrara.

Somos informados também que durante as filmagens ele mandou pintar casas, árvores e até um bosque inteiro, cujo verde não lhe parecia uma cor “justa” para a impressão que queria causar no espectador. Por isso foi pintado de branco, com ajuda de uma máquina de borrifar tinta, especialmente para cena inicial do filme, uma greve na porta de uma usina. O cenário construído entretanto sequer chegou a ser utilizado. Por razões técnicas, anteriores à era Spielberg, devido ao sol, o bosque parecia preto, quando enquadrado contra a luz.

Se formos analisar melhor o motivo dessas intervenções visuais “corretoras”, percebemos que, no filme de Antonioni, a poluição das indústrias, com suas cores, precisa ser possuidora de uma beleza ao mesmo tempo assustadora e pungente, atrativa e horrenda, que alguns filósofos como Kant e Schiller chamariam de sublime.



É possível encontrar esse tipo de beleza - a câmera nos mostra, e isso é sentido por Giuliana, interpretada por Monica Vitti, a ponto de levá-la ao desespero: nas poças esverdeadas do cais; na lama azul-petróleo do rio estagnado; nas marcas multicoloridas de ferrugem e óleo do casco das embarcações; na neblina artificial de uma nuvem de amônia ou resultante da evaporação da água utilizada na usina e até mesmo na fumaça amarela e venenosa da chaminé.
Esse é um filme em que o ambiente desempenha um papel principal, revela também o diretor italiano na entrevista. Como isso se coadunaria então, com aquele que os críticos dizem ser o grande tema de Antonioni, “a incomunicabilidade e a solidão do homem contemporâneo”?

Apesar de casada com o diretor da usina, Giuliana está terrivelmente só, a realidade a atinge de modo quase insuportável. A única saída para seu tormento seria se ela pudesse também “pacificar a violência” que sente, sublimando-a esteticamente, em suma, tornando-se artista, a exemplo do próprio Antonioni. Mas o que fazer quando não se é dotado de talento até mesmo para essa não-solução provisória, chamada arte?




No final do conto mais famoso de F. Scott Fitszgerald, encontramos a seguinte frase: “No mundo inteiro, há apenas diamantes, diamantes, e talvez a pobre dádiva da desilusão. Bem, eu tenho esta última, e farei o de sempre com ela: nada.”
Os personagens de Antonioni caracterizam-se quase sempre por uma espécie de inação ao final de suas vidas filmadas (final da película). Chega-se a um ponto em que não há mais nada para fazer ou dizer, a não ser aceitar a “pobre dádiva da desilusão”. Seus personagens nunca são triunfantes, mas resignados. Alguns se deixam mesmo abater pela tragédia, como no caso do final de O Grito, ou em Profissão: repórter.

“Não sou filósofo, nem sociólogo”, afirma Antonioni na entrevista. Tudo aquilo que quis dizer, segundo ele, foi dito no próprio processo de fazer o filme. A avaliação sobre o significado viria depois ou talvez não viesse nunca. A inconclusão de suas obras é a própria inconclusão da vida - enquanto houver vida, ela não estará concluída.

Não sabemos o que acontece com Giuliana, o filme não nos mostra, não há uma “resolução definitiva” para o seu drama. Talvez ela permaneça apenas como um símbolo da inadequação, ao mesmo tempo extremamente receptiva, esteticamente, mas cuja resposta, em forma de ação, seja passiva. Testemunha silenciosa da passagem de um mundo naturalmente belo (que seria talvez apenas ideal) para uma realidade terrível, mas ainda assim não totalmente desprovida de encantos, com a qual é preciso de alguma forma conviver.

sexta-feira, 20 de julho de 2007

DUAS LIÇÕES DE POESIA: UM FILÓSOFO FRANCÊS E UM POETA RUSSO


“O poema não é nem uma descrição, nem uma expressão. Tampouco é uma pintura comovida da extensão do mundo. O poema é uma operação [...]. A regra é simples: envolver-se com o poema, não para saber do que fala, mas para pensar no que nele acontece. [...] O sentido se adquire com o mover do poema, em sua disposição [...]; o que o produz é uma Idéia.”

Alain Badiou escreve essas palavras, no seu “Pequeno manual de inestética”, a respeito de Mallarmé. Mas se trata também de tentar responder afinal o que seria de fato qualquer poema. (E como se deveria lê-lo). Poderia por exemplo ser aplicado integralmente a Guenádi Aigui, poeta de língua russa, nascido em 1934 numa aldeia Tchuvasse (um povo descendente dos hunos, estabelecido à margem do Rio Volga), e falecido recentemente.

Tenho conhecimento de apenas duas traduções para o português de Aigui. A primeira foi feita por Boris Schnaiderman, em colaboração com Haroldo de Campos, incluída numa antologia chamada Poesia russa moderna, da editora Perspectiva. A segunda saiu na revista eletrônica Confraria do Vento nº 4, em tradução, inédita em livro, de George Yurievitch Ribeiro. É deste a versão a seguir, em três partes, a qual darei uma breve interpretação (o que significa simplesmente experienciar, i.e., “entrar” num poema, ser POR ELE pensado):
Silêncio


1
no invisível crepúsculo
de saudade pulverizada
conheço o inútil como os pobres conhecem a última roupa
e trastes antigos
e sei que essa inutilidade
é justamente a de que o país necessita de mim
segura como um acordo sigiloso:
silêncio como vida
e por toda minha vida


A poesia não é pintura. Seria melhor dizer, não é uma representação exata da realidade, uma vez que o pintor nunca pinta as coisas como ele realmente as vê. O poema principia por evocar o invisível, começa por anunciar o silêncio de que trata, ou antes em que ocorre, e que é também um poema: pintura sem cor ou imagem. Inútil e conhecido, como a última roupa do pobre, a qual este se agarra (e que o protege da nudez absoluta), seguro como um acordo sigiloso (mudo), por toda a vida.


2
No entanto, calar – é tributo, e para si – é silêncio.


No segundo movimento, que não é de todo contrário, apenas mais ambíguo do que o primeiro, o poema se apresenta como riqueza, a qual se concede para si próprio (em contraponto ao que se oferece a um país, na primeira estrofe). Há uma pausa e a própria brevidade reforça o caráter necessário desse silêncio, em que “se faz” (se dá, se autoconcede) o poema.


3
acostumar-se a tal silêncio
que é como coração inaudível em ato
como aquilo que é vida
feito certo espaço dela
e no aquilo eu sou – como Poesia é
e eu sei
que meu trabalho é difícil e é por si só
como no cemitério da cidade
é a insônia do zelador.


Finalmente o poema se aproxima do bater inaudível (a não ser no silêncio) do coração, em funcionamento. Algo vital, que ocupa um pequeno espaço, difícil, para o qual é preciso acostumar-se, que tem uma qualidade própria, e permanece vivo e desperto, mesmo quando todas as outras coisas dormem.

segunda-feira, 2 de julho de 2007

ESTRELA SOLITÁRIA

Filme recente de Wim Wenders, com roteiro e atuação impecável do ótimo Sam Shepard (Paris, Texas), nos leva a uma viagem pela paisagem mítica dos confins do oeste americano, que parou no tempo, como uma fotografia de Walker Evans ou um quadro de Edward Hopper.

Um ator de westerns (gênero, a rigor, há muito extinto em Hollywood), em franca decadência, resolve largar tudo. No meio de uma filmagem, no deserto, ele abandona o set e volta à sua cidade Natal, Elko, no Estado de Nevada.

Encontra abrigo (provisório) em casa da mãe, que não o via havia mais de 30 anos . Vaga pelos bares e cassinos, num cenário de sonho e ilusão, como um personagem sem cara própria. Ninguém o reconhece como um filho da terra, nem mesmo, num primeiro momento, a própria mãe, que acompanhou a vida dele durante anos a fio, por meio de recortes de jornais e revistas sensacionalistas.

Wenders faz, mais uma vez, como é do seu estilo, um road-movie sobre a busca da identidade, numa sociedade em que isso já se tornou quase impossível. A paternidade entra na história como mais um elemento nessa jornada, em que o reconhecimento de si próprio no outro é uma constatação dolorosa e não completamente resolvida.

A certa altura o personagem principal afirma que está “travelling light”, viajando de forma descomprometida, sem carregar muita bagagem. A frase também serve de metáfora para o filme, que consegue ser ao mesmo tempo leve e divertido, sem deixar por isso de oferecer material para a reflexão.

PATERNIDADE

“A paternidade, no sentido de gerar conscientemente”– diz Stephen Dedalus, na cena da biblioteca em Ulisses, de James Joyce,– “é desconhecida do homem”. “A paternidade talvez seja uma ficção legal. Quem é o pai de um filho que um filho qualquer deva amá-lo ou ele a um filho qualquer?” As implicações de tal teoria, segundo Harold Bloom, são que “a Igreja e todo o cristianismo se dissolvem se se acreditar nisso”.

A hipótese “perigosa” de Stephen poderia ser pensada como tendo sua origem naquele tipo de herói moderno, tal qual definiu Baudelaire, já no século XIX, na persona do artista que “nada revela senão ele próprio. Não promete aos séculos vindouros senão suas próprias obras. Só cauciona a si mesmo. Morre sem filhos. Foi seu rei, seu sacerdote, seu Deus”.

O preço pago por isso, sabemos, geralmente é alto; costuma vir na forma da melancolia, da dor, o spleen, que é também uma característica marcante do romance de Joyce –ele mesmo um “pai que foi seu próprio pai”, e como tal, sem precursor ou sucessor, o que, ainda segundo Harold Bloom, “é visivelmente a visão de Joyce de si próprio como autor”.

CAUBÓI

O tema da paternidade entra no enredo do longa-metragem de Wim Wenders, Estrela Solitária, como um complicador a mais na jornada do personagem principal, em busca da identidade perdida.

O título original em inglês, Don’t come knocking, um aviso de “Não me perturbem”, é uma alusão às dificuldades que enfrentará Spence, personagem interpretado por Sam Sheppard, ao voltar para casa, passados 30 anos. Ele descobre que tem um filho, a essa altura já na idade adulta, o qual mora com a mãe (Jessica Lange), na cidadezinha de Butte, Estado de Montana, EUA.

Assim como o artista moderno, descrito por Baudelaire, o caubói americano, visto pela ótica da ficção cinematográfica no gênero “faroeste”, consagrado no século passado, é também o retrato de um ser solitário, que busca se realizar de maneira autônoma, e parte sem deixar herdeiros “conscientes”. (É curioso constatar como esse mito persiste até mesmo na versão ressignificada, homossexual, em Brokeback Mountain.)

terça-feira, 26 de junho de 2007

GIDE

“Nós vivemos para manifestar. As regras da moral e da estética são as mesmas: toda obra que não manifesta é inútil, e por isso mesmo, má. Todo homem que não manifesta é inútil e mau” (André Gide, Tratado do Narciso, Folio, p. 21).

Quando perguntado qual frase resumiria seu livro de estréia, Gide, que teve toda a obra incluída no índex de livros proibidos pela Igreja Católica, em 1952, respondeu:
“Nous devons tous représenter” – “Devemos todos representar ”.

terça-feira, 29 de maio de 2007

Sobre estética e cosméticos: anotações para uma possível crítica do “boudoir”

“Estética e cosméticos são para o boudoir. Busco a verdade. Pura verdade para um homem puro.” James Joyce, em Ulisses.


A partir do livro “A Ideologia da Estética” de Terry Eagleton




Um artista em São Paulo joga centenas de pérolas (não valiosas) no Rio Tietê, como forma de protestar contra a poluição do rio. O gesto, que poucas pessoas presenciam, gera uma reportagem nos principais jornais, na qual somos informados que 32 mil litros de esgoto não tratado são lançados por segundo (!) no rio. Não há uma “obra de arte” específica, um objeto, só um gesto, que é uma tentativa de introduzir elementos esteticamente expressivos numa atitude política. (Assim como seria o terrorismo para Habermas).

Ao mesmo tempo é uma forma de capitalizar a atenção para o autor da iniciativa. Quem sabe ele não será chamado pelo Estado no futuro para fazer uma “intervenção” em uma área pública, ou seu nome não seja cogitado para a próxima Bienal que discutirá, pela ducentésima vez, a relação entre a arte e cidade? A “transgressão” está mais do que institucionalizada. Foi preciso primeiramente o consentimento do poder governante para a realização do ato, cujos efeitos na resolução do problema além disso são bastante duvidosos.

Do Romantismo ao Modernismo, afirma Terry Eagleton, em “A Ideologia da Estética”, a arte busca tornar vantajosa para si a autonomia que ganhou com sua condição de mercadoria - livre das funções sociais tradicionais no interior da Igreja, do tribunal ou do Estado, ganhando a liberdade autônoma da mercadoria. Ela passa a existir para qualquer um que a possa apreciar e que tenha dinheiro para comprá-la. Numa tentativa de escapar a essa nova condição, a vanguarda revolucionária proclama que o problema da arte é a própria arte: “Abaixo com as bibliotecas e os museus”; “não há obras de arte, só gestos, happenings, manifestações, provocações”, declara. Comporta-se assim como “crianças rebeldes tentando chocar seus pouco escandalizáveis progenitores”, segundo Eagleton.

No momento atual, apesar de a produção artística representar um papel cada vez menos significativo na ordem social - após esta ter marginalizado o prazer, reificado a razão e esvaziado inteiramente a moral - adverte Eagleton, a estética propõe colocar novamente as três regiões do estético, ético e cognitivo em contato umas com as outras. Ela fará isso articulando os três discursos, engolindo os outros dois. Tudo agora deve se tornar “estético” - que não se confunde mais com o belo, mas que diz respeito a tudo aquilo que apela à intuição, ao sensível, ao corpo. Até o feio, o repugnante, tem sua legião de admiradores, chegando a ponto de existirem espetáculos em que o artista se automutila diante da platéia, ou as pinturas feitas com o próprio sangue (se for HIV+, “melhor” ainda), animais conservados em formol e expostos cortados ao meio ou ainda a exibição de cadáveres em museus.

A estética se assenhoreia de seus territórios vizinhos, modelando-os a partir de si, com muito pouca atenção por sua especificidade discursiva. No seu caráter autotélico, de fim em si mesmo, guarda ainda uma perturbadora afinidade com a idéia do mal. “O mal não é só uma questão de imoralidade, mas um prazer ativo e sádico com a miséria humana e a destruição; e que, aparentemente entrega-se à destrutividade como um fim em si mesmo”, afirma Eagleton.

Não há portanto porque assumirmos como positiva essa predominância da estética sobre os outros discursos. Assim como, por um outro prisma, não deve haver também nenhuma virtude “automática” numa arte que abrace os temas da experiência comum. No capitalismo de consumo, com a cultura totalmente estetizada, é de se perguntar até onde vai a função crítica de manifestações como essa do artista que protestava contra a poluição do Rio Tietê.

segunda-feira, 21 de maio de 2007

NOTAS VAGABUNDAS




Obrigado linhas brancas. Obrigado por me salvarem mais uma vez esta noite. Eu que sempre desprezei o conceito de “arte como terapia”, me valho dele aqui hoje. Bem, eu não devo estar fazendo “arte” nenhuma agora mesmo, então foda-se. Eu apenas tento manter o movimento da caneta em minha mão. Tento me manter vivo.

Eu poderia estar matando alguém esta noite ou sendo morto - movimentos diferentes das mãos (me matar, esqueçam, está completamente fora dos meus planos)...

Parou e olhou para a janela, a noite como sempre convidativa e atraente, com suas luzes piscando das janelas dos edifícios vizinhos no ar úmido. A noite parecendo uma cadela no cio. Na TV de outros apartamentos, o papa desfilava em meio à multidão. Alemães, “Deutschen” - os “pagãos”, e agora um santo brasileiro. Aguardente e cristianismo nas reservas indígenas. Narcóticos europeus.

Especialmente ele agradecia pelo silêncio dessas linhas brancas, as quais ia ferindo com a ponta aguda da caneta. Vocês sabem conduzir uma conversa, vocês sabem me mostrar quando estou sendo ridículo ou totalmente enganado. Vocês sabem que eu sou mais um prisioneiro de vocês. Vocês não pedem nada em troca. Vocês fingem que me compreendem ou será apenas a indiferença que me atrai? Porque vocês aceitam tudo e não reclamam nunca. Toda conversa fiada ou mole, toda estupidez humana ou divina....

Pensou na frase de Nietzsche e na sua crítica dos santos cristãos, “os quais suportavam a vida somente por pensarem que, vendo sua virtude, cada um seria tomado de desprezo por si mesmo”. Foi um pensamento absurdo que lhe veio à mente,como qualquer outro.

O importante é tê-los por perto. Nunca compreendeu que se escrevesse em guardanapos, caixas de sapatos e quejandos, especialmente esses últimos. Cadernos com marcas de vinho, batom vermelho, manchas de café e manchas de tinta de uma imitação barata de uma marca igualmente barata de caneta, e uma alma vagabunda demais para ser vendida - admitiu. E seja lá como for, ele não a venderia nunca. Gostava de tê-la só para si, inacessível. Enfurnada num corpo que não a continha nem pela metade, nem quando deitado ao comprido. Daí que precisasse ir para fora, para além dele, e por isso esses cadernos inúteis, muito úteis para ele.

Tomou um gole do vinho cujo rótulo informava que cangurus de verdade pulavam no meio dos vinhedos da Austrália. Pensou na mãe canguru (cuja palavra em língua australiana significa “não sei”) carregando garrafas de vinho na bolsa marsupial, outro pensamento absurdo.

Meus sentimentos? Costumava dizer. Meus pêsames, eles morrerão comigo, são incomunicáveis.

Eu não sou como o vinho, você não pode se embebedar comigo. Eu não sou como o vinho, não tenho nem um pingo dessa nobreza. Eu não sou como o vinho, no máximo, eu posso deixar marcas na sua língua e dentes. No máximo, eu posso ir embora enquanto você dorme ou morrer jovem... estragar no dia seguinte.

Como essas notas vagabundas.

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Cuspidelas para o alto: pseudo-escrito



“Talvez eu nem sequer seja escritor”, escreve, “mas apenas alguém que rabisca de vez em quando garranchos ininteligíveis em seu caderno”.

Pegou um trecho qualquer e leu: “Quando o vento veio irritar, enrugando, a superfície da água...”. O texto não tinha início nem fim.

Mais adiante, achou essas anotações encabeçadas por um título curioso, e, é claro, não plenamente desenvolvido e também deixado incompleto: “Da culinária dos nômades: lições de sobrevivência”. Cito um trecho:

“Comida do nordestino. Foi feita para viajar. Um pedaço de rapadura e a carne salgada e seca ao sol duram meses. Nisso temos em comum com os povos nômades (...) O sertão não é deserto. Talvez nem mesmo o deserto seja tão deserto assim para quem vive nele. Logo saberá descobrir-lhe os oásis.”

“Há desertos nas cidades grandes que são mais desertos que...”.

Parou neste ponto, perigosamente perto de um lugar-comum.

Depois, essas anotações sobre a Beleza:

“A beleza não existe. Ponto. O artista deve ser obrigado a inventá-la. Uma das formas de inventar a beleza é mostrando seu extremo oposto. O feio. O feio existe. Logo, a beleza pode ser imaginada...”

Pensou ter encontrado uma “palavra-valise”, mas, enganou-se. A valise não continha nada.



Etílicos e suicidas

“Melhor/ morrer de vodca/ que de tédio!”, escreve Maiakovski num poema dedicado a Sierguei Iessiênin, que se suicidou num quarto de hotel, em Leningrado, em 28 de dezembro de 1925, aos 30 anos. Cortou os pulsos e escreveu com o próprio sangue estas duas estrofes na parede (tradução de Augusto de Campos):

Até logo, até logo, companheiro,
Guardo-te no meu peito e te asseguro:
O nosso afastamento passageiro
É sinal de um encontro no futuro.

Adeus, amigo, sem mãos nem palavras.
Não faças um sobrolho pensativo.
Se morrer, nesta vida, não é novo,
Tampouco há novidade em estar vivo.

No mesmo poema, já citado, em que responde lindamente a essas linhas, Maiakovski quase que admoesta o amigo: “Nesta vida / morrer não é difícil./ O difícil /é a vida e seu ofício.” (Tradução de Haroldo de Campos). Ele que, no entanto, cinco anos depois, em 1930, quando tinha 37 anos, também se suicidou, com um tiro no peito, imitando a si mesmo num dos seus poemas famosos.

Em “A flauta vértebra!” (1915), ele afirma: “Seria melhor talvez / pôr o ponto final de um balaço” (Trad. De Haroldo de Campos).

Quem morreu mesmo de vodca, dizem, foi Paulo Leminsky. E é Carlos Heitor Cony, num prefácio às “Novelas Nada Exemplares”, do também curitibano Dalton Trevisan, quem diz: “Um moço em Curitiba só tem um remédio: afogar-se. Como não há mar, um tonel de rum serve”.

Ultimas notícias

Extra! Extra! Deu entrada no Hospital da Poesia, recentemente, mais um poeta, vítima do trocadilhismo - doença medieval que reaparece de tempos em tempos entre nós. A vítima foi internada, suspeita-se, devido à ingestão conjunta de uma “Mc-rima” com um “Rilke-Shake”.

segunda-feira, 30 de abril de 2007

DO CADERNO AZUL - OUTONO



Notas para um conto.
Um homem espera num chalé no alto de uma montanha, após ter cometido um ato. Que ato? O que espera? Quem virá encontrá-lo?

Sugere-se que cometeu um crime (assassinato) por encomenda e espera o autor do pedido ou a polícia. O conto termina desviando o olhar, à maneira dos filmes de Godard, para os próprios pés, para o chão, a estrada.

Talvez seja possível incluir, nem como uma espécie de comentário posterior ou epígrafe, alguma coisa de Platão, no Fedro, quando diz: “É isso precisamente o que a escrita tem de estranho e que a torna muito semelhante à pintura. Os produtos desta apresentam-se na verdade como seres vivos, mas, se lhes perguntares alguma coisa, respondem-te com um silêncio cheio de gravidade. O mesmo sucede também com os discursos escritos.”

* * *

A solidão da invenção.
― Para escrever, basta a solidão e um papel. Para escrever bem, talvez seja necessário alguma outra coisa.

Olhou o céu azul pálido, como lavado, e alinhado de nuvens excessivamente embranquecidas pela luz de verão.

― Fernando Pessoa tinha essa mania de descrever o estado do céu, em “O Livro do Desassossego”, mas, merda, isso também cansa ― pensou.

* * *

Era preciso estar numa cidade estranha esta noite. Num quarto de hotel vagabundo, açoitado pelo vento. Sem mãe, pai, esposa, filho ou amigos a quem recorrer. Era preciso estar num quarto escuro, numa cidade estranha, esta noite. Onde ninguém relembrasse meu nome, onde eu não tivesse língua alguma a quem me comunicar.

É verdade, eu já estive lá.

* * *

Há certos caminhos que precisam ser retomados.

O que é a solidão para um homem? Será o mesmo para uma mulher?

Por que as frases deslizam no papel?

No meu caderno azul que precisa ser trocado, de velho, marcas.

Fragmentos de uma briga em que eu tentava me comunicar pela escrita. Na primeira linha: “Caiu no”, e uma linha abaixo, parecendo uma notação musical, deslocada para direita: “meu” e quase na mesma linha, mas um pouco acima, faltando uma letra: “Cai”, e pulando uma linha, no mesmo estilo de escrita na diagonal, a palavra “conceito”.

A raiva era tanta que as letras saíam tortas, repetidas, como num gaguejo.

Aquilo soou para ela como se eu chamasse a mãe dela de puta ou pior. E, impressionante, totalmente por acaso, um recado anotado no mesmo caderno, deixado ali para ser lido, na ausência dela, de um outro dia, já distante, com a letra dela, femininamente perfeita, na página imediatamente anterior: “Muitos beijinhos, meu amor”.

Nos fragmentos, a vida, o murmurinho do mundo.

* * *

Qual a melhor forma de se apagar senão inventando para si mesmo um duplo?

É o que une Paul Auster e um punhado de outros bons escritores a André Gide. Dois autores que citei com freqüência aqui nessa minha coluna pretensiosamente despretensiosa. Talvez, pensando melhor, fosse bom eu também criar um duplo para mim mesmo, que executasse a tarefa.

Leituras de outono.
Recentemente dois “lançamentos” de autores a quem também já fiz referência me chamaram a atenção. Um deles é de 1961, finalmente traduzido para o português. “O Estaleiro”, romance do escritor uruguaio, Juan Carlos Onetti. Dele, escreveu André Sant’anna em resenha de amanhã (no caderno Mais! da Folha de São Paulo, 15/4, que leio nesta noite de sábado, 14/4): “Onetti trabalha enfurnado na insignificância, com personagens insignificantes, em um cenário insignificante, onde nada de fantástico jamais acontece.” Mas é provável que o leitor, prognostica ele, “na insignificância da leitura de ‘O Estaleiro’”, “sinta uma agonia profunda, sinta o cheiro da morte, o gosto do nada”. O improvável leitor fiel desta coluna deve estar se lembrando do que eu disse sobre o filme “O Cheiro do Ralo”. Por isso mesmo, acrescento, Onetti é um autor que “significa” muito ou quase tudo (representa uma coisa por meio de outra, ausente, que se faz presente no ato da leitura). Ele surpreende, sim, por sua linguagem e estimula a imaginação do leitor. Ao contrário do que estranhamente afirma Sant’anna logo no início da resenha.

Outro “lançamento” saído pela Topbooks é “Tempo dos Mortos”, uma reedição da trilogia “Estação da Morte”, “O Enigma” e “O Sonho”, do poeta, escritor e memorialista cearense, José Alcides Pinto. Alcides é autor do fragmento, fincado na memória: “Oh, a beleza que cuspo quando sonho ― o puro licor que adoece.”

Eis aí uma seleção, caro leitor, do que você pode talvez querer ler no seu outono, o qual, ao que tudo indica, salvo disposições em contrário, já começou.

terça-feira, 17 de abril de 2007

O FUNDO DO RALO



Poderia começar dizendo muita coisa a respeito do filme O cheiro do Ralo, baseado no livro homônimo do quadrinista Lourenço Mutarelli e com roteiro de Marçal Aquino e do próprio diretor, Heitor Dhalia. Começo pela questão do patrocínio, por conta da polêmica levantada na Revista Bula, na qual colaboro. Não queria falar sobre isso porque o filme me impressionou pela própria qualidade (ainda sem julgamento de bom ou ruim, estou falando de uma qualidade em si mesma). No momento em que me levantei da cadeira, não era a Petrobras que eu tinha em mente, mas uma vaga sensação de mal estar.

Acontece que já nos créditos, antes mesmo de começar o filme, o logotipo da empresa petrolífera suscitou o comentário irônico de um espectador. “Mas é sempre a Petrobras!”, dizia a mulher na poltrona ao meu lado, na boa sala do Espaço Unibanco de Cinema, pertencente à instituição bancária fundada pelo pai do cineasta Walter Salles. Como todos sabem, as leis federais de incentivo à cultura no Brasil prevêem que o patrocinador deduza do Imposto de Renda parte do investimento, que pode chegar até a 100%. No caso das estatais, trata-se de um marketing cultural duplamente pago pelo contribuinte, ou seja, nós.

O filme custou aproximadamente R$ 300 mil, uma mixaria até mesmo para os padrões nacionais, como é costume se dizer quando se trata de valores na produção cinematográfica - de todas as artes a mais cara de ser feita. Como a Petrobras está entre as doze maiores empresas de petróleo do mundo, algumas gotinhas do líquido precioso e imundo devem ter bastado. Lembrem-se também que o “Petróleo é nosso” (não sei qual é o slogan que usam lá em Angola ou na Bolívia).

Dizem que alguns investidores se recusaram a produzir o filme por causa do título nauseabundo. O que me faz pensar na razão da maioria do filmes nacionais terem títulos neutros, mesmo quando a temática é barra-pesada: “O céu de Suely”, “Amarelo-manga”, “Central do Brasil”. Nenhum assusta o dono do Boticário ou do Grupo Pão de Açúcar. Ponto para o diretor que foi em frente assim mesmo. Outra coisa que precisa ser dita é que o filme venceu pelas suas próprias pernas. Melhor filme segundo a crítica no Festival do Rio, repetiu a premiação na Mostra Internacional de São Paulo, levando ainda o prêmio do público. Esta última mostra, aliás, uma rara oportunidade de assistir a filmes inéditos da produção nacional e do exterior, teve pela sexta vez o patrocínio da Petrobras que se encarregou ainda da distribuição comercial dos melhores filmes nacionais de ficção e documentário. Esse é outro dado que merece ser mencionado. Para que o filme passe nos cinemas, não basta ser produzido, ainda tem que ser distribuído, daí que alguns filmes nacionais, mesmo quando premiados, demorem em estrear no circuito nacional ou têm a exibição reduzida. E de novo, vem a questão: adianta produzir se não é visto? A quem será que se destina?

Heitor Dhalia é recifense e tem quase a mesma idade que o escrevinhador desta coluna. Como eu, deve ter sido um ávido leitor de revistas em quadrinhos na adolescência, como a “Chiclete com Banana”, de Angeli, Laerte e Glauco, e a lendária Heavy Metal. Lourenço Mutarelli se inscreve nesse quadro de quadrinhos undergrounds inspirados em Robert Crumb, para citar um nome. O filme, é claro, guarda um pouco desse clima meio sórdido, que remete ainda ao humor ácido de um Bukowski, ou aos personagens inertes e sem esperança do escritor uruguaio Juan Carlos Onetti. Como não li o livro não sei se funciona como romance, ou novela, estando mais para um conto.

Cinematograficamente, a referência pode ser tanto David Lynch, como foi propalado a respeito pela crítica, ou Tarantino. Mas pode muito bem ser comparado a alguns filmes de Arnaldo Jabor, na adaptação de Nelson Rodrigues. Há algumas boas tiradas sobre o casamento e a humanidade que lembram o espírito do velho Nelson, que ficava repetindo máximas como a de que “o mineiro” - e o brasileiro por extensão - “só é solidário no câncer”. Ou que “nem toda mulher gosta de apanhar, só as normais”.

Selton Melo, no papel central, tem o melhor desempenho na carreira, superando a si mesmo em “Lavoura Arcaica” – onde o monólogo empolado e literário combinava menos com o tipo que ele costuma interpretar. A linguagem direta, aliás, é uma vantagem do filme. É irritante a mania em filmes nacionais de que para parecer profundo é preciso citar algum escritor ou filósofo erudito, principalmente porque na maioria das vezes parece algo deslocado e falso. Talvez não combine com nossa cultura, pouco afeita à leitura.

O personagem principal é um comprador de bugigangas, na verdade, mais alguém com uma mania de colecionador, que passa a maior parte do tempo a receber em sua loja os tipos mais diversos, também catalogáveis: “a viciada”, “o homem do gramofone”, “o homem da caixinha de música”. No intervalo entre um e outro, ele vai a uma lanchonete, onde, após romper com a noiva às vésperas do casamento, fica fissurado pela bunda de uma garçonete de nome impronunciável. Um pedaço do corpo, no caso a bunda, passa a ser desejado como um objeto a mais para sua galeria.

A tese é clara e tem um fundo psicanalítico. À medida que entra num processo de loucura autodestrutiva no qual sua patologia se exacerba, Lourenço - mesmo nome do criador - procura pelos pedaços aos quais ainda se agarra, símbolos de sua própria mutilação. De revelador, há ainda uma paixão pelas próteses. O olho de vidro pelo qual entrega uma quantia desproporcional de dinheiro é, em sua fantasia, o “olho do pai morto na segunda guerra”. (De novo, a maldição do pai ausente). A perna mecânica adquirida em sequência é a “perna do pai”. Quando conseguir juntar todos os pedaços, ele sonha em se reencontrar.

Ao mesmo tempo, a procura evolui para um fetiche: a bunda, que ganha dimensões também simbólicas, separada do corpo individual, e que se liga ao cheiro do ralo. A bunda, o cheiro do ralo, o olho. Ver, sentir, tocar, ter. O único prazer que Lourenço se permite é o prazer voyeurístico sadomasoquista e o de possuir. Se o filme ficasse apenas nisso, daria um excelente curta-metragem. Mas para um longa, há momentos cansativos e repetitivos, alguns de humor forçado, como se fosse preciso divertir o público, machucar ao mesmo tempo em que se assopra a ferida. Mesmo assim o filme consegue ser reflexivo o bastante e fica acima da média. Fosse um filme argentino, o personagem seria um escritor frustrado, às voltas com a produção de um livro ou peça teatral. Do jeito que está, consegue ser mais próximo de nossa realidade, cada vez mais absurda e doentia, em que procuramos nos salvar muitas vezes mergulhados em nosso erotismo e egocentrismo, bem brasileiros, afinal de contas.

* * *



Ainda falando em filmes. As previsões catastróficas de cientistas de extinção de boa parte da biodiversidade ainda na metade deste século, me fizeram lembrar de Blade Runner, cujo título do romance original de Philip K. Dick é: “Andróides sonham com ovelhas eletrônicas?”. Uma referência ao futuro em que os animais estariam extintos e seriam substituídos por autômatos. A própria humanidade estaria em risco, com a criação de andróides tão perfeitos e indistinguíveis dos verdadeiros humanos que precisariam ser eliminados. As lembranças e sonhos desses modelos são programas de computador implantados em lugar da memória. O argumento virou um filme-pastiche bem ao gosto dos anos oitenta, nas mãos de Ridley Scott, mas que marcou uma geração naquela década ingênua, quando ainda acreditávamos que o futuro demoraria a chegar.

quarta-feira, 11 de abril de 2007

SIMILITUDES E INFLUÊNCIAS


“No final, todas as vidas não passam de uma soma de fatos contingentes, uma crônica de interseções fortuitas, lances de sorte, casualidades que nada revelam senão sua própria falta de propósito”, diz o personagem principal de “O quarto fechado”, uma das histórias que compõem A trilogia de Nova York, de Paul Auster.
“Pode ser”, pensa Gabriel. Ele lembra que a viu passando pelo corredor vestida num collant azul, a cor preferida dele. Gabriel recorda de ter pensado como ela era bonita e que com certeza ela devia ter um namorado. Ela nem sequer o notou e não podia saber que alguns meses depois eles iriam estudar juntos na mesma sala no mesmo curso de pós-graduação. Ele também não podia imaginar que eles iriam estar casados um ano depois e que ele seria de fato o primeiro namorado dela.
Nessa época, Gabriel estava morando numa “República” perto da Universidade, no apartamento de número 13. A casa dela ficava no número 1131, em outro bairro, uma casa grande, com piscina, que lembrava um quadro de David Hockney. A placa do carro que o pai de Gabriel dirigia quando morreu era 3113. Quando eles se casaram foram morar num apartamento que tinha sido da avó dela, por mais de dez anos, e que ela costumava alugar a terceiros. Qual era o número do apartamento? Bem, você pode procurar por eles no décimo primeiro andar, nº 113.
* * *
Dois poemas.Remexendo na gaveta de guardados (caixa de entrada do seu velho Outlook Express), M. encontra fragmentos de poemas e a explicação para a semelhança daquilo o que ambos exprimem numa nota enviada pelo correio eletrônico também a S.F.
“Ô a beleza! A beleza que cuspo quando sonho -- o puro licor que adoece.” (Alcides Pinto).
E o de M.:
“Cuspiram-me o cadáver -- o amor!
O amor estava sendo preparado
-- deram-me o amor!
Aí então me tornei a doença que tanto temiam.”
Final de Interlúdio (1) (Do Amor): IV-A MUSA, de Balada para um Morto, livro inédito.
Na nota, M. explica que estava lendo o Alcides e se carcomendo o espírito: “Como posso EU ter sido influenciado por esse senhor??? Na verdade ambos devemos ter sido influenciados pelo ‘De Azedo’ e o ‘De Arbelo’. E Ambos os ‘Dos Demônios’... O Blake e o outro, Dos Anjos, é claro.”
M. gosta de charadas com os nomes. Encontra “Azedo” no nome de Álvares de Azevedo e apelida Baudelaire de “De Arbelo” (tradução para o francês “Beau de l’air”). O profeta paraibano Augusto dos Anjos é consumido por demônios, os mesmos dos “Provérbios do Inferno”, do poeta místico William Blake, e, talvez, pensa M., fossem os mesmos “demônios de rapina” que assaltavam seu peito à noite, de madrugada, queimando como o alcatrão de saias perfumadas, saídos do “seu” Livro dos Mortos em um outro poema esquecido de M.
Aquele mesmo livro cujo primeiro poema ele escreveu exatamente um mês antes da morte do pai e foi “gerado” pela leitura que o pai fez para ele do soneto de Augusto dos Anjos, que vinha com uma dedicatória ao “primeiro filho nascido morto com sete meses incompletos”. “Imagine a dor que ele sentia quando escreveu isto”, disse o pai de M. Naquele mesmo dia, de olhos fechados, no seu quarto, M. imaginou.
Quadros retratando ausências.
Do quadro de Munch, Puberdade (1895) ,diz Giulio Argan, em Arte Moderna, p. 256, retomando alguns temas que eu vinha tratando antes.
“A figura é realista, com mãos e pés grandes e um pouco avermelhados, como frequentemente ocorre com os adolescentes; delicados, como de menina, são o peito e os braços, e plena, já de mulher, é a curva dos quadris e da bacia. O rosto indeciso e amedrontado indica a perturbação da moça pela transformação que sente se realizar em seu próprio ser. Realista é a sombra, projetada pela iluminação frontal, apenas levemente deslocada para esquerda; todavia, essa sombra agigantada, que nasce do próprio corpo da menina, toma forma avulta como um fantasma, possui um claro sentido simbólico, é a prefiguração da vida futura. A cama também é realista, vê-se a marca, sente-se a tepidez deixada pelo corpo; no entanto, certamente se refere aos que, para Munch, são os dois pólos da existência, o amor e a morte”.

sexta-feira, 6 de abril de 2007

LATA DE SARDINHA VOL. 2

É a mais pura verdade. Algo que não posso tocar, ver, ouvir, ou cheirar. Descobrir o significado dessas palavras.

***

Enganei-me sobre a ilustração da capa do livro “A invenção da solidão”, de Paul Auster. É uma lata de sardinha aberta em que se vê o fundo vazio. Imagem da solidão de A. Índice da ausência. A “maldição do pai ausente”.

Como na pintura Splash (“Tchibum”) de David Hockney. Também um emblema da ausência, do que não se vê.

Seguem-se várias citações de quadros retratando a ausência.

Nighthawks, “Notívagos”, de Edward Hopper, cuja tradução literal, em ornitologia, é de uma espécie de pássaro de hábitos noturnos.

Observar com olhos atentos. A caixa registradora solitária na loja fechada, iluminada pela luz do café. A larga calçada, os bancos vazios. Um casal que não se olha, um homem de costas, o paletó lembrando as asas recolhidas de pássaro... noturno... solidão.

O quarto vazio preenchido de Van Gogh.

A “Puberdade”, de Munch. Uma adolescente sentada à beira de uma cama. A sombra da morte, desde o nascimento, presente no despertar sexual da jovem trêmula.

“Mulher de azul”, de Veermer. Conforme um comentarista, citado por Auster: “A carta, o mapa, a gravidez da mulher, a cadeira vazia, a caixa aberta, a janela que não se vê – são todos índices ou emblemas naturais da ausência, do não visto, de outras mentes, vontades, tempos e lugares, do passado e do futuro, do nascimento e talvez da morte - em geral, de um mundo que se estende além dos limites da moldura, e de horizontes maiores, mais largos, que circundam e invadem a cena suspensa diante de nossos olhos. E no entanto é na plenitude e na auto-suficiência do momento presente que Veermer insiste – com tamanha convicção que sua capacidade de orientar e incluir se reveste de um valor metafísico”.

Imagens de Manet. Olhares que nunca se cruzam e que observam o vazio extraquadro. “A ameixa”, “O balcão”, “Almoço no ateliê”, “Na praia”, “Na estufa”.

Série de fotografias, da década de 90, de Sarah Jones, com “quarto” no título. “The sitting room”, “The dinning room”. Adolescente sentada, vestida numa espécie de pijama branco, cabeça caída, da qual só se vê os cabelos lisos alongando-se sobre o braço, recostada na altura dos olhos, deixando entrever um pedacinho da nuca, na mesa extremamente polida, tendo ao fundo um biombo japonês.



“A plenitude e a auto-suficiência do momento presente”.

terça-feira, 27 de março de 2007

SARDINHA EM LATA

Minha propensão para o diarístico.

Já não posso viver sem meu caderno de notas e a caneta. (Desespero: ficar numa casa sem caneta e papel é o equivalente a ter perdido alguma capacidade).

Trocar de caderno.

Quando não escrevo parece que não “vivi direito” aquela semana.

Leitura de Paul Auster, “A invenção da solidão”.

Sugestão de minha irmã. A primeira edição da tradução brasileira é de 1999. Nosso pai já estava morto havia oito anos.

A sombra de meu pai. Meu pai, uma sombra. Nos primeiros tempos, não o procurava. Ele me aparecia em sonho. Lembro do horror de acordar e pensar que ele já não estava lá, eu havia sonhado com ele. Sonhava com um abraço. Um sorriso. Aos poucos foi deixando de existir. Não lembro se nos falávamos nesses sonhos. Lembro de uma frase ditada em meio ao sono não tão profundo. A frase era uma espécie de enigma, que eu logo desvendei: “Os óculos ficaram todos vermelhos”.

Meu pai morreu aos 52 anos num acidente de carro, no dia 31/3 de 1991. A placa do carro era 1331. No dia anterior, eu completava vinte anos.

Naquele dia, um domingo, eu escutei uma canção de Tom Waits, cuja letra dizia: “Nunca dirija um carro se estiver morto”.

Meu pai estava vivendo uma espécie de “separação branca”. Isto é, eles estavam morando em cidades diferentes. Ela, em Natal, com os filhos, e ele em Mossoró, a 4 horas de viagem. Ele ia e vinha todo final de semana.

Naquele dia estávamos nos recuperando de alguma desavença. A regra era adotar o silêncio nesses casos. Até que viesse enfim o perdão, tão natural quanto coçar o nariz ou espirrar, como pensávamos na nossa família. Às vezes acho que pusemos muito peso nessa crença de que tudo seria redimido, não importando o que fosse feito. Muito Cristão, convenhamos.

Nós tínhamos acabado de voltar a nos falar. Estávamos bebendo vinho e conversando, em comemoração ao meu aniversário. Tivemos poucas conversas de fato. Meu pai sempre viveu num mundo próprio, que não era o meu, não era de ninguém. Era só dele. E me pergunto se o mesmo não se dá a propósito de todo mundo (essa, aliás, é a conclusão a que chega Auster, até onde eu li o livro. Ilustração da capa: uma lata de sardinha aberta e dentro outra lata fechada).

Fui a última pessoa a vê-lo com vida, quando me despedi, já dentro do carro. Poucas horas depois ele estava sendo arrastado por alguns quilômetros, preso à carroceria de um caminhão, até que o motorista percebesse que alguém havia batido na traseira do veículo e encostasse.

No pára-choque do caminhão, sem luzes, e rodando em baixa velocidade, estava escrito: “não me siga, também estou perdido”.

Meu pai morreu escutando Beethoven no toca-fitas, que não parou até acabar o último movimento.

* * *

Auster pai, sobre poesia: se não dá dinheiro, não é profissão.

Judaísmo de Auster.

Marina Tzvetáiveva, poeta russa, citada no livro, após ter experimentado um período de “extrema dificuldade econômica e moral”: “Neste que é o mais cristãos dos mundos/ Todos os poetas são judeus”.

* * *

“Toda a infelicidade dos homens advém de um só fato: o de não terem sabido permanecer quietos dentro de um quarto”: Pascal. A frase, glosada também por Baudelaire em um dos seus “Pequenos poemas em prosa”, chamado “A solidão”, obceca Auster.


Mas o próprio sábio francês depois se emendou: a fonte de todos os sofrimentos é a nossa pobre condição mortal.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

Lua nova


1
São Paulo, fim de tarde (início de noite, já sendo noite, de verão), com nuvens ameaçadoras, tranquilas, trazedoras de chuvas, e uma lua nova perfeitamente delineada.

2

Abaixo dela, indiferentes, não lhe notam os prédios monótonos e sem luzes - estranhamente desabitados, de domingos.

3

Quando o céu, turvando-se e multiplicando-se em angustiantes profundidades púrpuras e azuis, vem negar-lhe o esplendor.

4

Que vai aos poucos descobrindo os olhos convulsivos dos habitantes tragados pela cratera do Metrô.

terça-feira, 23 de janeiro de 2007

I like Lawrence

Eu gosto de Lawrence
Do seu verso não medido
Mas pensado
De sua vergonha em ser poeta
(O que é sem dúvida, apropriado,
Um pouco de contenção e pudor
Acompanhado de alguma dose de descaramento
Sempre é bem-vindo)
Dos seus lugares-comuns
E de apesar disso tudo
(ou talvez por isso)
De sua força
Gosto de Lawrence sem jamais ter lido
Seus romances escandalosos
I like Lawrence
Por que ele aponta um caminho
Sem ser jamais "derramado"
Mesmo quando ele de fato exagera
(Mas sobre isso posso estar enganado,
como em tudo)
I like Lawrence
Pela sua incerteza
Correndo como um cachorro louco ou como um rio
ao seu lado

B...kiana

- Talvez você não entenda, mas quando eu bebo, eu me reinvento. Pode ser que minha imaginação seja pequena, mas meu fígado é forte.

Disse isso com a maior cara de "I dont give a shit".

quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Blog de Gustavo Castro

Gustavo aprimora-se no desvelamento poético da (ir)realidade cotidiana, visto por olhos míopes, quer dizer, poéticos. Vale a pena acompanhar seu diário de viajante pelos "brasis" (será que o termo já virou clichê?)acompanhado do filho pequeno:

razaopoesia