Poderia começar dizendo muita coisa a respeito do filme O cheiro do Ralo, baseado no livro homônimo do quadrinista Lourenço Mutarelli e com roteiro de Marçal Aquino e do próprio diretor, Heitor Dhalia. Começo pela questão do patrocínio, por conta da polêmica levantada na
Revista Bula, na qual colaboro. Não queria falar sobre isso porque o filme me impressionou pela própria qualidade (ainda sem julgamento de bom ou ruim, estou falando de uma qualidade em si mesma). No momento em que me levantei da cadeira, não era a Petrobras que eu tinha em mente, mas uma vaga sensação de mal estar.
Acontece que já nos créditos, antes mesmo de começar o filme, o logotipo da empresa petrolífera suscitou o comentário irônico de um espectador. “Mas é sempre a Petrobras!”, dizia a mulher na poltrona ao meu lado, na boa sala do Espaço Unibanco de Cinema, pertencente à instituição bancária fundada pelo pai do cineasta Walter Salles. Como todos sabem, as leis federais de incentivo à cultura no Brasil prevêem que o patrocinador deduza do Imposto de Renda parte do investimento, que pode chegar até a 100%. No caso das estatais, trata-se de um marketing cultural duplamente pago pelo contribuinte, ou seja, nós.
O filme custou aproximadamente R$ 300 mil, uma mixaria até mesmo para os padrões nacionais, como é costume se dizer quando se trata de valores na produção cinematográfica - de todas as artes a mais cara de ser feita. Como a Petrobras está entre as doze maiores empresas de petróleo do mundo, algumas gotinhas do líquido precioso e imundo devem ter bastado. Lembrem-se também que o “Petróleo é nosso” (não sei qual é o slogan que usam lá em Angola ou na Bolívia).
Dizem que alguns investidores se recusaram a produzir o filme por causa do título nauseabundo. O que me faz pensar na razão da maioria do filmes nacionais terem títulos neutros, mesmo quando a temática é barra-pesada: “O céu de Suely”, “Amarelo-manga”, “Central do Brasil”. Nenhum assusta o dono do Boticário ou do Grupo Pão de Açúcar. Ponto para o diretor que foi em frente assim mesmo. Outra coisa que precisa ser dita é que o filme venceu pelas suas próprias pernas. Melhor filme segundo a crítica no Festival do Rio, repetiu a premiação na Mostra Internacional de São Paulo, levando ainda o prêmio do público. Esta última mostra, aliás, uma rara oportunidade de assistir a filmes inéditos da produção nacional e do exterior, teve pela sexta vez o patrocínio da Petrobras que se encarregou ainda da distribuição comercial dos melhores filmes nacionais de ficção e documentário. Esse é outro dado que merece ser mencionado. Para que o filme passe nos cinemas, não basta ser produzido, ainda tem que ser distribuído, daí que alguns filmes nacionais, mesmo quando premiados, demorem em estrear no circuito nacional ou têm a exibição reduzida. E de novo, vem a questão: adianta produzir se não é visto? A quem será que se destina?
Heitor Dhalia é recifense e tem quase a mesma idade que o escrevinhador desta coluna. Como eu, deve ter sido um ávido leitor de revistas em quadrinhos na adolescência, como a “Chiclete com Banana”, de Angeli, Laerte e Glauco, e a lendária Heavy Metal. Lourenço Mutarelli se inscreve nesse quadro de quadrinhos undergrounds inspirados em Robert Crumb, para citar um nome. O filme, é claro, guarda um pouco desse clima meio sórdido, que remete ainda ao humor ácido de um Bukowski, ou aos personagens inertes e sem esperança do escritor uruguaio Juan Carlos Onetti. Como não li o livro não sei se funciona como romance, ou novela, estando mais para um conto.
Cinematograficamente, a referência pode ser tanto David Lynch, como foi propalado a respeito pela crítica, ou Tarantino. Mas pode muito bem ser comparado a alguns filmes de Arnaldo Jabor, na adaptação de Nelson Rodrigues. Há algumas boas tiradas sobre o casamento e a humanidade que lembram o espírito do velho Nelson, que ficava repetindo máximas como a de que “o mineiro” - e o brasileiro por extensão - “só é solidário no câncer”. Ou que “nem toda mulher gosta de apanhar, só as normais”.
Selton Melo, no papel central, tem o melhor desempenho na carreira, superando a si mesmo em “Lavoura Arcaica” – onde o monólogo empolado e literário combinava menos com o tipo que ele costuma interpretar. A linguagem direta, aliás, é uma vantagem do filme. É irritante a mania em filmes nacionais de que para parecer profundo é preciso citar algum escritor ou filósofo erudito, principalmente porque na maioria das vezes parece algo deslocado e falso. Talvez não combine com nossa cultura, pouco afeita à leitura.
O personagem principal é um comprador de bugigangas, na verdade, mais alguém com uma mania de colecionador, que passa a maior parte do tempo a receber em sua loja os tipos mais diversos, também catalogáveis: “a viciada”, “o homem do gramofone”, “o homem da caixinha de música”. No intervalo entre um e outro, ele vai a uma lanchonete, onde, após romper com a noiva às vésperas do casamento, fica fissurado pela bunda de uma garçonete de nome impronunciável. Um pedaço do corpo, no caso a bunda, passa a ser desejado como um objeto a mais para sua galeria.
A tese é clara e tem um fundo psicanalítico. À medida que entra num processo de loucura autodestrutiva no qual sua patologia se exacerba, Lourenço - mesmo nome do criador - procura pelos pedaços aos quais ainda se agarra, símbolos de sua própria mutilação. De revelador, há ainda uma paixão pelas próteses. O olho de vidro pelo qual entrega uma quantia desproporcional de dinheiro é, em sua fantasia, o “olho do pai morto na segunda guerra”. (De novo, a maldição do pai ausente). A perna mecânica adquirida em sequência é a “perna do pai”. Quando conseguir juntar todos os pedaços, ele sonha em se reencontrar.
Ao mesmo tempo, a procura evolui para um fetiche: a bunda, que ganha dimensões também simbólicas, separada do corpo individual, e que se liga ao cheiro do ralo. A bunda, o cheiro do ralo, o olho. Ver, sentir, tocar, ter. O único prazer que Lourenço se permite é o prazer voyeurístico sadomasoquista e o de possuir. Se o filme ficasse apenas nisso, daria um excelente curta-metragem. Mas para um longa, há momentos cansativos e repetitivos, alguns de humor forçado, como se fosse preciso divertir o público, machucar ao mesmo tempo em que se assopra a ferida. Mesmo assim o filme consegue ser reflexivo o bastante e fica acima da média. Fosse um filme argentino, o personagem seria um escritor frustrado, às voltas com a produção de um livro ou peça teatral. Do jeito que está, consegue ser mais próximo de nossa realidade, cada vez mais absurda e doentia, em que procuramos nos salvar muitas vezes mergulhados em nosso erotismo e egocentrismo, bem brasileiros, afinal de contas.
* * *Ainda falando em filmes. As previsões catastróficas de cientistas de extinção de boa parte da biodiversidade ainda na metade deste século, me fizeram lembrar de Blade Runner, cujo título do romance original de Philip K. Dick é: “Andróides sonham com ovelhas eletrônicas?”. Uma referência ao futuro em que os animais estariam extintos e seriam substituídos por autômatos. A própria humanidade estaria em risco, com a criação de andróides tão perfeitos e indistinguíveis dos verdadeiros humanos que precisariam ser eliminados. As lembranças e sonhos desses modelos são programas de computador implantados em lugar da memória. O argumento virou um filme-pastiche bem ao gosto dos anos oitenta, nas mãos de Ridley Scott, mas que marcou uma geração naquela década ingênua, quando ainda acreditávamos que o futuro demoraria a chegar.